sábado, 17 de outubro de 2009

Os olhos verdes do Ciúme - Maria Helena Bandeira

O mar entra pelos olhos de Marina com uma intimidade de parentesco.


Olhos que trouxeram o verão para minha alma tempestuosa e no tempo da ira ficavam quase negros, oceanos de chuva.


Eu me afoguei naqueles olhos muito antes do final dos tempos. Quando perdi o paraíso em todos os sentidos possíveis.


Por causa deles, joguei biriba com seus parentes durante vários sábados perdidos e enfrentaria todos os finais de semana tediosos só para estar de novo ao abrigo de suas ondas.


A família de Marina era crente.


Crente de que tinha a salvação no bolso do colete e o mundo se dividia entre eleitos e perdidos. Eu sempre fora um perdido convicto, mas me tornei eleito por causa dela. E vivia feliz na inconsciência de meu estreito céu, definido pelas paredes do seu apartamento, onde nos encontrávamos como namorados antiquados, sob o olhar vigilante dos cães de guarda paternos.


Só que, distante daquela cena, no segredo dos seus olhos marinhos, Marina era uma labareda que tudo consumia no desejo implacável de arder em combustão. E quando finalmente foi ao meu leito estreito de solteiro, todas as previsões se confirmaram e o verdadeiro paraíso se abriu para mim em promessas cumpridas.


Era fogosa como seu olhar incandescente e eu vivia prisioneiro daquele encanto selvagem de tal maneira, que seria capaz de passar a eternidade inteira jogando biriba a seco, só para ter, um segundo, em meus braços, a dona daqueles olhos de mar agreste.


Mas (a felicidade tem sempre um “mas” espreitando perverso) apareceu Estevão, a serpente que iria me expulsar do paraíso.


Estevão era modesto e religioso. Capaz de recitar a Bíblia em todos os seus versículos com uma perfeição que mataria o próprio Satanás de tédio. O demônio não prevaleceria sobre ele porque a monotonia lhe tiraria as forças antes de começar a empreitada. Era tão chato que nem o próprio tentador se habilitaria a levá-lo para suas hostes. O Inferno não seria o mesmo depois da sua chegada.


Nem o meu Paraíso.


Encantados ao vislumbrar partido tão promissor (Estevão cortejava Marina com um descaramento proporcional à hipocrisia com que me cumprimentava, a mão suada e mole, os olhos míopes encarando os meus por trás das lentes grossas, de uma piedade vaga e premonitória) os pais de Marina encorajavam o sedutor, fingindo me agradar com palavras mansas.


Enquanto crescia o entusiasmo dos parentes pelo outro, Marina ia se tornando estranha, esquiva, fugidia. Já não me encarava com aqueles olhos de esmeralda líquida. E o mar se fechava, tempestuoso, diante de meus tímidos argumentos de rejeitado. Ela se enfurecia, a voz meiga percorria a escala em vários tons para reclamar do meu ciúme absurdo. Logo de quem? Do pobre Estevão, um rapaz corretíssimo, religioso, um amigo desinteressado, cuja única intenção era colocar nós todos juntos o mais rápido possível no caminho do seu Paraíso sem-graça em que ficaríamos eternamente a jogar um biriba interminável.


Marina se aborrecia com minhas ironias e ia embora zangada comigo.


Contra os fatos não há argumentos.


Mas a verdade é que não existia nada que eu pudesse dizer, concretamente, do comportamento de Estevão. A mão que segurava a dela, não demorava um segundo a mais do que o estritamente exigido pelo meu olhar vigilante. Nunca uma palavra de duplo sentido, apenas aqueles olhos de cobra, vigiando, esperando a hora, deixando-se escorregar sobre o corpo esguio e sobre os olhos verdes de Marina.


E minha vida virou um inferno.


Seguia Marina pelos cantos da casa e da vida. Ligava milhares de vezes para seu celular, esperando ouvir a voz masculina sussurrando do outro lado, enquanto angustiado, o ouvido colado ao fone, investigava os sons que circundavam a voz amada.


Não conseguia mais trabalhar ou estudar. Não conseguia mais dormir.


E ela cada vez mais fria, mais distante. Os olhos quase sempre gelados. E a eles eu também espreitava, aguardando sinais que não desejava ver. Ou, quem sabe, esperando descobrir neles uma resposta positiva ao meu ciúme para acabar com o tormento que me consumia. Queria saber Marina devassa e mentirosa, adúltera como a imaginava, nos braços falsos de Estevão, gemendo em lúbricos desmaios, me excluindo. Expulso do Paraíso, mas justificado. Explicado. Digno. Não um miserável espião de seus menores suspiros.


Finalmente Marina me deu razão. Com olhar cinzento de adeus, se despediu do meu ciúme e das minhas desconfianças, com o desprezo de quem já tem garantia de felicidade comprada em lote alheio.


Eu me humilhei é claro, rastejei, pedi perdão de joelhos, rezei, fiz promessas e vergonhas inacreditáveis, joguei cinzas nos cabelos, comecei uma greve de fome, mas não adiantou.


Marina se casa hoje com Estevão.


Neste momento decisivo do meu destino, não sei se dou um tiro na cabeça ou se faço um curso intensivo de biriba emocional para aprender a dar melhor as cartas, interpretar o jogo com sabedoria e, principalmente, aprender o jeito certo de bater descartando o morto. E ainda deixando que ele pense que está vivo.


Como se fosse possível, longe daqueles olhos de oceano.

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