sábado, 6 de dezembro de 2008

MINI-CONTO DE NATAL

De menino

Viera da roça, fugindo da seca e da precisão. Chegara na véspera do Natal e no dia seguinte crianças brincavam na rua, exibindo seus presentes: bolas de futebol, carros, bonecas, bicicletas. Ele observava todo o movimento de sua janela. Um garoto o viu e se aproximou:

– Oi! Sou Mário. Pegue seu presente e venha brincar conosco!

Ele desviou o olhar para o chão. Envergonhado, procurou a mãe.

– Mãe, quem é papai-noel que deu brinquedo a todos os meninos da rua e a mim não?

A mãe não soube responder. De onde vieram, papai-noel se chamava cesta básica e carro-pipa.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

CAMINHANDO SOB AS ESTRELAS


A Dulce e Célia; Armando e Nivaldo
Os dois casais de namorados se encontravam pontualmente às seis horas da noite na porta da igreja. Trocavam algumas palavras e seguiam passeando pela calçada em sentidos opostos e em passos ritmados, de modo que pudessem se encontrar na parte do fundo. Novamente outra parada para conversa a quatro e depois seguiam adiante, até novo encontro no ponto de partida.

As duas eram vizinhas de parede, amigas de infância e cúmplices na paixão aflorada. Recolhiam-se antes que o motor da luz silenciasse, mas continuavam a consumir querosene de candeeiro até os grilos cansarem de sua sinfonia. Seus pais, para a época, eram liberais, porém suas mães se esmeravam no zelo da honra e dos bons costumes: permitiam que elas namorassem além de seus olhos sob a condição de não ficarem paradas na calçada, em chamego de mulher perdida.

Os dois namorados se fizeram amigos nos encontros marcados ao longo da calçada. Um deles era forasteiro, vindo no volante da Petrobrás mudar o conceito econômico do lugar. O outro era nativo, lidava com afazeres agrícolas, e, apesar de passar a maior parte do seu tempo envolvido com a roça, possuía trejeitos citadinos e ares de sincera fidalguia.

Uma das moças era oriunda da roça, mas não deixava trespassar a timidez das mulheres da zona rural. No seu rol de amizades havia mais garotas da cidade e com elas aprendia a desenvoltura dos flertes. A outra moça era professora. No meio de tanta gente ignorante do saber ler, era tratada como um ser superior. Vestia-se elegantemente e nem mesmo para o trabalho abria mão de belos sapatos de salto alto. E eram eles, os sapatos, que marcavam a cadência dos passos na calçada. Às vezes, quando se detinha em delongas com o outro casal ou com outro ser passante e sua mãe não escutava o toc-toc harmônico do salto fino sobre o cimento, ela saía à porta e chamava a filha à responsabilidade. 

As caminhadas que esses casais deram em torno da igreja, se medidos milimetricamente, dariam a volta ao mundo e ainda sobrariam passos. Mas um dia a Petrobrás transferiu o seu motorista para outra cidade e o casamento teve que ser apressado. Depois de casados, se mudaram para muito longe e o outro casal também quis abreviar as caminhadas, trocando alianças aos pés do altar. Neste ínterim, a cidade ganhou luz elétrica vinda diretamente dos gigantescos geradores de Paulo Afonso, silenciando o velho motor a diesel do gerador. A sinfonia noturna do salto do sapato em passos cadenciados no compasso das quimeras, fora substituída pelo fade desarmônico da televisão e pelo diálogo encurtado de jovens apressados sem tempo de escutar o prelúdio das estrelas, visível e audível apenas para os corações apaixonados.




domingo, 30 de novembro de 2008

OS INSTANTES FINAIS DE NELO

Para Antonio Torres
Um grande escritor
Um grande irmão.



Meninos, eu conto!

No momento em que Nelo subiu no cadafalso não sentiu orgulho ou vaidade de sua proeza suicida. Nem pena, queixa ou comiseração por si mesmo. Sentiu apenas o fardo pesado da responsabilidade de não se arrepender quando o nó da corda apertasse, mortalmente, o seu pescoço. Não haveria tempo para retroceder. Antegozava a cara de espanto do seu irmão Totonhim, na manhã seguinte, quando viesse ao seu encontro. E a incredulidade que dominaria a cidade na hora do almoço. As notícias ruins têm asas, voam mais rápidas que o pensamento. E ninguém tem apetite com um cadáver à sua porta, esperando um convite para sentar à mesa. Seria lembrado e comentado por muitos verões.

Sua vida desfilou em flashes consecutivos e, no delírio da loucura, viu caixõesinhos azuis perpassando nas paredes em cortejo fúnebre de cachorro, e o lobo, atordoado, seguia os homens de pés redondos que viajavam de táxi para Viena D’Áustria, ouvindo Amadeus, ou não ouvindo ninguém, ou talvez, ouvindo o apelo das suas vísceras famintas, expostas ao calor inclemente da seca que torra o juízo, e da fome que torna o vivente civilizado em um dublê de canibal.

Na indignidade da vida, seria um morto digno, assim epigrafou a sua carta ao bispo de Alagoinhas, a qual arrazoou a sua atitude extrema, sua vindita fatal. Não queria perdão, réquiem, exéquias ou missa em dó maior. Enquanto vivo, foi explorado pela família, traído pelos amigos e incompreendido pelo irmão. Ninguém nunca lhe perguntou sobre a sua saúde, suas angústias, seu medo ou se precisava de alguma coisa, ao menos, uma palavra de carinho, um conforto, um gesto de solidariedade. Não. O mundo, esse imenso circo, é que lhe devia perdão.

Quando a balada da sua infância perdida ficou pronta, estava mais desnorteado que cego em tiroteio. Na selva de pedra a realidade era outra. O frio, a fome e a solidão eram companheiros constantes. Poderia fazer coro com Luiz Gonzaga e cantar “penei, mas aqui cheguei”, porém seus acordes eram agoniados e lamentosos, mais lembravam um cão uivando para a lua. Seu prólogo no Sul Maravilha foi cheio de sofrimento e exaustão física e mental. Seu prelúdio na vida sentimental foi um amontoado de erros e equívocos. Seu desfecho foi uma tragédia grega.

Haverá os que julgarão prematuro e irresponsável o seu último ato. Outros o chamarão de louco, principalmente aqueles que não mais irão chupar o seu sangue feito sanguessugas. Outros encontrarão motivos suficientes para encher a cara na bodega de Pedro Infante. Porém, nenhum indagará sobre os reais motivos que o levaram a brincar de Deus. Ou sabem e se calam, incomodados pela consciência desnuda, cada um carregando a própria culpa.

Quando Nelo retornou para essa terra, queria apenas ser o centro das desatenções. Achou que o tempo havia mudado o povo e seus interesses mesquinhos, os fuxicos, as fofocas, a ganância e a exploração dos que seguem caminho e conseguem melhorar de vida. Segundo Nego de Roseno, protagonista de uma acirrada disputa por um pé de feijão que levou Nelo a tomar destino do Sul Maravilha, os que fracassam nessa terra não têm hora nem vez no meio dessa gente. São relegados à escória, escorraçados do convívio social. São uns aproveitadores, uns abutres, que se dizem nobres, mas não passam de sequestradores, nobres sequestradores do suor alheio, cujo resgate só será pago no dia de São Nunca.

Tudo isso reviu Nelo, no tênue instante que separou o retesamento da corda e o fim dos seus estertores. E ainda teve tempo de ver a imagem de sua mãe passando a linha pelo buraco da agulha e do seu pai, na sombra do juazeiro, construindo seu caixão. Sem mágoa, angústia ou ressentimento, se despediu:

- Adeus, velho! Cuide bem de Minu, meu gato azul.


N. A. – Nelo é o personagem central do livro “Essa Terra”, e aqui neste conto está citada toda a obra do escritor Antonio Torres, que pode ser conferida em www.antoniotorres.com.br