sábado, 14 de novembro de 2009

Berro Novo é Jessier Quirino de novo, novamente...



Por Edna Lopes







De Edna e Jessier Quirino na Bienal 2009 - Maceió - AL



A primeira vez que ouvi falar de Jessier Quirino foi no programa Manhãs Brasileiras do saudoso radialista e amigo Edécio Lopes. Aliás, não só falar dele como ouvir do próprio um pouco de sua trajetória, de seu trabalho. De um jeito muito peculiar, durante a entrevista, Jessier recitou poemas, contou saborosos causos, antecipando o show que faria à noite.

Fiquei fã de seu trabalho tão especial, pois me lembrou dos programas de rádio das manhãs e tardes sertanejas que ouvia na infância, sempre dedicados ao homem do campo, onde ouvia a música brejeira e as esquetes do “Coroné Ludugero e Otrópe”, a poesia matuta do paraibano Zé da Luz, de Patativa do Assaré e de Catulo da Paixão Cearense.

Encantava-me aquele jeito especial do dizer das coisas mais simples, dos temas tão nossos, os nascidos na roça, nos “arruados”, nas cidadezinhas tão singelas quanto desimportantes, para os muito modernos moradores desta aldeia global.

Ler e ou ouvir Jessier Quirino envolve-me num sentimento de nordestinidade, de pertencimento de um lugar muito especial. Ver e ouvir Jessier num dos seus recitais, recuperando a memória afetiva dos falares, a ingênua curiosidade, o humor maliciosamente, docemente incrustado no viver do matuto é uma experiência única porque reconheço, como se fossemos velhos amigos, cada um de seus personagens.

Não dá para não me emocionar. É meu universo de menina da roça que está lá na sua poesia, na sua prosa tão bem humorada quanto delicada e amorosa com seu povo. Em minha opinião, sua mais poética publicação, seu novo livro - BERRO NOVO - é um deleite. Já na orelha Bráulio Tavares, outro poeta ímpar, arremata: “A poesia matuta, como eu a entendo, é tão variada quanto a poesia urbana. É a mesma orquestra sinfônica, só que com outros instrumentos.”

E assim é. Nas duas últimas Bienais alagoanas do Livro (2007 e 2009) esse poeta plural lançou livro e CDs e, generosamente, brindou com parte de seus recitais seu publico cada vez mais crescente, mais consciente e orgulhoso de suas raízes, de seus sotaques e falares, de sua cultura e seu jeito de ser. Berro Novo – Poesia dita, escrita e musicada, é mais uma publicação da Editora Bagaço que traz de brinde um CD com músicas, causos e declamações. E outro brinde: as participações mais do que especiais de Dominguinhos, Josildo Sá, Maestro Spock (da Orquestra Spock Frevo) e Xangai, artistas também nordestinos da melhor estirpe.

Querendo saber mais do artista vale a pena uma visita no seu endereço eletrônico http://www.jessierquirino.com.br/ para ver os vídeos, as fotos e um “Mini currículo” do qual retiro este fragmento: “(...) Apesar de muitos considerá-lo um humorista, opta pela denominação de poeta, onde procura mostrar o bom humor e a esperteza do matuto sertanejo, sem, no entanto fugir ao lirismo poético e literário.”

Sobre Jessier, disse o poeta e ensaísta Alberto da Cunha Melo: “... talvez prevendo uma profunda transformação no mundo rural, em virtude da força homogeneizadora dos meios de comunicação e das novas tecnologias, Jessier Quirino, desde seu primeiro livro, vem fazendo uma espécie de etnografia poética dos valores, hábitos, utensílios e linguagem do agreste e do sertão nordestinos... Sua obra, não tenho dúvidas, além do valor estético cada dia mais comprovado, vai futuramente servir como documento e testemunho de um mundo já então engolido pela voragem tecnológica."

Ouso dizer que a poesia e a prosa de Jessier Quirino é, atualmente, nossa “Bandeira Nordestina” (título de um dos seus livros). Mas bandeira de quem se orgulha, de quem não nega suas origens e berra aos quatro ventos o valor da alma poética e guerreira de um povo que, mesmo vítima da ignorância e do preconceito, não se rende.




Da Série “Sobre Pessoas” inspirada na publicação do escritor também nordestino Antônio Torres.


sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Sobre Pessoas 3

(Hoje vos apresento a terceira crônica do livro "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres)


Um modo de ser campeão do mundo


De Garrincha - Sobre pessoas 3



Tudo voltou ao normal na redação da Última Hora de São Paulo, assim que, naquele ano de 1962, a sua tropa de repórteres e fotógrafos regressou do Chile, bafejada pela glória de ter sido testemunha ocular da segunda conquista brasileira em uma Copa do Mundo. Na retaguarda, ficaram os que de fato iam fazer o jornal circular, até em edições extras, que esgotavam rapidamente nas bancas. Três deles – entre os quais se incluía o autor destas linhas – ganharam um prêmio de consolação. Uma viagem ao Rio de Janeiro, aonde chegariam ao amanhecer de um dia em que as musas deviam estar despertando para inspirar poetas como Antônio Maria, o de Manhã de Carnaval e Valsa de uma cidade.

Bem, cá estava eu, crente que ia ter tempo para pegar um bronze em Copacabana. E para perder a respiração no Corcovado e no Pão de Açúcar, que só conhecia de cinema ou através dos cartões postais. Para descobrir os templos da bossa nova e do samba do morro. Para cair na gandaia. E eis que, de repente, uma notinha do Jornal dos Sports, o cor-de-rosa, fez cessar tudo que a antiga musa cantava. Não era que Mané Garrincha ia dar uma festa? E sabe onde? Em Pau Grande, lá na Raiz da Serra, em que havia nascido e ainda vivia.

Corri para a Praça da Bandeira, pois a redação da Última Hora carioca ficava naquelas bandas. E, ofegante, cheguei à sala do seu editor de Esportes, um francês gordo e afável – um modo de ser gordo é ser bonachão -, chamado Albert Laurent. Esperava que ele já soubesse que o anjo das pernas tortas, bicampeão mundial, o “Demasiado Garrincha” que tanto fascinava o mundo, a alegria do povo etc, agora ia combater à sombra, longe dos holofotes e do glamour do Rio. Não, ele, o chefe Albert, não sabia de nada. Mas tratou logo de escalar carro e fotógrafo (um outro iria participar da expedição, voluntariamente), para a cobertura do evento, no dia seguinte, um domingo.

Então nós fomos, atingindo o nosso objetivo por volta das 11 horas da manhã, quando descemos de uma Kombi na praça principal de uma vila operária, que gravitava entre um morro e uma indústria de tecidos, a América Fabril. Garrincha morava numa casinha daquela praça, igual a todas as outras. Não foi difícil descobri-la. Era a de maior entra-e-sai da vizinhança, ajudando nas providências do almoço, a ser servido num abrigo, o ponto de encontro da comunidade.

Entregue ao afã de carregar engradados de cerveja e refrigerantes, enquanto as mulheres se encarregavam de copos, pratos e talheres, de vez em quando ele embocava pela casa adentro, para dar uma olhada no leitão que estava assando em sua cozinha, e cujo cheiro sentia-se da porta. Concentrado numa lida que ia do seu espaço privado ao público, ele dava a impressão de não querer perder tempo com conversa, muito menos com quem nem estava convidado. Para todos os efeitos, o ágape fora planejado apenas para os íntimos, ou seja, os da sua tribo e ninguém mais. Apesar disso, ele não se recusou a posar para uma foto, ao lado da mulher, dona Nair, e tendo as sete filhas do casal formando uma espécie de escadinha, da mais velha à última, bem pequenininha. Claro está que bastava esta para pagar a viagem. Na manhã seguinte, tal foto dominaria a primeira página do jornal, tanto na edição de São Paulo quanto na do Rio.

Não tardou a chegar mais um carro, este do Jornal do Brasil, trazendo o Oldemário Toguinhó - um repórter que fez escola e história -, também com um fotógrafo a tiracolo. Concorrência na parada. E mais estranhos no ninho do Garrincha, que continuava de bico calado. Até ver que a mesona posta no abrigo estava totalmente preparada. Então ele olhou em volta e disse: “Chegou a hora”. Não, não era a de avançar sobre o leitão assado. Mas a de subir o morro e bater uma bola, para abrir o apetite. Lá em cima havia um campinho de futebol, onde ele fora descoberto por um olheiro do Botafogo. Era lá que Mané Garrincha ia fazer a sua primeira partida, depois da Copa do Mundo, no Chile. E no mesmo time de outros tempos - com os seus inseparáveis amigos Suíngue e Pincel -, que perdeu de 1 x 0 para o outro, de todos os outros do lugar. E este resultado virou manchete, que a UH noticiou como “furo” nacional, pois naquele tempo o JB não circulava às segundas-feiras.

E assim se conta também, e por tabela, um modo de ser repórter brasileiro.

Ele era a alegria do povo, o anjo torto, a cujos pés se curvava o mundo em duas Copas. A da Suécia, em 1958, e a do Chile, em 1962.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

HORA DA REAÇÃO


Por Cineas Santos



De Hora da reação - Cineas Santos


Dia desses, remexendo um velho baú de “inutensílios”, garimpei uma pepita rara: um CD do Dick Farney com 14 pérolas da MPB. Entre as joias, figuram: “Copacabana”, “Não tem solução”, “Marina” e “Apelo”. Não bastasse isso, Dick dialoga com Lúcio Alves na faixa “Tereza da praia”, de Jobim e Billy Blanco, coisa de tirar o fôlego. Meus três leitores sabem quem foi Dick Farney e o que representa para a música brasileira. Para os mais jovens, uma dica de Ruy Castro: "Poder-se-ia dizer que Dick Farney foi uma espécie de S. João Batista da bossa nova – seu apóstolo e anunciador, o homem que primeiro congregou os fiéis para anunciar-lhes a boa nova e, ele próprio, um pregador suave, mas eloquente”. Para usar a linguagem da galera, na década de 50, Dick Farney era “o cara”.

Feliz como um garoto que acaba de ganhar a primeira bola de futebol, pus o CD no som do carro e deixei que o velho Dick me acariciasse os tímpanos por horas a fio. Parado no semáforo, ouvia “Aconteceu um novo amor/que não podia acontecer/não era hora de amar/ agora o que vou fazer?”, quando senti um abalo sísmico. Meu carro tremia como se sacudido por um terremoto. Nonada, como diria Guimarães Rosa, era apenas uma Hilux, preta azeviche, parada ao meu lado. A caçamba da caminhonete transportava um som capaz de curar a surdez pétrea do velho Beethoven. A música, digo, a laúza era, para variar, um desses “forrós” made in Ceará. No volante daquele bólido de 160 cavalos, um potro saradão, cabelos recobertos de gel, camiseta regata e ar petulante. Por um segundo, pensei em perguntar-lhe: – Moço, meu Dick está incomodando você? Mas, em boa hora, lembrei-me de que esses bem-nascidos desconhecem o sentido da palavra limite e não têm o menor respeito por ninguém, menos ainda por velhos. Limitei-me a levantar os vidros e esperar, aflito, que o semáforo me libertasse daquela tortura. Sinal verde: o moço se foi com seu cometa ruidoso. Naquela noite, a sorte não pegara carona no meu carro. Parei no outro semáforo, Dick sussurrando: “Eu, você, nós dois/ aqui nesse terraço à beira-mar/o sol já vai caindo...”, a terra voltou a tremer, minto, a vibrar. Ao meu lado, num carro médio, duas jovens esbaldavam-se ao som, digo, ao ruído de uma banda de forró, made in Ceará... Não seria a mesma do carro do rapaz? Impossível saber: são todas tão parecidas que, no meio das “músicas”, tem sempre alguém gritando o nome da banda para que se possa distingui-la das outras...

Incomodado, me perguntei: será essa merdalhada toda apenas uma jogada comercial bolada por um "gênio" ou terá algo mais grave por trás disso? Não será parte de um processo de imbecilização posto em prática pela indústria da maldade? Como ainda não encontrei a resposta, resolvi assumir parte da culpa. Explico: alguém já lhe feriu os tímpanos com boa música? Duvido! Quem gosta de música é sovina: ouve baixinho, curte sossegadamente, não divide com ninguém a não ser com a pessoa amada... Pois proponho aqui uma reação em cadeia: vamos botar Gil, Tom, Caetano, Milton, Chico, Elis, Ney, Marisa e até o sussurrante João no volume máximo, a toda brida. Vamos incomodar, com música de qualidade, os viciados em lixo ruidoso. Uma advertência: poderemos ser presos em flagrante por grave atentado ao despudor reinante.



terça-feira, 10 de novembro de 2009

Aos Mestres Com Carinho






Dentre os motivos que se deve ir a uma bienal do livro, destaco as palestras. Mesmo as ruins, são boas.

Numa bienal do livro há palestras e oficinas para todos os gostos, credos e ideologias. Pode-se encontrar padre falando de Padim Ciço Romão Batista, o Padre Cícero de Juazeiro, ou a Maitê Proença negando sua vocação a atriz, decerto, decepcionada com sua performance no vídeo feito em Portugal e que quase gera uma crise diplomática.

Alguns palestrantes decepcionam, principalmente os de autoajuda (essas palavras compostas que perderam o hífen é um saco!), pois geralmente o ouvinte que adentra a esse tipo de palestra vai em busca de aconselhamentos para vencer na vida sem fazer muito esforço. Sai desnorteado com a enxurrada de propaganda do livro do palestrante. Quem quiser saber como ficar rico, primeiro terá que empobrecer na banca do vendedor de livro.

Os palestrantes globais são os mais concorridos. A prova disso foi o que aconteceu na palestra da Maitê Proença: o público quase põe abaixo o auditório onde ela ia conversar abobrinha com o povão. E tiveram que arranjar um espaço maior. Pra variar, ela atrasou quarenta minutos e o zé-povim não reclamou. Só o meu exército revolucionário de dois soldados e eu, perfilado no fundo do auditório, protestamos a favor da igualdade de direitos: se os outros palestrantes tinham que obedecer horário, a Maitê também tinha. Como nossas palavras de ordem passaram a ter ressonância no auditório, uma moça simpática e gentil nos arranjou onde sentar, bem à frente da mesa. E, por causa de três míseras cadeiras, deixamos calar a nossa voz. Mas a Maitê entrou em seguida, de saia justa, quebrando o protocolo, antecipando sua fala à apresentação protocolar de praxe.

Assim, reconsiderei os argumentos dos portugueses quando a chamaram de burra: ela não é burra; é grossa mesmo. Em protesto, fomos para a palestra do Salgado Maranhão (mas nós íamos de qualquer jeito. Estávamos lá só fazendo hora).

Os escritores midiáticos só perdem mesmo numa bienal nordestina para o ícone paraibano da poesia matuta Jessier Quirino. Esse é demais. Na palestra-show do mesmo havia gente vazando pelo ladrão. Em seguida à palestra, formou-se uma fila imensa no stand da Editora Bagaço para comprar (e autografar) seu livro, que vem com um cd de brinde.

Os organizadores da bienal insistem em manter palestras paralelas quando há determinadas atrações populares, como foi o caso do Jessier e da Maitê. Com gente subindo pelas paredes no auditório no dia da apresentação desses dois, sobrou espaço na sala de palestras, que, coincidentemente, eram os meus amigos Maurício Melo Júnior e Salgado Maranhão. É uma pena, pois eles foram ótimos. E no dia do Salgado Maranhão havia também outros poetas não menos competentes: Geraldo Carneiro e esposa.

A do Ignácio de Loyola foi antológica. Vinícius, meu filho de doze anos, saiu maravilhado. Se o Ignácio, que ao longo de sua vida só escreveu para adulto, consegue encantar uma criança numa palestra para gente grande, então está explicado o sucesso do seu livro infantil.



Um agradecimento. Aliás, quatro.
A Maurício Melo Júnior e aos professores Gerson Guimarães e Gorete Amorim e ao meu vizinho Ivânio Cunha por servirem de motorista por conta de minha habilitação estar vencida.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

História, o enredo gosta é de briga - Raimundo Carrero




De Chuva - A história e o enredo - Raimundo Carrero


Narrativa e conflito têm conceitos diferentes embora gerados no mesmo ventre.

Quase sempre a história é confundida com enredo. Ou sempre. Mas são manifestações artísticas bem diferentes. O escritor – iniciante ou não – deve distinguir isso muito bem, de forma a conquistar um aliado técnico, tanto na estrutura interna da intriga, quando na escolha dos capítulos, cenas e cenários. E, é claro, até mesmo nos diálogos. Sempre com muita atenção. As diversas formas de diálogo têm função e efeito.

Uma história não aprofunda os questionamentos nem tem conflitos. Lembra muito o argumento. Alguns autores chegam mesmo a chamá-la de argumento, o que quase não fazemos, porque não acreditamos neles. De cara, entramos nos textos que já queremos definitivos. Não é bem assim. Uma história ajuda a criar enredos, estes, sim, possuidores de confrontos, conflitos, questionamentos, estranhamento, cenas e cenários. Na maioria das vezes significam intriga.

Então podemos dizer, com certeza que:

a) História é uma narrativa linear, sem conflitos, ou sem aprofundamentos de conflitos e confrontos; às vezes com divergências.

b) Enredo é uma narrativa em que os personagens estão sempre em oposição, o que gera conflitos, confrontos, questionamentos.

Exemplo de história:

a) Naquela noite, Maria foi ao cinema mesmo enfrentando uma chuva forte. Podia deixar para outro dia, é claro, mas gostava do barulho da água no teto – ainda era um daqueles antigos e resistentes cinemas de bairro - e por isso saiu decidida. Além disso, sentia-se bem vestindo um pulôver, o que nem sempre fazia, porque morava numa cidade quente. Imitava as heroínas que andavam nos bairros românticos, com os braços cruzados, sonhadoras, quem sabe não surgia na esquina, na próxima esquina, o primeiro namorado? Não havia filas para a compra de ingressos e ela aproveitou para comprar batatinhas. Como estava no intervalo, escolheu, sem pressa, uma cadeira em lugar privilegiado. O ar deixava a sala ainda mais fria. Cochilando, nem percebeu quando o antigo namorada se sentou a seu lado. Tanto que gostaria de beijos e abraços, como nas outras vezes. Levantou-se e saiu. Se ele a acompanhasse, quem sabe, não é? Ainda olhou para trás e não ninguém. Só a rua quieta, solitária.

Exemplo de enredo:

b) Naquela noite, Maria teve que discutir com a mãe, a ponto de chamá-la de velhota retardada, para ir ao cinema, mas a mulher temia um resfriado ou, dramática: até mesmo uma pneumonia, e que a levaria, quem sabe, ao leito de um hospital. Tudo por causa da chuva. Não, não podia ir outro dia e era até bom ouvir o barulho da água no teto, aproveitando o cinema antigo, ultrapassado, um raro exemplo de resistência. Uma sombrinha? Uma sombrinha nada, a chuva ainda era pouca, bastava um pulôver, que era charmoso e quase nunca usava-o, por causa do calor da cidade interiorana. De braços cruzados, viu quando o primeiro namorado cruzou a esquina, talvez pudesse encontrá-lo no cinema, para aquecer um pouco a sala fria. Depois de comprar o ingresso e a batatinha, escolheu um lugar bem discreto, onde eles se sentavam nos bons tempos. Nem percebeu quando o rapaz se sentou ao seu lado. Amor, ouviu, a palavra e pensou que fosse um sonho. Mas não deixou de sentir a mão que passava sobre seu ombro. Acordou no meio da fita. Percebeu que estava sendo amada, aos beijos e abraços. Não faça isso, ela disse. Bobagem, sempre foi assim. Ela se levantou. E saiu. Em casa, reconheceu que a mãe tinha razão. Não por causa da chuva. O perigo estava nas mãos sem luvas. Bateu na porta várias vezes. A mãe não parecia disposta a abri-la. Será? Já na sala, a mãe riu e foi dormir. Incrível: cheia de rancores. Mas não deixou de acrescentar que ela devia se comportar melhor da próxima vez.

No Brasil é fácil encontra “Uma vida em segredo”, de Autran Dourado. Ou no filme de Suzana Amaral. Aliás, Autran tem muita preocupação com isso. Ele diz que enquanto o leitor está distraído com o enredo, o autor lhe bate a carteira. Pensam também na relação entre Charles e Madame Bovary – entre os dois não acontece nada, nenhum conflito Mesmo quando Emma desdenha da imagem de Charles. Entre os dois só há história. E, às vezes, nem isso.

Percebe-se, claramente, a diferença. O motivo da narrativa é o mesmo, mas a história cedeu espaço ao enredo. Quem não sabe que o enredo gosta mesmo é de briga? É preciso que apareçam os conflitos, os confrontos, a oposição entre personagens. “Um coração simples”, de Flaubert, tem história mas não tem enredo, mesmo quando Felicidade sofre uma decepção. Por quê? Porque a decepção é apenas um incidente rápido, não alcança o nível de conflito, ou de confronto, sobretudo do conflito dramático. É, quando muito, um problema – algo que perde a importância logo depois. Aparecem fatos, muitos fatos, que se sucedem e não complicam. Podemos apontar até mesmo esses incidentes, que se revelam banais na estrutura da história. Alguns deles são:

a) O esforço de Felicidade no trabalho;
b) A força de Teodoro e a tentativa de estupro;
c) A fuga de Teodoro;
d) Os filhos da dona da casa;
e) A morte do papagaio, etc.

Por isso, não raras vezes, Flaubert era acusado de ser apenas um autor da epopéia dos comuns. Basta dar uma olhada no ensaio que Henry James escreveu sobre ele. E “A morte de Ivan Illich”, de Tolstoi, é história ou enredo. História, com certeza. Porque o enredo some, restava a situação dramática do personagem. E só. Acontece o mesmo com “O Velho e o Mar”, de Hemingway. É possível dizer o mesmo de “Abril Despedaçado”, de Kadaré? A vida de Gjorg é um intenso drama cheio de conflitos mentais e reais. É brilhante a abertura do romance com o ser ou não ser, preparando a morte do inimigo. Ainda que ocorra uma aproximação com Shakeaspeare.

Não quer dizer, jamais, que uma história é menor ou superior ao enredo. Nem que o enredo é superior à história. De forma alguma. Trata-se, apenas, de uma técnica que o escritor escolhe sobretudo para se exercitar. Isso, para se exercitar. Um escritor precisa se exercitar sempre e nunca esmorecer. Devemos nos lembrar da velha frase de Flaubert, em carta a Louise Collet, depois de trabalhar muito e não conseguir os efeitos desejados: “Hoje sofri muitas decepções comigo mesmo”. Algumas pessoas deixam de escrever porque se decepcionam com o que narram. Logo perdem o ânimo. A coragem. A determinação.

Mas sem nunca esquecer: história revela-se pela linearidade; enredo só quer briga, com várias linhas narrativas, curvas, e sinuosidade.

É claro que tudo isso pode ser mudado. Pode ser alterado. Enfim, o autor tem completa liberdade para escrever a sua obra, ainda que não considere as técnicas. Sempre e sempre: a intuição está sempre em primeiro lugar, depois é que vêm as técnicas. Às vezes, a técnica intuitiva.
Cada autor com sua liberdade e sua ousadia. Mas custa estudar, custa?