sábado, 17 de outubro de 2009

Maitê Proença e a Gafe Histórica




D. João VI reinvadiu nosso território trazendo na sua esquadra real milhares de parasitas da Corte. Aqui chegando, desalojou o povo de sua moradia, sem direito a indenização, o que resultou no primeiro movimento brasileiro dos sem-teto. Daí foi um pulo para ser formado o MST e, um pouco adiante, a CGT. A CUT veio bem depois.

Além de comer e beber de graça, Sua Majestade Real e comitiva viviam na maior esbórnia, usando e abusando dos mancebos e mancebas a serviço da realeza. Sua Rainha Real, Dona Carlota Joaquina, além de abusada, insultou nossos brios patrióticos no seu retorno a Portugal: jogou ao mar, do convés do navio, a areia dos seus sapatos para não ter que levar nenhuma lembrança da terra que eles fizeram de gato e sapato. Mas todo mundo se calou e a ralé ainda aplaudiu.

O americano, antes de mostrar o branco massacrando o índio em seus faroestes épicos, mostra o índio atacando uma caravana indefesa e raptando criancinhas, aflorando o sentimento de justiça no tele-espectador. Assim, nunca vemos o branco norte-americano como o invasor, mas como o mocinho; automaticamente o índio se transforma no inimigo que deve ser varrido da face da terra. Filme de guerra também é a mesma coisa. Só mostra os episódios que o americano leva vantagem.

Nesse contar de vantagem, achamos que o americano é melhor em tudo, até mesmo na sua indecência. Já houve governante que disse: “O que é bom pros Estados Unidos, é bom para o Brasil”. Assim, paulatinamente, nosso cotidiano vai sendo pautado pelo uso e costume americano e o anglicismo é uma triste realidade que está a merecer atenção do Congresso Nacional. Até no arraial do Junco, cujas notícias chegam em lombo de jegue, já se aderiu à moda e dizem que o halloween deste ano será o maior sucesso.

Todo dia o homem come peixe e ninguém diz nada. No dia que o peixe como o homem, há um verdadeiro rebu e se decreta o fim dos cardumes. Foi o que aconteceu com Maitê Proença no dia que se meteu a gravar em terras lusitanas. Sentindo-se no dever de afrontar Carlota Joaquina e reparar toda nossa humilhação e dilapidação históricas causadas pelos conquistadores, confundiu alho com bugalhos, meteu os pés pelas mãos, e, numa crise de delírio novelístico global, sentou a pua no povo da antiga Corte, achando que a arte imita a vida. Literalmente. E mexeu com os brios patrióticos da moçada d’além-mar, que declarou guerra eletrônica aos descendentes de Tomé de Sousa e os donatários das capitanias hereditárias, mesmo sendo a nação brasileira signatária da ONU e tendo um povo pacífico, quase um cordeiro de Deus.

A brincadeira debochada e inoportuna de tão ilustre personagem midiática para o programa “Saia Justa”, da GNT, por pouco não causa uma crise diplomática entre os dois países e, ante a pressão da indignação pública e dos meios de comunicação de Portugal, a nossa querida atriz, escritora, e agora dublê de estrela do Youtube, sentiu-se no dever de se desculpar pelo apagão mental, cuja psicopatia delirante nem Freud conseguiria explicar as causas, muito menos os efeitos.

Pelo rufar ufano dos tambores, seremos os principais atores da fábula “O lobo e o cordeiro”, de La Fontaine, e quando nos faltar argumentos para provarmos que não turvamos a límpida água do rio nem que nada temos com os delírios da Maitê Proença, seremos dizimados pela ficção de George Lucas, adaptada para guerra das estrelas, cujo episódio só poderá ser “O Império contra-ataca”.

Assim, como até agora só vi mensagens intolerantes e vídeos no Youtube de deixar neonazista português parecendo sacristão, colocando todo o brasileiro na vala comum do preconceito histórico aflorado na alma lusitana, fico cá com as minhas divagações cépticas sobre se o tão cantado avanço civilizatório do século vinte e um conseguiu adentrar a Portucália ou se algum dia eles tiveram consciência de que não são mais uma nação de conquistadores e que há mais de dois séculos o Brasil não é mais colônia de Portugal.

Que a Maitê Proença se excedeu, não há como negar e a própria, ao pedir desculpas, reconheceu seu excesso. Mas querer culpar todos os brasileiros pelo que ela falou, ou culpá-la pelas anedotas de português que se conta aos montes em cada pedaço de chão desse Brasilzão, é passar atestado de inépcia total e dar razão ao anedotário popular.

Principalmente porque o tal vídeo foi produzido quatro anos atrás.





Os olhos verdes do Ciúme - Maria Helena Bandeira

O mar entra pelos olhos de Marina com uma intimidade de parentesco.


Olhos que trouxeram o verão para minha alma tempestuosa e no tempo da ira ficavam quase negros, oceanos de chuva.


Eu me afoguei naqueles olhos muito antes do final dos tempos. Quando perdi o paraíso em todos os sentidos possíveis.


Por causa deles, joguei biriba com seus parentes durante vários sábados perdidos e enfrentaria todos os finais de semana tediosos só para estar de novo ao abrigo de suas ondas.


A família de Marina era crente.


Crente de que tinha a salvação no bolso do colete e o mundo se dividia entre eleitos e perdidos. Eu sempre fora um perdido convicto, mas me tornei eleito por causa dela. E vivia feliz na inconsciência de meu estreito céu, definido pelas paredes do seu apartamento, onde nos encontrávamos como namorados antiquados, sob o olhar vigilante dos cães de guarda paternos.


Só que, distante daquela cena, no segredo dos seus olhos marinhos, Marina era uma labareda que tudo consumia no desejo implacável de arder em combustão. E quando finalmente foi ao meu leito estreito de solteiro, todas as previsões se confirmaram e o verdadeiro paraíso se abriu para mim em promessas cumpridas.


Era fogosa como seu olhar incandescente e eu vivia prisioneiro daquele encanto selvagem de tal maneira, que seria capaz de passar a eternidade inteira jogando biriba a seco, só para ter, um segundo, em meus braços, a dona daqueles olhos de mar agreste.


Mas (a felicidade tem sempre um “mas” espreitando perverso) apareceu Estevão, a serpente que iria me expulsar do paraíso.


Estevão era modesto e religioso. Capaz de recitar a Bíblia em todos os seus versículos com uma perfeição que mataria o próprio Satanás de tédio. O demônio não prevaleceria sobre ele porque a monotonia lhe tiraria as forças antes de começar a empreitada. Era tão chato que nem o próprio tentador se habilitaria a levá-lo para suas hostes. O Inferno não seria o mesmo depois da sua chegada.


Nem o meu Paraíso.


Encantados ao vislumbrar partido tão promissor (Estevão cortejava Marina com um descaramento proporcional à hipocrisia com que me cumprimentava, a mão suada e mole, os olhos míopes encarando os meus por trás das lentes grossas, de uma piedade vaga e premonitória) os pais de Marina encorajavam o sedutor, fingindo me agradar com palavras mansas.


Enquanto crescia o entusiasmo dos parentes pelo outro, Marina ia se tornando estranha, esquiva, fugidia. Já não me encarava com aqueles olhos de esmeralda líquida. E o mar se fechava, tempestuoso, diante de meus tímidos argumentos de rejeitado. Ela se enfurecia, a voz meiga percorria a escala em vários tons para reclamar do meu ciúme absurdo. Logo de quem? Do pobre Estevão, um rapaz corretíssimo, religioso, um amigo desinteressado, cuja única intenção era colocar nós todos juntos o mais rápido possível no caminho do seu Paraíso sem-graça em que ficaríamos eternamente a jogar um biriba interminável.


Marina se aborrecia com minhas ironias e ia embora zangada comigo.


Contra os fatos não há argumentos.


Mas a verdade é que não existia nada que eu pudesse dizer, concretamente, do comportamento de Estevão. A mão que segurava a dela, não demorava um segundo a mais do que o estritamente exigido pelo meu olhar vigilante. Nunca uma palavra de duplo sentido, apenas aqueles olhos de cobra, vigiando, esperando a hora, deixando-se escorregar sobre o corpo esguio e sobre os olhos verdes de Marina.


E minha vida virou um inferno.


Seguia Marina pelos cantos da casa e da vida. Ligava milhares de vezes para seu celular, esperando ouvir a voz masculina sussurrando do outro lado, enquanto angustiado, o ouvido colado ao fone, investigava os sons que circundavam a voz amada.


Não conseguia mais trabalhar ou estudar. Não conseguia mais dormir.


E ela cada vez mais fria, mais distante. Os olhos quase sempre gelados. E a eles eu também espreitava, aguardando sinais que não desejava ver. Ou, quem sabe, esperando descobrir neles uma resposta positiva ao meu ciúme para acabar com o tormento que me consumia. Queria saber Marina devassa e mentirosa, adúltera como a imaginava, nos braços falsos de Estevão, gemendo em lúbricos desmaios, me excluindo. Expulso do Paraíso, mas justificado. Explicado. Digno. Não um miserável espião de seus menores suspiros.


Finalmente Marina me deu razão. Com olhar cinzento de adeus, se despediu do meu ciúme e das minhas desconfianças, com o desprezo de quem já tem garantia de felicidade comprada em lote alheio.


Eu me humilhei é claro, rastejei, pedi perdão de joelhos, rezei, fiz promessas e vergonhas inacreditáveis, joguei cinzas nos cabelos, comecei uma greve de fome, mas não adiantou.


Marina se casa hoje com Estevão.


Neste momento decisivo do meu destino, não sei se dou um tiro na cabeça ou se faço um curso intensivo de biriba emocional para aprender a dar melhor as cartas, interpretar o jogo com sabedoria e, principalmente, aprender o jeito certo de bater descartando o morto. E ainda deixando que ele pense que está vivo.


Como se fosse possível, longe daqueles olhos de oceano.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Leituras inesquecíveis II


As primeiras leituras da escola e o mundo maravilhoso de Andersen e dos Irmãos Grimm

Por Edna Lopes



*“Em kairós sou alma menina
com muito para aprender e viver.
Eterna adolescente
sonhando de olhos abertos,
suspirando ao ler poemas e
encantada com aventuras de capa e espada.”


Por que será que, desde sempre, tudo em mim tem um quê de fantasia? Por que não
largo as saias da literatura fantástica, dos contos de fadas, dos seres mágicos, dos heróis de capa e espada?


Sempre me pergunto e me respondo, porque sei tudo que li e vivi influenciou, e muito, o que me tornei e por isso assumo meu romantismo sem nenhum pudor. Assumo que meu lado criança me salva, cotidianamente, das loucuras do mundo adulto.


Dos tempos de ida à escola primária a partir dos sete anos, descobri o livro didático, suas leituras e seus exercícios. Uma festa ler tudo aquilo embora não entendesse bem muita coisa do que estava escrito ali. Apesar de que hoje tenho a convicção de que muitos (ou quase todos), sejam pedagogicamente questionáveis, sinto muito carinho por eles, pois sei o que significaram em minha vida.Tanto que sempre ficavam muitas lições sem responder ao longo do ano e, nas férias, era a minha diversão preencher o livro todo.


Descobri também que a biblioteca da escola rural, uma velha estante de mais ou menos um metro e meio de altura por um metro de largura, guardava um tesouro inestimável. Livros, livros, e eu nunca tinha visto tantos! Grandes e ilustrados, de poucas páginas, pequenos, mas grossos, capas de todas as cores, formatos diversos, texturas inimaginadas.


Quando li A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS, chorei na cena em que, na casa do prefeito, ela vê pela primeira vez uma biblioteca e, maravilhada, pede para tocar nos livros. Na lembrança, me vi menina diante daquela estante esquisita, de olhos arregalados, cobiçosos, encantada com as possibilidades que aquela visão me proporcionava.


Passado o primeiro impacto, deixei de brincar no recreio para ficar remexendo na estante, folheando-os, devorando os de poucas páginas e sonhando quando poderia ler um daqueles de muitas e muitas páginas. Um dia criei coragem e perguntei à professora se poderia levar algum emprestado e ela respondeu que desde que tivesse cuidado, poderia levar qualquer um.


Tempos depois, ao ler Clarice, reencontrei esse sentimento em FELICIDADE CLANDESTINA. Mais que uma menina, era uma mulher tomando ás rédeas de sua vida, fazendo suas primeiras escolhas.


Àquela altura já havia lido muitas histórias e também havia contado muitas, de memória, a meus irmãos menores, mas queria que eles vissem as ilustrações, que me ouvissem lendo-as, com todos os detalhes. Na época não liguei quem era o autor ou os autores, mas o mundo do Patinho Feio, da Cinderela, da Branca de Neve, do Soldadinho de Chumbo, da Menina dos Fósforos, do Príncipe Sapo e de tantos, tantos outros personagens tão queridos até hoje, invadiu o meu e nunca mais eu fui a mesma.

*Frag. de “Cronos e Kairós: Temporalidades da Alma”, de Edna Lopes





quinta-feira, 15 de outubro de 2009

VII Bienal de Pernambuco



Fim de tarde na agitada bienal do livro em Recife. A simpática repórter de um jornal local dirigiu-se à única mesa existente no stand onde molhávamos a garganta, puxou uma cadeira, sentou-se, ligou o gravador e perguntou ao grande homenageado da feira literária que bebericava um vinho português:


- Carrero, no seu entendimento, por que as pessoas devem vir à bienal?


Transeuntes andavam entre as centenas de stands de editoras e livrarias indiferentes aos motivos que os levaram até ali. Alguns carregavam pesadas sacolas cheias de livros. Pensei cá com os meus botões enquanto o escritor fazia suas alegações: “Ela, ao que parece, veio encher linguiça para o leitor da sua coluna”. Ao contrário da maioria necessitada de um bom ou mal motivo, eu estava ali a preencher a ociosidade do tempo com uma tragada de cultura e uma boa dose de cachaça envelhecida em barris de carvalho, gentilmente servida aos clientes especiais no stand de uma livraria-camelô, dessas que são montadas com o fim específico da feira, sem endereço fixo, CGC nem inscrição estadual.


Dentre os motivos que se deve ir a uma bienal, existe um que mexe diretamente no bolso do cidadão ou bolsa da cidadã: as promoções de livros. Bons livros que se pode comprar a cinco ou dez reais, uma pechincha perto do que se cobra numa livraria. Outro motivo não menos importante é a enxurrada de títulos à nossa disposição, sem que precisemos abusar da paciência às vezes não tão paciente assim do vendedor atrás de um balcão. Montanhas de livros ficam à nossa mercê, com preços à mostra, basta escolher e se dirigir ao caixa, que geralmente são rápidos no atendimento nas bienais. Também há um número grande de escritores, novos ou macacos velhos, desconhecidos ou famosos, autografando suas obras.


Numa bienal de tudo há um pouco, do clássico ao popular: cordelistas, violeiros, sanfoneiros, zabumbeiros, eruditos, menestréis, trupe representando alguma coisa, palhaços animando a garotada, palestras, oficinas para todos os gostos e, para quem ainda está na ativa, o velho flerte, principalmente da nossa linda juventude em uniforme escolar. Para seduzir ainda mais os clientes-leitores, parece que as editoras selecionam as funcionárias em concurso de beleza. Quanta gente bonita existe nos stands!


Nessa bienal em Recife teve até feira de artesanato misturada com livros e vendedores de castanha de caju, de caranguejo e outros produtos da terra, como cachaça e mel de abelha italiana e de uruçu. Só faltou a farinha de Araripina. Em uma ampla sala de alimentação improvisada do lado de fora do Centro de Convenções, bem organizada e refrigerada, se encontrava de tudo, desde carne de bode assada na brasa ao acarajé da Bahia.


Dos amigos que estiveram autografando, só encontrei o Raimundo Carrero. Como em sua terra ele é um cidadão popular e esteve presente diuturnamente à bienal, a justa homenagem que lhe fizeram quebrou o ritual sisudo dos escritores que se sentem deuses quando são homenageados, e só aparecem no primeiro dia e mesmo assim só dão atenção aos seus patrocinadores.


Aleilton Fonseca, vice-presidente da Academia Baiana de Letras, que também lançou seu livro na bienal, retornou um dia antes da minha chegada; Carlito Lima, o grande escritor alagoano e secretário de Cultura da cidade histórica de Marechal Deodoro, chegou exatamente no dia que peguei estrada de volta. Acho que nos cruzamos no meio do caminho, haja vista não haver vôo comercial entre Maceió e Recife.


No fim deste mês e início do outro acontece a bienal de Maceió, também no centro de convenções daqui. Como nas anteriores, participarei todos os dias, pois sempre há coisas interessantes a se ver e a se ouvir. Tal qual a bienal de Recife, cuja minha presença se deu por causa, principalmente, das oficinas de Raimundo Carrero, na daqui haverá também palestras de amigos ou conhecidos como Maurício Melo, Audálio Dantas e Ignácio de Loyola.


E o imperdível show de Jessier Quirino.






quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Leituras inesquecíveis I – Almanaques



Por Edna Lopes



“A palavra almanaque ou Almanach, do árabe al-mana_kh). Segundo o historiador Stephanos Demetriou Stephanou Neto, al- manakh (literalmente “lugar em que o camelo se ajoelha”) era o ponto de reunião dos beduínos para conversar e trocar informações sobre o dia- a- dia. Essa palavra adquiriu, no Brasil, o significado de uma obra impressa de conteúdo científico, literário e humanístico. O primeiro e, provavelmente, mais duradouro dos almanaques brasileiros foi o Laemmert, publicado entre 1843 e 1937...”(da Wikipédia..)

“Desde menina sou traça”, é uma frase que começo um dos meus poemas, metáfora assumida da minha compulsão por ler, “traçar”, devorar tudo que parecia livro. Desde que descobri o mundo da leitura nenhum impresso passou incólume aos meus olhos. Todos foram devidamente lidos, fuçados, embora nem sempre devidamente compreendidos.


No raiar da infância a minha mãe pedia minha ajuda nas tarefas de casa: “Filha, passe a vassoura na casa!” Ou ainda: “Filha, arrume sua cama!” E eu fazia o que me pedia, mas se encontrasse algo para ler no meio do caminho, esquecia o mundo. Às vezes minha mãe estranhava o silêncio e me encontrava sentada em meio ao lixo, lendo um pedaço de jornal, ou sentada na cama desarrumada, com um livro no colo. Invariavelmente minha mãe se aborrecia, dizendo não ser hora para aquilo e a arenga seguia ao longo do dia.


D
estes tempos guardo a lembrança de ler o meu primeiro almanaque. Era o Almanaque do Jeca Tatu, personagem imortal de Monteiro Lobato, meu autor mais querido de todos os tempos. “Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia, e de vários filhinhos, pálidos e tristes...” E eu conhecia tantos Jecas! Além de achar, à época, que o BIOTÔNICO FONTOURA curava qualquer mal, aprendi, de cor, cada palavra daquele livreto, de tanto que o lia. Já adulta, li Urupês e chorei de saudades.


Tempos depois minha avó me mostrou a Folhinha do Coração de Jesus, uma espécie de mini almanaque, um bloquinho com calendário, com conteúdo muito variado: receitas, piadas, mensagens, noções de higiene, santos do dia, curiosidades que eu devorava a cada folhinha que ela destacava à medida que passavam os dias.


Os almanaques eram minhas revistas de variedades e, através deles, o mundo chegava até aquele lugar sem energia elétrica, sem estação de rádio ou correio, nos confins do nordeste. No meu mundo de menina da roça, foram fundamentais, pois através deles entrei em contato com um mundo que não fazia ideia que existisse e aprendi muito também com todas aquelas informações que lá estavam. Outras publicações do início do séc. XX, anuários, lunários, além dos almanaques, eram leituras obrigatórias das famílias, como fonte de atualização e entretenimento.


Gosto muito deles até hoje. Meu material de trabalho para a formação de professores inclui sempre os Almanaques Aluá 1 e 2, dos quais sou fã incondicional, publicados pela ONG SAPÉ (RJ) e vários números da revista Almanaque Brasil de Cultura Popular, que também acesso virtualmente no end. http://www.almanaquebrasil.com.br/


Nos meus momentos de muito cansaço recorro a leituras leves, que me dão prazer e alegria, além de saciar minha fome e vicio de ler. São minhas “leituras de almanaque”, momentos que o coração e a alma agradecem.







Longe de ti



Por Leila Barros




Longe de ti só pago mico
Derramo o leite no fogão
Saio de pijama no portão
Fico descabelada e triste


Longe de ti pareço louca
Uso um tênis de cada cor
Saio despenteada ou com touca
Não sou flor, sou passarinho

Longe de ti eu desafino
Bagunço a cozinha e a cabeça
Não sou inteira e nem meia
Apenas um quarto crescente


Se demorares, azar o teu

Longe de ti estarei bem

Dizem que a fila anda

Farei andar a minha também...




terça-feira, 13 de outubro de 2009

Anotações sobre o conto



Por Antonio Torres


Expressão de mitos humanos universais, suas origens remontam aos casos da cultura oral, envolvendo fatos verídicos ou lendários, reproduzidos com fantasia, pois, como todos nós sabemos, quem conta um conto acrescenta um ponto.

Os elementos básicos do seu conteúdo são a imaginação, a fabulação, a lenda e o anedótico. Pela brevidade da narração, o conto requer densidade, contenção de linguagem e sagacidade. Credita-se ao Egito a produção dos contos mais antigos do mundo, que foram reunidos numa antologia por Maspéro, no ano de 1889. Autores árabes produziram as histórias de As mil e uma noites, que atravessaram os tempos. Na Idade Média, e adentrando a Renascença, surgiu a linha da sátira e do realismo, de que são exemplos o Decameron de Boccaccio, os Contos de Canterbury, de Chaucer, seguidos pelos de La Fontaine. Os contos fantásticos apareceram na época do Romantismo francês, com Nodier, e alemão (irmãos Grimm e Hoffman). Em meados do século 19, o conto voltou ao realismo, com Daudet, Guy de Maupassant, Dickens, Mark Twain. Entre os mais memoráveis contistas do mundo ocidental estão Edgar Allan Poe, Alexandre Puchkin, Anton Tchecov, e o nosso Machado de Assis, unanimemente aclamado como o maior contista da língua portuguesa. É outro consenso também que o conto encontrou o seu modelo clássico em Poe, Maupassant, Machado de Assis e Tchekhov.

Um conto pode ter meia página ou quantas forem necessárias para o autor contar sua história.

As regras clássicas do conto pressupõem começo, meio e fim. No começo, o contista cria um quadro no qual o personagem está inserido. Seus primeiros movimentos vão revelar o seu conflito-básico.

No meio, será apresentada a sua reação a esse conflito e o que ele fará para solucioná-lo.

O fim é a resolução do conflito. Ou, como diria Júlio Cortazar, no fim o conto tem que vencer o leitor por nocaute. É dele também esta outra lição: “O conto tem que chegar ao fim como chega ao fim uma grande improvisação de jazz ou uma sinfonia de Mozart. Se não detiver na hora certa, vai tudo para os diabos”.

Em seu livro Itinerários do conto – interfaces críticas e teóricas da moderna short story o contista baiano Hélio Pólvora nos ensina que “o conto clássico, tal como estruturado pelos seus fundadores Gogol e Poe, e desenvolvido por Maupassant, tinha como principais elementos de composição: a) o plot, que é, de acordo com a poética de Aristóteles, o acontecimento central ou os fatos que conduzem a tal acontecimento, ou, melhor ainda, a consequência dos seus desdobramentos no destino da personagem maior e, quando existem, das personagens de apoio; b) o ponto de vista, que, com seus traços negativos e/ou positivos, é a soma das reações da personagem ao seu problema, vistas e julgadas também pelo leitor; c) o cenário, os diálogos, ou o monólogo, os prolongamentos da ação, os conflitos, a abertura e o final”.

Nesse seu livro, indispensável a quem se interessa pelos segredos do gênero, Hélio Pólvora esclarece: “O conto maupassantiano [...] caracteriza-se por um desfecho em geral inusitado, de efeito perdurável na sensibilidade do leitor”. O que não deixa de ser o clássico final epifânico, ou simplesmente surpreendente, a ponto de nos nocautear inapelavelmente, tal como queria Júlio Cortazar.

A partir do primeiro pós-guerra, ou seja, da década de 1920, o conto se tornaria uma forte expressão norte-americana, graças a autores como Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, William Faulkner, William Sorayan, Carson McCullers, Truman Capote e etc. Na América hispânica teria um trato singular nas boas mãos dos argentinos Jorge Luis Borges e Júlio Cortazar, do mexicano Juan Rulfo, do colombiano Gabriel Garcia Márquez e por aí vai. No Brasil, surgem tantos e tão poderosos contistas que quase que dá para encher uma lista telefônica. Citemos apenas alguns nomes básicos: Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Murilo Rubião, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, João Antônio, Ignácio de Loyola Brandão, Nélida Piñon, Wander Piroli, Roberto Drummond, Ivan Ângelo, Moacyr Scliar, Domingos Pellegrini Júnior, Sérgio Sant’Anna, Luiz Vilela, João Gilberto Noll, Caio Fernando Abreu... E há ainda os novos e novíssimos que dariam outra lista imensa. Os que ainda não estão nas vitrines, podem ser vistos nos blogs, que hoje se multiplicam mais do que no milagre dos peixes.


Indicação de leituras:

1. Itinerários do conto – interfaces críticas e teóricas da moderna short story, de Hélio Pólvora: Editus – Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus/Itabuna, Ba (www.uesc.br/ e-mail: editus@uesc.br), 2000.

2. Decálogo do perfeito contista, de Horácio Quiroga: LPM, Porto Alegre, 2009.

3. Os cem melhores contos brasileiros do século XX, antologia organizada por Italo Moriconi: Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2000.