quinta-feira, 24 de setembro de 2009

CONSCIÊNCIA ATIVA E PASSIVA

Falar-se de consciência intelectual e da solidão que ela denota, é como se falar de corda em casa de enforcado com o defunto ainda na sala, principalmente em um país em que o voto a vereador vale trinta reais e um bom livro que possa elevar o nível intelectual do eleitor vale o dobro disso. 

É bem verdade que o livro, se corretamente guardado, dura a vida toda, enquanto que o vereador tem vida útil de quatro anos, onde se revitalizará com mais trinta dinheiros. Assim, de trinta em trinta, o vereador se perpetuará no poder enquanto o eleitor ficará a dever trinta reais na livraria se quiser treinar seus neurônios.

Bertolt Brecht, em boa hora, escreveu que o pior analfabeto é o analfabeto político. E cita as razões que o analfabeto – político ou não – jamais irá saber. Para mim, que perto de Brecht sou analfabeto, o pior analfabeto é aquele de Mário Quintana: sabe ler e não lê. E sem ler, jamais sofrerá da solidão da consciência intelectual, ocasionada justamente pela falta de leitura do interlocutor à altura dos anseios daquele que lê. 

Brecht foi um dramaturgo e poeta alemão que não teve tempo de sentir solidão. Expatriado pelos nazistas devido à sua condição de amigo de Stalin, viveu na Escandinávia e nos Estados Unidos até adquirir cidadania suíça. Acreditava que o proletariado europeu sabia ler, só não sabia votar, e por isso eram trabalhadores solitários, vagando no velho mundo, esperando a hora acontecer. Morreu do coração, o camarada Bertolt. Talvez decepcionado pela visão real da massa ignara.

Nietzsche era um amante da música, da arte e das letras, principalmente das tragédias gregas, e por isso não conseguia penetrar na alma da burguesia decadente alemã e se sentia um filósofo solitário. Orgulhava-se de ser o único filósofo de corpo e alma dentro da Psicologia.

A unidade, por si só, é solitária. Daí, da solidão à loucura é um passo. Nietzsche não aguentou o peso da sua e enlouqueceu.

Embora esses dois alemães vivessem em épocas diferentes, em situação política diferente, e de ter influenciado o pensamento europeu muitas décadas atrás, suas obras são mais do que atuais na nossa realidade, embora poucos tenham atingidos um coeficiente intelectual a ponto de a solidão abrir suas portas em convite cativante para um longo bate-papo madrugada adentro.

Nessa terra de prolíferos intelectuais, onde se encontra escritores aos montes em cada esquina, poucos se dignam a exercitar o intelectual lendo autores além daqueles que levam suas assinaturas, em uma clara demonstração do “eu só me basto”. Segundo comentário de um importante editor paulista, no Brasil há tantos poetas que se um comprasse o livro do outro o país seria um sucesso editorial no gênero. Seria o efeito corrente de antigamente, aquele que, se não fosse quebrado, o dinheiro investido retornaria quadruplicado. No presente caso, haveria múltiplos ganhos: o financeiro, através do arrecadado com os direitos autorais; o intelectual, pelo exercício dos neurônios, e o espiritual, devido à satisfação em saber que está sendo lido.

O brasileiro, em sua essência, é adepto do “não li e não gostei”. Citam Castro Alves, Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa por serem autores obrigatórios no Ensino Básico ou então por serem os mais conhecidos. No governo collorido, o livro de cabeceira da primeira-dama era “O Perfume”, de Patrick Suskind, acho que um tanto assim para sair da mesmice de se falar de Jorge Amado. É mais chique se falar de autores do velho mundo do que do Amado baianês, embora houvesse uma ligeira desconfiança de que ela falava de “perfume”, a colônia aromática, contrabandeada de Miami. Ambas, leitora e primeira-dama, não passavam de muambas de quinta categoria.

Fala-se mal de Paulo Coelho sem se ler Paulo Coelho; fala-se bem de Jorge Amado sem se ler Jorge Amado. José Sarney, nosso senador vitalício, patrono dos homens de bigode, é membro da Academia Brasileira de Letras. Quem já participou ou conheceu alguém que tenha participado de algum sarau com o autor de Marimbondos de Fogo? Ou oficina literária? Ou de alguma palestra nos cafundós do judas?

Diga-me com quem andas que te direi se te acompanho, dizia o Barão de Itararé. Na tentativa de preencher a minha solidão de consciência intelectual, depois de alguns chopes, o assunto descambou para João Ubaldo Ribeiro:

– Adoro as crônicas do João Ubaldo! – disse-me o meu companheiro desse mal crônico que se chama “solidão das segundas-feiras”.
– Que bom! – respondi – Você leu a de ontem? Estava hilária...
– Ontem? Não.
– E a do outro domingo?
– Também não.
– E qual foi a que você leu?
– Pra falar a verdade, há mais de dois anos que não leio as crônicas do João Ubaldo. Mas li o seu último livro.
– Gostou do “O Diário do Farol”?
– Diário do Farol?! Nunca ouvi falar. É de João Ubaldo?
– ?!

Nietzsche, como psicólogo, devia saber que o agente ativo causador da solidão da consciência intelectual é a falta de consciência literária, o princípio da consciência proletária de Brecht que leva ao saber político, daí ao pensamento crítico e, conseqüentemente, ao fim do voto de cabresto, o que levará inevitavelmente a uma redução do preço do livro e ao nivelamento intelectual dos interlocutores, o que espantará a solidão.

Levando-se em consideração o congelamento do preço do livro tal qual o preço do voto, que aqui em Maceió está congelado em trinta reais nos últimos dez anos, são necessárias duas eleições de vereador para poder se comprar um bom livro que leve o leitor a adquirir consciência intelectual de Nietzsche, embora se precise de mais quatro anos para se ler e de mais quatro anos para se entender e atingir o Nirvana.

Findo esse prazo, o leitor sentirá a solidão da consciência do eleitor, pois o vereador estará aposentado, montado em um gordo patrimônio, enquanto ele, o leitor-eleitor, terá apenas um livro velho empenhado no sebo como único bem material agregado ao patrimônio de família e mais o título de eleitor que lhe renderá mais trinta reais no dia da eleição.

Como ele leu um livro, sua consciência intelectual se manifestará em prejuízo moral o que o levará a devolver o dinheiro do político, acarretando em prejuízo material de enormes proporções, gerando acusações transtornadas e hostis da mulher e dos filhos que não leram o livro e não compreendem como ele pôde abdicar dessa ajuda divina e oportuna. 

Depois de ela pegar quatro conduções e enfrentar uma longa fila para votar, gratuitamente, fará uma trouxa dos panos de bunda e irá embora, levando os filhos a tiracolo. Ele entrará em um boteco para desfazer o nó da garganta, procurará um amigo para jogar conversa fora e falar de suas mágoas e notará que as pessoas o evitam por ser ele um ser superior que leu um livro e elas não encontram assunto além das fofocas cotidianas.

Nesse dia então, ele terá noção da sua consciência intelectual e sentir-se-á o mais solitário e infeliz de todos os homens.


quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A MÃO


Um braço sem outro braço, é meio-abraço.
U’a mão sem a outra mão, é meia-mão.
Meia-mão para comer, meia-mão para acenar;
Meia-mão para vestir e calçar.

Quem tem uma só mão não calça apertado...
Quem tem u’a mão só, só veste folgado.

Se Pilatos maneta fosse, não diria:
“Lavo as minhas mãos” e a história
Sem o histórico expressar ficaria.
“Lavo a minha meia-mão” é uma mentira
Que a história não registraria.

Assumindo seus atos, com tato
No trato real do irreal sonho cristão
A John Lennon plagiava:
“O sonho acabou!”, sentenciava.
E Jesus Cristo a cabeça baixava.

Se murmúrios murmurantes de protestos
Houvesse dos protestantes, militantes,
Blasfêmicos, blasfemando contra a
Blasfêmia injuriosa dos injustos,
Seria justo justiçar os injustiçados
Pela Justiça, no tocante à legalidade
Da ilegal prisão:
“U’a mão lava a outra!”
Aludia Barrabás, o assassino,
Vigarista, ladrão, deletério,
No deleite feral de Talião:
“Olho por olho, dente por dente”, justiçava.
“Cristo condena o roubo, o ladrão condena Cristo”,
O sacripanta finalizava.

E se Cristo tivesse só u’a mão?
Destarte não poderia ser crucificado.
Surgido o impasse, no calabouço,
Se enforcado Ele fosse, sagrada seria
A corda ou o caibro do enforcado?

Como carregar uma corda na procissão
Sem ter um enforcado à mão?

E a dúvida do que fazer:
Pelo Sinal da Santa o Quê?

U’a mão que corta um mamão
Não tocaria jamais um violão.
Mas a meia-mão que não toca violão,
Toca no tocante de coisas não chocantes:

Onanismo? Toca.
Zabumba? Toca.
Piolhos? Coça.
Carinhos? Roça.

O ambidestro se serve das duas mãos:
Os dois braços fazem a mesma evolução.

E o infausto maneta como saber
Se é canhoto se só tem a mão direita?

O maneta esquerdo se ajeita
Com o canhoto que só tem a direita.

E ficam dois corpos em união
Com quatro pernas e duas mãos.

E se um deles mulher for
Consumado fica o amor.

E se no civil contrai matrimônio,
Nas alianças gera um pandemônio:
Ela, contrita, com tudo se ajeita,
Usa a aliança na mão direita.
E vivem uma vida mirífica,
Pois do marido, noiva ela fica.

E se um dia resolve parir,
A dúvida do feto vai surgir:
Se “sai” aos pais, nasce maneta;
Se ‘sai” aos avós nasce perneta.

E após nove meses expurga do ventre
Um aleijado em forma de gente.

E, na infelicidade,
São felizes para sempre.




terça-feira, 22 de setembro de 2009

A BORBOLETA


Por Leila Barros





- Alô!

- Oi, tudo bem?

- Tudo e você?

- Tudo certo! Então... eu hoje comecei a pensar em você e fiquei com saudades, sabe aquela saudade quadrada, que não desce pela garganta e que faz a gente ficar olhando com os olhos vidrados no nada? Então é assim que eu estou... Fico vislumbrando seu sorriso maroto e você desfilando na praia com seu novo piercing no umbigo. Que idéia você foi ter, hein?


(Riso fraquinho do outro lado do telefone)


- Então, eu fiquei imaginando que inseto eu gostaria de ser para estar ao seu lado nesse momento. Pensei em um pernilongo, pois pelo menos estaria ao seu lado no quarto e poderia verificar se o seu sono está tranqüilo e se o seu corpo está coberto ou exposto. Um pernilongo não daria certo. Imagine você com o seu geniozinho calmo com um pernilongo a lhe atormentar feito um violino desafinado. Provavelmente me chaparia na parede, dizendo algumas palavras gentis...


(risos mais fortes do outro lado do telefone)


- Pensei em uma abelha voando por perto enquanto você toma seu café da manhã. Assim eu saberia quem está ao seu lado, se você está se alimentando bem ou se ainda está fazendo aquela dieta maluca, aquela de não comer nada! Mas não daria certo também, primeiro porque você ouve pagode de manhã e isso nem por você eu suporto. Depois, se você acordasse com "aquele" humor e sem vontade nem de falar, fatalmente eu receberia uma rajada de pano de prato e cairia no chão.


(risada gostosa do outro lado do telefone)


- Resolvi que seria um vagalume, pois poderia acender minha lanterna e iluminaria seu caminho quando você estivesse saindo para as baladas com suas novas amigas... Gostaria de ver você com aquela calça jeans pescador que deixa à mostra seu tornozelo tatuado e aquela blusinha curta que mostra esse "piercing" horroroso no umbigo. Durma-se com essa ousadia! Pode falar que é ciúmes... Mas, não daria certo também, você não é lá muito chegada à roça e sertão e acho que nunca viu um vagalume antes. Talvez ficasse com um pouco de medo e... zap... me acertaria com o salto de sua sandália.


(uma boa risada do outro lado do telefone)


- Aí me lembrei da tatuagem de borboleta em seu tornozelo e decidi. Vou ser uma borboleta. Eu sei que isso parece meio delicado demais para o seu temperamento, mas você sabe que eu sou assim... Pelo menos seria um inseto mais útil, mais livre, com mais estilo, eu diria "fashion" mesmo. Poderia acompanhá-la a todos os lugares e você me olharia com um certo encanto. Pensando bem, a borboleta lembra você, assim toda colorida, leve, livre e sempre borboleteando. Fica perto por muito pouco tempo, mas por onde passa espalha sua vivacidade. Fica então decidido, serei uma borboleta azul e pousarei em seu tornozelo de modo que você não possa saber se sou eu ou simplesmente a sua tatuagem.

- Mãe, preciso desligar agora. Não exagera, eu só vim passar um final de semana no Guarujá, amanhã tô de volta!

- Tá bom filha! Vai ser borboleta na vida! Te amo

- Eu também mãe!



segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Lupicínio e você - Maria Helena Bandeira

"Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?"

Sim, você sabe e morre mil vezes e chuta latas pelas ruas esperando que a dor escorra pelos bueiros, baratas aflitas de Kafka, o amor é tão fantástico nos dois sentidos. Então você volta para casa, se senta no sofá grená e olha para o livro que nunca vai ler : a história da sua vida.

"Ter loucura por uma mulher"

Você sabe que não é possível viver assim, quer morrer, arrancar do peito esta doença e mais fundo ainda destruir as raízes retorcidas do desejo e abafar, estrangular e matar toda vida que ainda restou entre os dois.

"E depois encontrar este amor
Nos braços de um outro qualquer"

Então você sai de novo em direção ao drama, estaciona na calçada em frente ao prédio, entra sorrateiro, coração batendo na surdina: tum tum tum e você sobe as escadas, garganta de farinha, ervas daninhas crescendo no tórax, uma tosse de furor que não deságua em rios, uma canção sem volta.

"Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?
E por ele quase morrer?"
E você senta na escada já sem forças, o sangue ruge nas têmporas, nas veias, nas caudalosas vias por onde escorre seu amor doente, aprisionado e louco, seu amor bandido, seu amor terreno na Barra sem dono e sem razão, seu amor esquilo aprisionado na armadilha, seu amor cansado da guerra e você passa pelas mil gotas que escondeu nos olhos e escorrega pelos degraus e escorre pelo ralo e nem assim desiste.

Continua a subir.
"E depois encontrá-lo em um braço

que nem um pedaço do seu pode ser"
Enfia a chave no buraco negro do seu desespero e você sabe que não pode acreditar nos olhos que mentem e cerra as pálpebras e as luzes fagulhantes desenham corpos enlaçados, a cama, os lençóis, o corpo branco dela e as flores do enterro das suas esperanças, os lírios infinitos, um caminho sem volta. Uma lápide negra e nela escrito - nunca mais. E os enlaçados pés, as pernas nuas e tudo muito claro. Você abre os olhos para não ver.

"Há pessoas de nervos de aço
Sem sangue nas veias e sem coração"

Seus nervos são de papel crepom, são de elástico mole, se desfazem na chuva, você grita alguma coisa rude, alguma coisa torpe e ela se curva sobre o ventre - ah seu ventre que eu amava sua curva da morte, meu enterro. O som do coração tum tum tum, o sangue espirra pelo quarto, borra a cama, escorre pelo ralo junto com você, amigo, você foi embora antes de chegar.

"Mas não sei se passando o que eu passo
Talvez não lhes venha qualquer reação"

Você olha a janela aberta, o céu lá fora, você sabe que existe alguma coisa em torno, mas é tão distante, menos o silencio. Subtraindo o som do que já foi, nada restou – dois corpos enlaçados, lençóis vermelhos, uma alma que escorre devagar e o ralo que você abriu no meio dos destroços do seu amor.

"Eu não sei se o que eu trago no peito
É ciúme, despeito, amizade ou horror"

Você joga o revólver no chão e vomita no banheiro a alma em pedaços. Você retorna do ralo, pega alguma coisa que sobrou de consciência, pede desculpas ao tempo, volta atrás, desfaz a cena e recomeça.

"Eu só sei é que quando eu a vejo
Me dá um desejo de morte ou de dor."

Então desliga o rádio, diz adeus Lupicínio, senta na realidade e descobre, aturdido, que o amor é, simplesmente, o ridículo da vida.


[N.B. - versos incidentais da música Nervos de Aço, de Lupicínio Rodrigues]