sábado, 7 de novembro de 2009

Sobre Pessoas - 2



Atendendo a pedidos, adianto mais uma crônica do livro Sobre Pessoas, de Antonio Torres.

Para este fim de semana, nada melhor que esta entrevista com o imortal cineasta Glaubér Rocha.


De Sobre Pessoas 2 - Glauber Rocha

Dois encontros com Glauber

Gênio ou doido? Agora que o transformaram em personagem mitológico, recordo que o vi de perto (e por duas vezes) e ele se comportou como uma pessoa normal. Foi em São Paulo, no lançamento lá de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Ano: 1964.

Confesso, porém, que quando o ator Geraldo Del Rey me disse que Glauber Rocha havia marcado a entrevista para as 8 da manhã (e de um sábado!), achei que a sua fama de doido tinha algum fundamento. Madruguei para chegar pontualmente à casa do Geraldo, onde ele estava hospedado. Nem acreditava que Glauber, a figura mais discutida daquele momento (um crítico carioca chegara a escrever 25 dias seguidos sobre o seu filme), tão endeusado quanto detratado, e assim atingindo todas as colunas da glória, fosse receber um dos editores (o outro era o Franco Paulino) de uma revisteca chamada Finesse, que lembrava uma marca de papel higiênico. E que ainda por cima fora herdada de um colunista social falido, pelo gerente do hotel em que ele morava, como pagamento da sua hospedagem.

Uma sucessão de acasos fez com que fôssemos convocados por um repórter - de O Cruzeiro -, e poeta que admirávamos, o gaúcho de Rosário do Sul Carlos de Freitas, para tocá-la adiante. O nome da revista era ruim, ele disse, mas podíamos fazer do legado do mosquito de bunda de grã-fino uma folha de rosto da cidade. O hotel garantia os custos da gráfica, pelo direito a um anúncio permanente na quarta capa. O resto era conosco. Mas sem salário. Tudo pela arte.

Topamos.

E fizemos com que a Finesse passasse a circular no eixo boêmio entre o Teatro Oficina, de José Celso Martinez Correia, ao Arena, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri – estendendo-se um pouco mais dali até o Juão Sebastião Bar, de Paulo Cotrim, que comprava uma centena de cada edição, para oferecer a seus clientes mais ilustrados. A tiragem, porém, era modestíssima: mil exemplares. O que isso poderia interessar a um Glauber Rocha, cuja carreira subia como um rojão de São João, em todas as páginas?

Pois acredite. Glauber já estava de pé às 8 horas da manhã daquele sábado. E, pelo visto, era a única pessoa acordada naquele prédio da Rua Santo Antônio, logo ao final, à direita, do Viaduto Maria Paula, e bem próximo do Ferro´s Bar, onde Geraldo Del Rey e sua bela Tânia deviam ter varado a madrugada. Com certeza ainda estavam em sono profundo. Eles e toda a vizinhança. Sinais de gente ali só os das minhas pisadas ao deixar o elevador e me encaminhar à porta do apartamento. E os passos de Glauber Rocha atrás dela. O silêncio permitia perceber que ele rondava na sala, à espera do toque da campainha. Recebeu-me com um formal aperto de mão. E não fez qualquer menção para nos sentarmos. Vai ver uma conversa ali iria acordar os donos da casa, pensei. Então puxei do bolso duas laudas com as perguntas que pretendia lhe fazer.

- Posso deixar isto, para você responder depois? – perguntei-lhe, falando baixo. Ele tinha 25 anos, apenas um a mais do que eu. Daí não chamá-lo de senhor.

Com um gesto de assentimento, acompanhado de um “Hum-hum”, deu uma olhada rápida no questionário datilografado, colocou-o sobre um móvel ao nosso lado, logo à entrada do apartamento, e me convidou para tomar um café com pão e manteiga, no botequim da esquina. Seu mal era a fome, voltei a pensar. Se não, o que havia sido feito da voz daquele cabra que tinha fama de ser falador como o cão? Às 8 horas da manhã, Glauber Rocha não combinava com a lenda noturna a seu respeito, que circulava nos bares de São Paulo. Nem parecia o autor de um texto exuberante – Memórias de Deus e do Diabo em terras de Monte Santo e Cocorobó -, que me provocara um impacto tão forte quanto um conto de João Antônio, o Malagueta, Perus e Bacanaço, publicado na mesma revista, a Senhor, que era editada no Rio, e que todo paulistano “por dentro” lia. Hoje, traduz-se esse “por dentro” como cult, ai! Meus sais!

Mas ora! Ele ia se dar ao luxo de sentar-se diante de uma máquina de escrever para trabalhar de graça para uma revista nanica! E ainda tendo de pagar do próprio bolso o desjejum do seu entrevistador! Era pouco ou queria mais?

Sim, ia ter mais.

De pé, mal-ajambrado nas vestes matinais, a barba por fazer, o cabelo desgrenhado e o umbigo no balcão do botequim, já matando quem o matava, Glauber soltou o verbo. E disse que havia lido todo o último número da tal revistinha. Elogiou o projeto gráfico (também, era de Valdi Ercolani, um diretor de arte top – meus sais de novo! – de linha). Quanto ao conteúdo editorial, tinha críticas a fazer, com um pedido de desculpa por estar se metendo em meu trabalho. “Tenho alguma experiência em jornalismo”, ele disse, modestamente. “Editei cadernos culturais na imprensa baiana e agora colaboro regularmente com a revista Senhor, que é muito bem feita, como você deve saber”. Sim, sabia. Agradeci-lhe pelo interesse, leitura de tudo, comentários que quisesse fazer. Aí ele se sentiu à vontade para criticar os textos da revista, deixando-me embasbacado com sua capacidade de citar de memória trechos e mais trechos deles, não poupando os que considerava bobos.

- Veja se isso é lá uma boa maneira de começar uma frase: “Em sã consciência...” Você devia ter copidescado essa bobagem!

Expliquei-lhe que o autor era uma estrela da imprensa paulista, assim como os demais, todos grandes nomes do jornalismo, das letras e do teatro, que escreviam de graça. A revista era apenas uma curtição, para quem escrevia nela. Nós, os editores, Franco Paulino e eu, não nos sentíamos no direito de mexer nos textos de uma turma com tanto espírito de colaboração.

Foi aí que ele disse:

- Sendo assim, o negócio fica complicado. Mas como paulista escreve mal, hein? Você não acha?

Não. Não achava. Mas o jeito que ele falou isso foi engraçado. Encerramos o nosso café da manhã com pão e manteiga e uma boa risada. De pé. Será que ele nunca se sentava?

Na despedida, Glauber prometeu entregar a entrevista na segunda-feira seguinte, à noite, na porta do cinema, onde me enfiaria para a estréia paulistana de Deus e o Diabo na Terra do Sol.


O segundo encontro

Cheguei lá à hora combinada. E lá estava ele, de barba feita, banhado, escovado e vestido com um paletó azul. E a entrevista num bolso. Fez a entrega dela, em mãos. E me empurrou para dentro cinema.

Vi o seu filme com os pés em suspenso, sem conseguir mantê-los no chão. Grande filho da mãe. Como havia chegado a tanto, mais ou menos na minha idade? Quando os aplausos cessaram, um homem começou a discursar, com a voz inflamada, no mais altissonante estilo revolucionário. Saio. E reencontro o Glauber, andando de um lado para o outro, na ante-sala do cinema. Parece que ele nunca se cansa de ficar de pé, pensei.

Ao me ver, parou. E perguntou:

- O que você achou?

- É o seu filme definitivo.

- Não diga isso. Ainda vou fazer muitos.

Ali fora, dava para se ouvir uma nova saraivada de palmas, em meio a assovios e apupos. Glauber balançou a cabeça de um lado para outro, visivelmente contrariado. Disse:

- Estou preocupado com essa assembléia aí dentro. Pode dar encrenca com os militares.

Então me contou que, naquele ano do golpe militar, ele fora obrigado a exibir o Deus e o Diabo na Terra do Sol para um grupo de oficiais do Exército, para obter a liberação da fita. Numa fala do “capitão” Corisco, interpretada por Othon Bastos – “Homem, nessa terra, só tem validade quando pega nas armas para mudar o destino. Não é com rosário, não, Satanás! É no rifle e no punhal!” -, ele sentiu uma mão bater-lhe no ombro. Apavorado, olhou para trás. E viu um major alagoano, que lhe disse: “Pode botar esse filme nos cinemas, cabra. É um filme de macho!”

Nunca mais o vi, em pessoa. Nunca mais ele teve 25 anos e eu 24. Nunca mais foi tão fácil chegar perto de um homem tão talentoso, já a caminho de tornar-se uma celebridade internacional, com tanta atenção para um qualquer, que tomava o seu tempo a troco de nada, sem que ele se sentisse assim. Glauber Rocha me entregou, numa segunda-feira, as respostas ao questionário que lhe passei, no sábado anterior. E isso num momento em que ele estava envolvido com o lançamento do seu célebre filme, ou seja, em que estava no centro das atenções. Visto isso agora, em retrospectiva, me impressiona tanto a disposição dele em responder a todas as minhas perguntas, quanto a epígrafe que escreveu para a entrevista, que vai abaixo, do jeito que ele fez, entre parêntesis e em letras minúsculas:

(se eu morrê nasce outro,
porque ninguém nunca pode
matar são jorge, santo do
povo – capitão corisco, plano
265, seqüência 446, de um fil-
me rodado em monte santo
e cocorobó, sertão brabo)


Epílogo

A entrevista de Glauber foi endeusada e detratada, como era previsível. Um sucesso! Mas, depois da sua publicação, a revisteca iria ficar com os seus dias contados. Só teve mais uma edição, com destaque para uma reportagem de Eurico Andrade, intitulada “Chapéu de Couro, o Cangaceiro Bossa Nova”.

A última reunião com o patrocinador:

– Um leitor da revista esteve aqui e me fez muitas perguntas - disse o gerente do hotel que bancava as faturas da gráfica. – E nenhum elogio ao trabalho de vocês.

Era um coronel.

Mesmo tendo o seu nome no expediente como diretor-proprietário, aquele gerente (chamava-se Pio) nunca se metera no que estávamos fazendo ou deixando de fazer. Agora estava se metendo, de uma vez por todas. Por medo, o mais humano dos sentimentos, já o disse o sábio Millôr Fernandes.

E assunto encerrado.


A entrevista de Glauber Rocha, aos 25 anos

(Com os devidos agradecimentos ao cineasta Eduardo Escorel, que a guardou, e a Anabela Paiva, que selecionou os trechos que vão aqui, republicados por ela e Regina Zappa, na capa do Caderno B do Jornal do Brasil, em 27 de dezembro de 1997. Não menos: a Franco Paulino).


“Eu esnobo a técnica: não sei mexer em moviola, não manjo nada de som. E acho que câmera tem alma”.

Sobre Deus e o Diabo na Terra do Sol:

“Não tem nada de novo. Desde a criação do mundo que Deus anda de mãos dadas com o diabo. Apenas o velho fica sempre esquecido e por isso quando é redescoberto aparece com ar de novidade. O filme é tão novo como as baladas romanescas da Idade Média, como o Apocalipse, como a tragédia, como o latifúndio que só é novidade (mesmo) no nosso sertão”.

Técnica

“Segundo Alberto Cavalcanti, a técnica esconde o lixo. Eu esnobo a técnica. Pra seu governo, não sei pegar em fotômetro, não sei mexer em moviola, conheço mal o jogo de lentes, não manjo nada de som. Mas sei que a melhor técnica é aquela que expõe aquilo que a gente quer dizer. Assim, eu e o meu parceiro de fotografia, Waldemar Lima, estamos sempre em expectativa, observando os atores, a paisagem, a luz, buscando o clima. O clima vem quando a câmera fica mágica. Câmera tem alma. O negócio é fazer mandinga e esperar o santo descer. Aí então a gente é bem capaz de fazer um take de quatro minutos, na mão, entre luz e sombra, entre foco e fora de foco, balançando ou não. Será possível ir aos infernos de outra maneira?”

Repercussão no exterior

“Esse negócio de repercussão na Europa é conversa típica de gente subdesenvolvida e colonizada. Pra mim, fama na Europa não significa nada. É verdade, falando sério. A crítica francesa, falando bem ou mal, não muda nada. Eu não topo aqueles caras dos Cahiers - um bando de literatos, que vive na superestrutura, falando bobagem. Os italianos são melhores, mas são radicais, historicistas demais. Os ingleses são quadrados e frios. Assim, pouco me interessa o que me digam. Falaram bem de Deus e o diabo mas se tivessem falado mal eu juro que não me abalaria. A única opinião válida para mim é a da juventude e do público. A juventude gostou pra valer, e o público gostou e desgostou. Assim eu acho que vinguei 75% e isto já é muito, e isto me enche de vontade pra jogar pra frente e botar pra jambrar na próxima fita”.

O que Glauber quer?

“Fazer onda. Abrir bate-papo sobre assuntos sagrados. Demolir os figurões, os produtores boçais, os diretores comerciais, os exibidores ladrões. Discutir e achar que o cinema novo, o cinema de autor, é o que vale. Tudo o que digo pode não ter importância um mês depois, mas na hora funciona. Sempre. É por isso que eu tenho muitos inimigos. Mas tem colegas que compreendem e continuam meus amigos. Veja o (Walter Hugo) Khoury, por exemplo. É um autor, um artista sério, pesquisador, firme nos seus propósitos. Eu discordo do cinema dele, mas apenas no plano das idéias. E no fundo admiro a obsessão de um cineasta que procura um objeto difícil mas que, hoje acredito, será alcançado. Digo isso para esclarecer a quem pensa que eu combato o Khoury”.

Arte brasileira

“Não existe ainda a verdadeira arte brasileira. Estamos procurando. O Tom (Jobim) na música, o (Jorge) Mautner no romance, o (Lindolfo) Bell na poesia, o (Gianfrancesco) Guarnieri no teatro e muitos outros – todo mundo procurando, cavando a terra e a angústia, cavando a alma e o sistema social, cavando a estética e a linguagem. Todo mundo está atrás, trabalhando em várias veredas – como no sertão. Acho que a arte brasileira está nascendo desde o teatro de Anchieta – é um processo que vai levar mais 600 anos. A raça, a terra, a natureza – o nacionalismo vem desde aquele horroroso Basílio da Gama. José de Alencar, Lima Barreto, os poetas românticos, Augusto dos Anjos, Machado de Assis, Raul Pompéia, Nepomuceno, Mário de Andrade, Portinari, Volpi, Villa-Lobos, Niemeyer, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, o poeta Vinicíus, Nelson Pereira dos Santos e Zé Kéti – estão todos na jogada. É preciso ter abertura, abertura mesmo, porque todo grande artista é um revolucionário. Arte e liberdade é um corpo só, cangaceiro de duas cabeças, como dizia o capitão Cristino, vulgo Corisco”.

O sertão

“Eu sou do sertão. No sertão tem muitas veredas, como diz o mestre Guima. No sertão, afinal de contas, a gente bebe uma selvagem metafísica. Aliás, sou do sertão, modéstia à parte, como também o mestre Villa-Lobos. Esta é a mistura – o resto é coisa do cão, do demo, do sol, do amor. Está por dentro?”

Público

“O povo entende na medida do possível. Não entendo direito de público. Acho que o negócio é não ser quadrado, isto é, dar chance para todos pensarem. Ser intelectual ou não ser é besteira. Intelectual, pra mim, é um camarada que fica falando em mesa de bar e pichando todo mundo”.

Influências

“Faulkner, Buñuel, Eistein e Joyce, Graciliano Ramos e bate-papo de esquina, a Bíblia e sobretudo Villa-Lobos, Kurosawa e os westerns americanos, Rosselini e Paulo Saraceni, a Bahia e a luz atlântica, o amor, o meu poeta Vinícius, Guimarães Rosa e música do Nordeste e Carlos Drummond, São Jorge, Sebastião, Parsifal, Visconti, Romeu e Julieta, Aquiles e Salomão, Didi, Pelé e Garrincha – sem os quais é difícil fazer com classe, eficiência dramática e malícia improvisadora que destrói os esquemas e transforma a tela em projeção da vida. Eu sou produto da minha vida mesmo e da minha razão que tenta emergir do caos, caos com K, se é que o Mautner aceita”.

Resistência cultural

“Acho que o melhor negócio agora é resistência cultural. O povo precisa de resistência cultural. Muita coisa está errada, os artistas pensavam mas não estavam com o povo. Só deve existir a estrutura pessoal, libertária, rebelde, incomodativa, revolucionária e transformadora do artista falando numa linguagem tão profundamente humana que todos entendam. Se não tivermos resistência intelectual vamos cair na mais negra miséria, vamos cair no fascismo, vamos ver a democracia ser apenas um rótulo demagógico. Quando um povo começa a ser amordaçado, o artista deve abrir a boca bem alto e falar tudo, denunciar. O inimigo da política é a Arte. Você veja na Espanha, veja na Rússia, veja nos Estados Unidos. Quando os caras engrossam de um lado, os artistas engrossam do outro”.

Gênio ou doido?

“Não sou nada disso. Talvez eu seja apenas inconseqüente. Deixa a maturidade chegar para eu ver direito. O que eu acho, como diz o poeta Vinícius, meu irmão mais velho, é que quem de dentro de si não sai entra direto pelos canos. O negócio é câmara na mão e idéia na cabeça”.

Entrevistas

“A gente deve falar pouco, porém firme. Agora, se é para falar mesmo, tem que ser como mestre Villa: os violoncelos tudo doido, as trompas tudo alucinada, os tambores tudo correndo, os travelling, tudo montado sem continuidade. Geraldo Del Rey e (Antônio) Pitanga gritando, Waldemar no rodopio, o mar atlântico rebolando – de uma forma que quando a razão recusa o coração aceita e perdoa. Não é assim no amor?”



sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Leituras inesquecíveis V:

A literatura de lazer e o papel das bibliotecas em minha vida

Por Edna Lopes

De Escritor Aleilton Fonseca Visita Biblioteca Pública Antonio Torres






“Tudo é mentira. Ao mesmo tempo, tudo é verdade, tanto que após a viagem, que alguns chamam leitura, o leitor, se tiver sorte, pode ficar compreendendo um pouco melhor sua própria vida, as outras pessoas e as coisas do mundo." Ricardo Azevedo


Desde que me lembro, convivo com um problema comum, mas não muito confortável para um ser humano: a insônia. Invejo, de verdade, quem tem um sono fácil, quem mal escurece já procura um canto e dorme.

Ao final da adolescência, quando o problema se agravou, um sábio médico, ao observar o que lia, proibiu-me terminantemente de ler “coisas sérias antes de dormir" e foi aí que entraram em minha vida os ícones da chamada “Literatura cor-de-rosa”, as SABRINAS, JÚLIAS, BIANCAS e afins, como também os romances de amor de Sidney Sheldon, de Danielle Steel, de espionagem e, vez ou outra, a literatura de terror, especialmente os clássicos, Mary Shelley, Bram Stoker, Stephen King.

No universo dessa “literatura de lazer ou literatura de massa”, destaco o gênero policial, especialmente Agatha Christie, minha autora favorita. Ao final dos anos oitenta já não tinha mais paciência para a “literatura para moças” e seus personagens maravilhosos encheram minhas noites de alegria. Hercule Poirot, Miss Marple eram meus bons companheiros de aventura e eu devorei toda a estante da biblioteca do SESC de Maceió dedicada à autora.

Somos acusados, não sem razão, de sermos um país de poucos leitores. O per capita de leitura do Brasil é de, em média 4,7 livros por habitante (os dados anteriores eram de 1.8), o dos EUA fica entre 05 e 07, o da Europa entre 08 e 10 e de Cuba, 13.5. Pergunto-me se, em suas atividades cotidianas, os autores, os educadores como agentes de letramento, articulam algum tipo de estratégia para que mais crianças e jovens, mais adultos, mais comunidades tenham acesso a leitura, especialmente ao livro.

Há bons acervos literários nas escolas públicas desse país e a escola tem papel fundamental na difusão do livro. Está mais do que provado que milhões entram em contato com alguma prática de leitura através dela e não devemos negligenciar isso. Fico muito triste quando constato o desinteresse pela leitura de muitos colegas professores. Como incentivar o que não é prática em suas vidas?

Quando algum deles retruca que ganha mal, que livro é caro, eu pergunto se conhecem o acervo da escola, se frequentam bibliotecas, se acessam internet e conhecem as bibliotecas digitais. Nem preciso repetir aqui as respostas.

É bom comprar livros, mas há também boas bibliotecas públicas nesse país. Sou frequentadora, sempre que possível, dos espaços das bibliotecas especialmente, na aquisição da literatura de lazer, além da troca entre amigos e visita aos sebos. Numa revisão rápida, não consigo imaginar que, se não fosse através da escola e das bibliotecas eu teria acesso a tudo que li desde a infância até a vida adulta.

A leitura em minha vida tem um papel determinante. Seguramente não seria quem sou sem o auxílio luxuoso de cada livro que li, de cada autor ou autora com quem entrei em contato através das minhas inesquecíveis leituras.

DENTRO DO LIVRO

Tem partida,
tem viagem,
tem estrada,
tem caminho,
tem procura,
tem destino,
lá dentro do livro

Tem princesa,
tem herói,
tem fada,
tem feiticeira,
tem gigante,
tem bandido,
lá dentro do livro.

Quanto mito,
quanta lenda,
quanta saga,
quanto dito,
quanto caso,
quanto conto
lá dentro do livro.

Tem tragédia,
tem comédia,
tem teatro,
tem poesia,
tem romance,
tem suspense
lá dentro do livro.

Tem passado,
tem presente,
tem futuro,
tem moderno,
tem velho,
tem o novo
lá dentro do livro

Tem verdade,
tem mentira,
tem juízo,
tem loucura,
tem ciência,
tem bobagem
lá dentro do livro.

Tem estudo,
tem ensino,
tem lição,
tem exercício,
tem pergunta,
tem resposta
lá dentro do livro.

Quanta regra,
quanta norma,
quanta ordem,
e quanta lei,
quanta moral,
quanto exemplo
lá dentro do livro

Tem imagem,
tem pintura,
tem desenho,
tem gravura,
tem estampa,
tem figura
lá dentro do livro

Tem desejo,
tem vontade,
tem projeto,
tem trabalho,
tem fracasso,
tem sucesso
lá dentro do livro

Quanta gente,
quanto sonho,
quanta história,
quanto invento,
quanta arte,
quanta vida
há dentro de um livro.

Ricardo Azevedo, escritor e ilustrador paulista, é autor de mais cem livros para crianças e jovens.

*Parte dos dados é da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil encomendada pelo Instituto Pró-Livro ao Ibope Inteligência, em 2008.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Notícias do fim do mundo



Por Cineas Santos


De Apocalipse - Notícias do Fim do Mundo - Cineas Santos


Viver, sentenciava G. Rosa pela boca de Riobaldo, é negócio perigoso. A despeito disso, vive-se e, nalguns casos, até mais do que o desejável. Estatísticas dão conta de que 6 bilhões de seres humanos navegam nessa frágil casca de noz rumo ao desconhecido. É muita gente gastando perdulariamente o que não ganhou. Mas, segundo o sábio Patrick Geryl , essa farra desenfreada tem data marcada para terminar: 21 de dezembro de 2012. Nesse dia, céus e terra se fundirão, e o Armagedom sairá do mundo das profecias para materializar-se. Poucos, só os escolhidos, sobreviverão para contar a história. Quando tudo serenar, a Terra, ou melhor, o que restar dela respirará aliviada: estará praticamente extirpado “o câncer da natureza”: a espécie humana.

Antes dessa data fatídica, profetas, embusteiros e espertalhões faturam alto publicando livros com teses apocalípticas ou filmes aterrorizantes. Até onde se sabe, só os seres humanos são capazes da proeza de pagarem para sofrer. Quanto a mim, sem queixas ou mágoas, saio de cena como entrei: nu e desarmado.

A primeira vez que ouvi falar do fim do mundo, eu era praticamente virgem de pecados, a não ser do tal “pecado original”, que já trazemos embutido em nossas almas. Eu teria uns dez anos de idade, se tanto. Num início de noite, ouvi no rádio do padre Nestor Lima a trombeta do anjo vingador: “O mundo acabará em 1970”. A voz cavernosa do locutor invisível deixou-me petrificado. Aterrorizado, fiz as contas: a partir daquele instante, eu teria uns doze anos, no máximo, para realizar alguns desejos acalentados desde sempre: comprar uma bicicleta Monark, uma sanfona Scandalli, um relógio Lanco, um rádio Philco, uma espingarda Rossi, uma lanterna de três elementos, uma chuteira feita pelo Raimundo do Pedro e um frasco de English Lavander. Tudo isso, na verdade, tinha um único fito: conduzir-me ao coração de Cleonice, com quem eu teria de me casar. Para levantar a dinheirama necessária para comprar tudo isso, eu teria de ir a São Paulo onde, segundo atestava o baião de seu Luiz, “corria ouro pelo chão”. Fiz as contas e vi que não daria tempo. Sofri como um condenado...

Em 1970, eu já desistira da sanfona, do rádio, da espingarda, ou seja, da Cleonice... À época, meu coração bandoleiro errava por uma fulaninha, mais acesa que farol de milha... Conclusão: a despeito da ditadura que prendia, torturava e matava, nunca fomos tão felizes: “noventa milhões em ação” e a inesquecível conquista do Tri... Marcou-se uma nova data para o fim do mundo: o ano 2000. Voltei a fazer as contas e vi que já estava no lucro...

Manquitolando, cheguei até aqui. Como na canção de P. César Pinheiro & Baden Power, “Não fui feliz nem infeliz/ só fui na vida um aprendiz/daquilo que eu não quis”. Quanto ao fim do mundo, 21 de dezembro de 2012 ainda está longe... Até lá, a minha Estrela-guia certamente já me terá mostrado o portal do paraíso. Assim sendo, que venha o dilúvio!

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Sobre Pessoas - 1




Semanalmente publicarei uma crônica do livro "Sobre Pessoas", de Antonio Torres.



Por Antonio Torres


De Sobre Pessoas - Antonio Torres



Crônica 1


Para começar

(E para Ziraldo – por falar em pessoas)

Quereria um começo com a delicadeza de Fernando Sabino, em A última crônica, que cada vez que releio mais me encanta. E agora a ela retorno, em busca de ensinamentos. Algo assim como fez Henry Miller, quando decidiu tornar-se um escritor. Sem saber como começar, ele passou a andar pelas ruas de Nova York, indo parar diante da estátua de Shakespeare. Persignou-se diante dela, igual a um penitente que roga salvação para sua alma. Repetiu a peregrinação por dias e dias. Martírios do ofício, nas voltas tortuosas até se chegar à primeira frase. O que faz pensar na angústia do goleiro diante do pênalti. Ou na do seu batedor.

Foi em tais circunstâncias, a confabular consigo mesmo pelas ruas do Rio, que Fernando Sabino acabou por nos legar uma pequena obra-prima. Começa assim:

“A caminho de casa, entro num botequim da Gávea, para tomar um café junto do balcão. Na realidade, estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório, no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida”. E por aí vai ele, até sair de suas ruminações e bater os olhos num casal de negros e sua filhinha com um laço de fita na cabeça, ao fundo do boteco. Esse olhar o fez captar uma jóia de rara beleza, ainda a servir de espelho para principiantes.

Este aqui de vez em quando batia perna ao lado do mestre, nos calçadões à beira-mar, Copacabana-Ipanema-Leblon. Numa dessas vezes, ele perguntou:

- Você já leu o meu livro sobre a Zélia?

Por essa eu não esperava. Uma pedra no meio do caminho. Sinuca de bico. Cul-de-sac.

Persignando-me mentalmente diante da imagem de Nossa Senhora do Amparo, a padroeira do Junco, onde nasci, e dizendo-me “Nas horas de Deus e da Virgem Maria, amém”, criei coragem e respondi que Zélia, uma paixão era o único livro dele que eu jamais leria.

- Por quê? Por preconceito?

O papo foi longe. Voltei para casa contrariado, achando que o havia deixado com mais uma pedrinha no tênis. Sabia que, depois do linchamento que ele recebera na imprensa por causa daquele livro, passara a evitar a exposição pública, temendo ter de responder a perguntas maliciosas ou a se desvencilhar de ofensas, como a de mercenário, por tê-lo escrito apenas para faturar uma fortuna. Nada mais injusto. Fernando Sabino doara os direitos autorais do seu polêmico best-seller a uma instituição assistencial de menores carentes, sem se vangloriar disso.

Como bom mineiro, ficou em silêncio, remoendo a sua falha trágica ao declarar: “Zélia sou eu”. No calor da hora, a sua brincadeira não teve graça. Levaram-na a sério demais. Como se ele acreditasse, verdadeiramente, que a personagem que causara um terremoto na economia dos cidadãos, na era Collor, tivesse o mesmo status literário da heroína de Gustav Flaubert, Madame Bovary.

Mas por que, e para que o chatear ainda mais, quando privava de sua camaradagem, durante uma caminhada para desenferrujar as pernas, desanuviar a mente, e suar todas as tristezas? – eu me perguntava. Ora, ora, quem mandou Fernando Sabino tocar no assunto? Pensei que ele ia ficar zangado, a ponto de cortar a nossa relação, para sempre.

Numa manhã de domingo o telefone tocou e era o próprio, de viva voz. Disse:

- Acordei hoje com vontade de ligar para o Mário de Andrade, o Rubem Braga, o Paulo Mendes Campos, o Oto Lara Resende e o Hélio Pellegrino. Como nenhum deles pode atender...

Foi um começo de conversa e tanto. Ao final, convidou-me para um drinque em sua casa.

- Que tal amanhã? – perguntei-lhe.

- Ih! Amanhã não dá. Ao descobrirem que fiz oitenta anos, me empurraram para os exames médicos. Assim que me livrar dessas chateações, telefono para combinar.

Não telefonou mais. Só iria voltar a vê-lo já embalado para a última viagem, no cemitério São João Batista.

Ah, Fernando. Para começar, que falta que você faz.







segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A POETISA E O JEGUE BAIANO



Há dia que a gente acorda assim, com aquele gosto de sabão na boca, sem tino matutino e desorientado completamente sobre os rumos da vida. Bota um som na vitrola para espantar os fantasmas da noite e, em vez de exorcismo, se envolve nos acordes ressonantes e se descobre um espectro vagando entre outros espectros cuja origem remonta a tempos passados e imaginados perdidos ou, talvez, esquecidos ao longo do Tempo.

Há dia que a gente acorda assim, pensando nos que se foram e em quanto tempo ainda falta para a nossa insólita viagem. Hoje? Amanhã? Depois de amanhã? Não importa. Compramos esse bilhete de passagem com data aberta no nosso primeiro choro. Nesse trem chamado Vida, quando menos se espera, o picotador aparece para carimbar nosso passaporte, em cuja capa está impresso um botão de rosa ao qual nunca demos importância aos seus detalhes:

“Nos recôncavos da vida
Jaz a morte.
Germinando no silêncio.
Floresce
Como um girassol no escuro.
De repente vai se abrir.
No meio da vida, a morte
Jaz profundamente viva.”
(Botão de Rosa - Thiago de Mello)

Para aprofundar o cenário mórbido, hoje é dia de finados e a melancolia tem um tom fúnebre de missa de sétimo dia, embora não se conheça o defunto pranteado. Seria um morto vestido da sua importância caso não houvesse mais lugar para se sentar na igreja e os parentes chorar inconsoláveis com a perda, embora a maioria finja sua invisível dor; seria um pobre indigente se apenas o padre, o sacristão e uma viúva chorosa maldizendo a miserável vida ocuparem todo o espaço da igreja. Em ambos os casos, a importância de cada um estará ironicamente nivelada na pirâmide social dos vermes.

À revelia do meu querer, busco espairecer as idéias navegando pelos recantos em busca de um encanto para o meu dia, mas me desencanto na primeira parada quando alguém fala de falocracia sem saber direito o que é isso, misturando alho com bugalhos em arabesco literário. Tento recompor meu alento nas divas da poesia e da prosa num site chamado Recanto das Letras, mas a mão do Destino me guiou pelo caminho errado e fui jogado ao encontro do velho preconceito enraizado na alma brasileira camuflado em sutileza incubada em versos toscos que prima pela indecência da segregação regional, cuja autora lamenta profundamente não poder transformar um desafeto baiano em jumento, certamente para suprir alguma carência afetiva ou amorosa.

Em certos lugares, o jumento foi e ainda é um meio de transporte eficaz, haja vista as condições das estradas e a agudeza dos acidentes geográficos que mapeiam o lugar. O fim do mundo não fica muito longe, bastando que se tenha querer e disposição para se chegar até lá montado no lombo de um jumento, claro.

Dizia Luiz Gonzaga que o jumento era nosso irmão. Animal sagrado, por ter carregado o Menino Jesus, dizem que a cruz que tem no costado é o lugar onde Cristo fez xixi. Mas, sagrado ou não, é um animal de falo grande, descomunal, e que enrijece sem o menor pudor ao encontrar uma jumenta no cio. No arraial do Junco houve um jumento que ficou famoso pelas suas peripécias. Chamado de Jegue Barroso, foi, deveras, o jegue mais famoso de toda a história da região. Fama adquirida pela sua sanha devassa e insaciabilidade sexual. A légua de distância, ele sentia o cheiro da fêmea no cio e não sossegava enquanto não consumasse seu intento. Pulava cerca de macambira, se rasgava no arame farpado e atacava as jegas, mesmo que estivessem devidamente montadas, colocando o montador em risco de se machucar com as investidas vigorosas e insistentes do jumento. Não adiantava gritar, ameaçar ou bater. Seu instinto animal era mais forte que a dor.

Era um verdadeiro deus-nos-acuda quando surgia uma jega no cio. Ou um espetáculo para os moleques e devassos; uma vergonha para as moças de família.

- Deus nos acuda! - gritou o padre, interrompendo o cântico.

Nessa ocasião o Junco vivia um prenúncio de estiagem. O vento nordeste soprava seu hálito quente, seco, levantando redemoinho de poeira que vinha da Rua da Bomba até a Praça do Tamarindeiro. A água do Tanque Velho há muito que secara e o Tanque do Município, também chamado de Tanque Novo, fornecia suas últimas gotas. A seca rondava o sertão e os roceiros, apreensivos e angustiados, andavam em procissão, chapéu na mão, pedindo proteção ao Senhor. O padre puxava os cânticos, acompanhado por centenas de vozes graves e agudas.

Avééé, avéé; avemariiiaa! – cantavam em louvor a Nossa Senhora do Amparo, a padroeira, próximo à escadaria da igreja, quando se ouviu um relincho, dois relinchos, três relinchos, tropel de jegue a galope descendo a rua. De repente surgiu uma jega em desabalada carreira em direção ao povo, seguida do jegue Barroso, que tentava montá-la em desespero de causa, ocasionando um verdadeiro alvoroço entre os devotos. O padre, após pronunciar o apelo já citado acima, segurou a barra da batina e subiu as escadas em desespero, se enrolando no cordão batinal, se estatelando no chão. O povo, em pânico, se espremia na porta da igreja, cada um querendo a preferência e não entrando ninguém. O padre, recomposto da queda, excomungou o jegue e todos os seus ascendentes e descendentes. De quebra, amaldiçoou também o seu dono.
Uma hora depois os milicianos conseguiram demover o jegue Barroso de suas intenções libidinosas, afastando sua pretendente para bem longe. O dono do ditoso teve que arcar com o prejuízo de uma multa imposta pelo delegado e por uma penitência de cem pais-nossos e trezentas ave-marias.
Mas isso aconteceu nos tempos que se bebia Grapete e as noites eram iluminadas por lampiões de querosene. O velho arraial vestiu roupa nova e ganhou nome novo e um moderno sistema de transporte. Seca não é mais problema, pois existe um complexo sistema de irrigação e abastecimento d’água. Não é mais aquela terra que candeeiro dava choque. E se lá, hoje em dia, o jumento é peça de museu, por que uma poetisa sulista quer um baiano como jeguinho de estimação?


domingo, 1 de novembro de 2009

OS OLHOS VERDES DE MARY

De Olhos verdes


Os olhos verdes de Mary suspiram por outro mundo além da Ladeira Grande. Seus pensamentos cavalgam sobre as nuvens brancas que pincelam o infinito azul em vã tentativa de fazer seu corpo levitar e flutuar ao sabor do vento e desaparecer na linha do horizonte e pousar silente tal qual uma estrela cadente rasgando o céu, extasiando-se em terras alhures, onde piscam luzes de neon como uma galáxia em festa.

Em tempos passados a mesmice do lugar não era contundente porque não havia outras referências, mesmo sendo a solidão um estado de espírito permanente. A televisão, que fora considerada por alguns intelectuais como a máquina de fazer doido, passou a ser a máquina de fazer sonhos. O Tempo é real e mostra, ao vivo, outro mundo, onde as coisas acontecem e as pessoas não se limitam apenas a acordar para ver o dia passar e depois dormir com as galinhas para sufocar suas angústias e desejos.

Resignada, lembrou-se do terceiro capítulo de Eclesiastes: “Há tempo de nascer e tempo de morrer. Há tempo de plantar e tempo de se arrancar o que plantou. (...) Há tempo de chorar e tempo de rir. Há tempo de afligir e tempo de dançar”.

O Tempo, sempre ele, senhor e dono absoluto dos nossos anseios e angústias, timoneiro interativo do barco do nosso Destino. Quando seria o seu tempo de rir e de dançar?

Ventos do norte sopram, ao seu ouvido, versos do poeta americano Thomas S. Eliot, transportando-a para quatro quartetos, em outra áurea dimensional, surrupiando-lhe o alento dos versículos bíblicos:

“(...) O gênero humano
Não pode suportar tanta realidade,
O tempo passado e o tempo futuro.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente”.

Em outra estrofe, a contundência aguda dos versos é como um balde de água gelada jogado sobre seu espírito ávido por mudanças:

“No imóvel ponto do mundo que gira. Nem só carne nem sem carne.
Nem de nem para; no imóvel ponto onde se move a dança,
Mas nem pausa nem movimento. E não se chame a isso fixidez,
Pois passado e futuro aí se enlaçam. Nem ida nem vinda,
Nem ascensão nem queda. Exceto por este ponto, o imóvel ponto,
Não haveria dança e tudo é apenas dança”.

Seria esse lugar em que vive e mora o “imóvel ponto do mundo que gira”? Se aqui, passado e futuro se enlaçam, que é do seu presente? Uma negação ou uma abnegação? Nada faz sentido quando afloram os sentimentos compulsivos de liberdade. Em suas divagações interiores incorpora a certeza de que veio ao mundo para ser protagonista e não para fazer figuração; nasceu para brilhar, e não para se ofuscar na clausura forçada das necessidades. Por causa desta constatação, aumentam a sua aflição e o seu temor de que a realidade seja mais pesada do que sua quimera e esmague sua plantação de sonhos como ervas daninhas em um campo abandonado pelo seu dono.

E os seus olhos marejam suspiros de resignada tristeza, evaporando no ar tal qual o orvalho da manhã sobre as folhas verdes da relva refletidas em sua retina.