sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Quando as pedras se encontram: Antonio Torres e Heitor Cony em Natal, RN



Escritores Heitor Cony e Antonio Torres conversam sobre o povo

brasileiro em Natal.


De Antonio Torres e Heitor Cony em Natal, RN

Dois dos maiores escritores do Brasil na atualidade estarão em Natal na quinta-feira, 26. Carlos Heitor Cony e Antonio Torres ficarão frente a frente "Conversando sobre o povo brasileiro", no hotel Vila do Mar, a partir das 19h30, em evento que será comandado pelo cientista políticoe apresentador do programa televiso "Espaço Cidadão", Robson Carvalho. O evento marca a nova fase do programa que ao completar seis anos de veiculação ininterrupta, adotará novo modelo de entrevista onde dois convidados debaterão um mesmo assunto sob a mediação de Robson Carvalho. O apresentador também comemora cinco anos de "Repórter 98", na 98 FM, e de quatro anos como colunista de jornal.


O "Espaço Cidadão" vai ao ar toda segunda-feira, às 21h30, ao vivo na Tv União. Tem uma hora de duração e é aberto à participação do público via telefone. O programa é voltado à promoção da cidadania com foco em política, direitos e deveres do cidadão, defesa do consumidor e responsabilidade social e ambiental, entre outros. O programa-debate "Conversando sobre o povo brasileiro" está projetado para receber mil pessoas, entre convidados e público pagante. A venda de ingresso está sendo feita na livraria Siciliano ao preço de R$ 20, o inteiro, e abatimento de 50% para estudante.


Carlos Heitor Cony é carioca e estudou humanidades e filosofia no Seminário de São José. Membro da Academia Brasileira de Letras, trabalha na imprensa desde 1952. Começou no Jornal do Brasil, passou por outros veículos e, hoje, é colunista da Folha de S.Paulo, comentarista da rádio CBN e da Band News.


Cony estreou na literatura ganhando por duas vezes consecutivas o Prêmio Manuel Antônio de Almeida (em 1957 e 1958) com os romances "A Verdade de Cada Dia" e "Tijolo de Segurança". Em 1998, o governo francês, no Salão do Livro, em Paris, condecorou-o com a L'Ordre des Arts et des Lettres. Ganhou os prêmios: Manuel Antônio de Almeida (em 1956 e 1957); Jabuti (em 1996, 1998 e 2000); Livro do Ano (em 1996 e 1998 e 2000); Prêmio Nacional Nestlé (em 1997); e Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de obra, em 1996.


Antônio Torres, baiano de Sátiro Dias, lançou seu primeiro romance, 'Um cão uivando para a Lua', aos 32 anos. Confirmou seu talento na qualidade do segundo livro, 'Os Homens dos Pés Redondos', e experimentou o grande sucesso em 1976, com o livro 'Essa terra', que aborda a questão do êxodo rural de nordestinos para o Sul. O livro ganhou edição francesa em 1984, abrindo caminho para a carreira internacional do escrito, que tem seus livros publicados em Cuba, na Argentina, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Israel, Holanda, Espanha e Portugal.


Torres foi condecorado pelo governo francês, em 1998, como "Chevalier des Arts et des Lettres", por seus romances publicados na França. Em 2000, ganhou o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da sua obra. Em 2001, foi o vencedor (junto com Salim Miguel por 'Nur na escuridão') do Prêmio Zaffari & Bourbon, da 9a. Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, RS, por seu romance 'Meu querido canibal'.


Autor premiado, com várias edições no Brasil e traduções em muitos países, Antônio Torres é um dos expoentes da sua geração. Sua expressiva obra abrange 11 romances, 1 livro de contos, 1 livro para crianças, 1 livro de crônicas, perfis e memórias, além de outros projetos especiais.


Serviço

Seis anos de Espaço Cidadão

Debate com os escritores Carlos Heitor Cony e Antonio Torres

Hotel Vila do Mar

Quinta-feira, 26, 19h30

Inteira R$ 20,00 / Meia R$ 10,00

Vendas na Livraria Siciliano




Consciência Negra: Vista a minha pele*

Por Edna Lopes


De dia da consciência negra





Eu sei que muitos vão dizer que falar de cotas e consciência negra é pregar um racismo às avessas. Dizer que isso é coisa de quem não tem mais o que dizer nem o que escrever. Provavelmente dirão que isso é coisa de gente que se sente inferior e quer se exaltar. Coisa de negro.

Alguns se sentem ofendidos com tanta exaltação. Até feriado os negros têm! Quem raios é esse tal de Zumbi? E como se não bastasse, tem lei que determina o ensino da história da África, estatuto de Igualdade Racial, leis e estudos que defendem a titularidade de terras, que criminaliza a intolerância religiosa.

Provavelmente dirão que consciência negra é balela porque estão convictos que é ficção alguém ser discriminado pela cor. Certamente quem pensa assim nunca foi humilhado, desrespeitado, ofendido por simplesmente não ter a pele clara. Nunca viu ninguém mudar de calçada porque se aproxima, nunca foi mal atendido num restaurante, num bar, numa loja, numa repartição pública.

Quem se ofende, provavelmente não precisou explicar para ninguém que não era a babá ou o motorista dos próprios filhos, não precisou mostrar o documento do veículo e o RG para provar que era seu, não apanhou confundido com o ladrão do próprio carro e nunca foi desrespeitado por cultuar seus ancestrais.


Provavelmente também nunca recebeu olhar de incredulidade quando apresentado por seu ofício ou seu título, não teve o desprazer de lhe ser indicado o elevador de serviço nem ouvir quando atende a porta de sua própria casa: “seu patrão ou sua patroa tá aí”?

E essas são só algumas histórias que ouvi de gente querida e maravilhosa cujo “defeito” é não ter nascido de pele clara. Sei de tantas....já vi tanta maldade em forma de preconceito...Mas, da minha vivência, sei que negritude, consciência está para além da cor da pele. Sei que sou a somatória de tudo isso e, portanto, tenho muito respeito por tudo que se relaciona com o resgate da dignidade a quem um dia foi negado o direito da escolha do ir e vir.

E, para os que questionam, ironizam ou fazem piada com o feriado do 20 de novembro, este país deve a muitos povos, em especial, aos negros, a formação da sua riqueza e da sua cultura. Se, do ponto de vista biológico reconhecemos que A RAÇA É HUMANA, reconhecer, historicamente, a dívida com os negros na história desse país é ter mais que consciência. É fazer justiça. E que o Dia Nacional da Consciência Negra colabore para que todos e todas reflitam aonde guardam seu preconceito.


Vista a Minha Pele
2003, 15 min.

“Vista a Minha Pele” é uma divertida paródia da realidade brasileira. Serve de material básico para discussão sobre racismo e preconceito em sala-de-aula.
Nesta história invertida, os negros são a classe dominante e os brancos foram escravizados. Os países pobres são Alemanha e Inglaterra, enquanto os países ricos são, por exemplo, África do Sul e Moçambique. Maria é uma menina branca, pobre, que estuda num colégio particular graças à bolsa de estudo que tem pelo fato de sua mãe ser faxineira nesta escola. A maioria de seus colegas a hostiliza, por sua cor e por sua condição social, com exceção de sua amiga Luana, filha de um diplomata que, por ter morado em países pobres, possui uma visão mais abrangente da realidade.

Maria quer ser “Miss Festa Junina” da escola, mas isso requer um esforço enorme, que vai desde a superação do padrão de beleza imposto pela mídia, onde só o negro é valorizado, à resistência de seus pais, à aversão dos colegas e à dificuldade em vender os bilhetes para seus conhecidos, em sua maioria muito pobres. Maria tem em Luana uma forte aliada e as duas vão se envolver numa série de aventuras para alcançar seus objetivos. O centro da história não é o concurso, mas a disposição de Maria em enfrentar essa situação. Ao final ela descobre que, quanto mais confia em si mesma, mais capacidade terá de convencer outros de sua chance de vencer.
Indicações de uso:

O vídeo pode ser usado na discussão sobre discriminação no Brasil. É um instrumento atraente, com linguagem ágil e atores conhecidos do público alvo - adolescentes na faixa de 12 a 16 anos. Vem acompanhado de uma apostila de orientação ao professor para sua utilização em sala de aula, elaborada por educadores e psicólogos comprometidos com as questões de gênero e raça.


Ficha técnica:
Duração: 15 minutos
Direção: Joel Zito Araújo
Produção: Casa de Criação
Contato:
Tel.: (11) 6978-8333

Reproduzido do site http://www.piratininga.org.br/videos/discriminacao.html





quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Cambalhotas Para Ninguém

Por Cineas Santos


De Praça do Marquês, Teresina, Piauí. Foto Rhaony Rezende


No final do milênio passado, num arremedo de crônica sobre Teresina, afirmei: ainda não é uma grande cidade, graças a Deus. Ainda há quintais, mangueiras, passarinhos e meninos para persegui-los. Remexendo o baú de “inutensílio”, encontrei a crônica e, consternado, constatei que ela está bem mais velha do que eu. A cidade de que falo parece perdida na poeira de um passado remoto. Hoje, eu diria: ainda não é uma grande cidade, mas, infelizmente, já padece de todas as mazelas que infernizam as metrópoles brasileiras. Trânsito caótico, engarrafamento, poluição sonora e visual e, principalmente, estresse e medo. Aquele medo “que esteriliza os abraços”, de que falava o poeta. A cadeira na calçada deu lugar às cercas elétricas; a pracinha do bairro foi trocada pela praça de alimentação dos shopings, em nome de uma suposta “segurança”. A cidade, numa velocidade desconcertante, vai perdendo aquele ar provinciano que lhe conferia faceirice e graça. A volúpia da novidade parece ter-se apossado dela com reflexos negativos. Na calada da noite, casarões antigos transformam-se em estacionamentos e, a despeito disso, os automóveis ocupam cada centímetro dos espaços destinados aos pedestres. Hoje, é mais fácil comprar um automóvel do que estacioná-lo no centro da cidade...

A exemplo de qualquer grande cidade brasileira, nos semáforos de Teresina, ambulantes pedintes e malabaristas disputam as moedinhas esquecidas no porta-lixo dos automóveis. Para evitar o assédio, os motoristas levantam os vidros ou aumentam o volume do som. À noite, já não é prudente parar em lugar algum, mesmo que isso implique o risco de multa pesada: melhor perder ponto na carteira que a vida. Um amigo cínico explica tudo com sua lógica enviesada: “somos todos reféns da barbárie civilizada”. Falta-me autoridade para contestá-lo.

Mas o propósito dessa arenga não é denunciar o óbvio nem lamentar o que já se perdeu. Quero apenas registrar uma prática lúdica, lírica e espontânea que, pelo menos duas vezes por semana, se repete na Praça do Marquês. Ali, nos finais de tarde, um grupo de garotos de idades variadas (de 8 a 17 anos) se reúne regularmente para praticar um pouco de ginástica: saltos mortais, cambalhotas, brincadeiras. Os mais experientes orientam os mais jovens que, a cada conquista, vibram como se estivessem conquistando pontos numa olimpíada imaginária. Quando erram, repetem o salto com aplicação e redobrado esforço. Como sinal de aprovação, recebem tapinhas dos companheiros. Normalmente, os transeuntes apressados não param para aplaudi-los; é possível que nem se deem conta da presença daqueles moleques vadios que, nas tardes de chumbo de Teresina, dão cambalhotas pra ninguém.

Às vezes, paro e fico espiando as estripulias daqueles garotos pobres que, indiferentes ao rugido furioso dos automóveis, apenas brincam como deveriam brincar todas as crianças da cidade: ao ar livre, sem o olho vigilante dos pais. Espiritualmente, brinco um pouco com eles enquanto, “sem querer saber de mim, a tarde desce”...


quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Para onde nossos pais estão indo?

Por Leila Barros


De Para onde nossos pais estão indo






Fiquei olhando para o meu pai em uma dessas madrugadas em que ele perdeu o sono e queria tomar um leite quente. Olhei para seu rosto um pouco envelhecido (sim, um pouco apenas, a genética lhe foi benéfica) e seu cabelo já embranquecido coberto por um gorro simpático, como o de alguns Rappers.

Falava de coisas simples, comia suas bolachas de água e sal e às vezes suas frases e respostas me surpreendiam pela falta da memória astuta e ágil de outrora. Do signo de Leão, e fazendo jus ao zodíaco, sempre foi um leonino guerreiro e forte, um homem de dignidade e coragem. Procurou passar exemplos de probidade e otimismo em tudo que dizia e diz. E uma das coisas que dizia sempre, é nós não devíamos entrar em campo já perdendo em espírito.

Enquanto ele tomava seu leite e dizia algumas coisas eu me perguntava mentalmente:

- Para onde está indo o meu pai? Que cosmos serão esses que ele visita de vez em quando? Que será feito de sua força voraz? Será daqui para frente uma força que vai e volta? Será que existe algum lugar secreto que ele visita de vez em quando, nos momentos em que se enche desse planeta? Será que ele vislumbra de vez em quando um campo de futebol diferente? Será que visita um futuro mais palpável para ele? Será que sente falta de carregar motor de barco nas costas? Será que sente falta de pescar no Mato Grosso, de caminhar a pé até Bom Jesus de Pirapora, de tomar bagaceira?

Deve ser difícil para ele enfrentar sua própria realidade limitante, mas nessas horas procuro me lembrar da Tônia Carrero, que diz:

“Envelhecer é muito difícil, mas como o outro caminho é morrer...vamos em frente!”

Perguntei-me se haveria recursos médicos e humanos que pudessem amenizar esse processo natural de envelhecimento. Acho que eles existem sim e decidimos aqui em casa que vamos atrás desses recursos.

Não há como impedir a biologia e a força da gravidade de continuarem seus cursos, mas há sempre um jeito novo de se olhar para as coisas. Como meu próprio pai nos ensinou, não vamos simplesmente desistir e ficar olhando tudo com pessimismo e autocomiseração. Se entrarmos em campo, que seja para ganhar e que o Parreira não nos escute!

Estamos nos modificando e aprendendo a conviver com essa nova fase dele. É apenas uma etapa diferente, é a “envelhescência”, como a adolescência e outras. Vamos rir com ele, vamos motivá-lo, vamos incentivá-lo a fazer seus exames médicos, a tomar vitaminas, a praticar sua caminhada diária, vamos fazer com que ele se sinta útil e amado.

Agora eu sei para onde meu pai está indo. Ele segue o caminho lento e natural de todos nós. Mas, para trilhar esse caminho sem machucar os pés e nem o coração, é preciso não ter pressa. E há que se aprender com ele, todas as lições que ele tiver ainda a ensinar. É preciso que desde já comecemos a encher a mochila de otimismo saudável, de práticas de vivência salutares, vitaminas espirituais e físicas.

E para nos fortalecermos para o futuro, vale tudo: dançar, caminhar, ler a vida de Dalai Lama, ler as recomendações de Nuno Cobra, estar com as pessoas, gostar das pessoas, aprender e ensinar, doar um pouco de nós, participar de concursos, nos sentirmos vivos e pulsantes como estrelas esperançosas.

E só assim é que poderemos conviver e partilhar nossos melhores recursos e momentos com nossos pais, que de vez em quando dão uma fugidinha sabe-se lá para onde.

Mas eles sempre voltam porque sabem que nós estamos aqui.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

REMANESCÊNCIAS DA SENZALA


Ou: No Piscinão de Ramos tem água dos navios negreiros


De Navio negreiro e piscinão de ramos


De Navio negreiro e piscinão de ramos


Em Maceió o Censo 2007 ficou emperrado por conta de algumas pessoas terem se negados a receber os recenseadores em suas casas. Apesar da garantia oferecida pelo IBGE, alguns moradores usaram a desculpa da violência urbana para não abrirem as portas aos contadores de gente, geralmente jovens estudantes em busca de rendimento extra.

Com esse mesmo argumento impedem que o mata-mosquito faça seu trabalho de profilaxia da dengue, deixando a população à mercê do famigerado mosquito aëdes aegypti, causador de tantas dores e óbitos. Por ser uma questão de saúde pública, o Ministério Público se aliou à Secretaria da Saúde e prometeu abrir ações processantes contra os disseminadores do grande mal do verão, depois do câncer de pele, claro.

Será que é apenas o medo que faz certas pessoas abraçarem o individual em detrimento do coletivo? Em Alagoas há poucas industrias de grande, médio ou pequeno porte e a mão de obra ativa se aglomera na senzala das usinas. Ainda se pratica a agricultura de subsistência e a monocultura da cana-de-açúcar domina as áreas férteis. Possui um dos IDH mais baixo do país, a menor renda per capita, os mais altos índices negativos e, no entanto, sua capital, Maceió, posa de cidade próspera: todo dia surgem apartamentos luxuosos totalmente vendidos; concessionárias de carros de luxo reduzem a pó as revendedoras de carros populares.

Talvez o medo do amigo do alheio seja só desculpa para não se escancarar publicamente certas riquezas emergentes, sem a devida comprovação da licitude da renda, tal qual a fertilidade e valorização de bois de certo senador e de polpudos honorários a braços armados da elite política.

Em idos tempos, no interior da Bahia, o medo do recenseador tinha outra justificativa. O supervisor do Censo local recebeu reclamação de que um cidadão metido nas brenhas da roça se negava receber o contador de gente. Ou fugia ou se escondia. O superior tomou a si a tarefa. Bateu à porta do jeca total.

- Ô de casa!

- Ô de fora! Quem é? – perguntou uma senhora.

- É do Censo! – respondeu.

- Corre, Benedito! É o homi do Guverno! – gritou desesperada.

Um homem, saído do nada, pulou a janela da sala e saiu correndo pelo descampado do terreiro. Seria o tal Benedito? O supervisor montou no cavalo e foi atrás. Laçou o homem como se laça um boi na caatinga. O capiau estancou, se ajoelhou e implorou:

- Por favor, seu Censo, não tome as minhas terras!


Mas, a cada censo, uma história a ser contada. Não faz muito tempo que se discutia qual era a real cor do brasileiro. Havia brancos, pardos, mulatos, índios, mamelucos, chocolate, café com leite, marrom glacê, as sete cores do arco-íris, menos o preto. Em São Salvador da Bahia, reduto do orgulho afro, o preto deixou de ser preto para assumir a “baianidade nagô” balançando a bundinha na subida do Pelô. Baseada nessa premissa, uma madame chique, em uma padaria chique, no chiquérrimo bairro do Farol da Barra, chamou o balconista, um negro de dois metros de altura por outro tanto de largura:

- Moreno! Ei, moreno! – apelou.

- Moreno, não, sua madame racista! Sou negão mesmo!

Este era um negro orgulhoso de sua raça, disposto a não deixar um branco tingir sua cor, mesmo sendo um simples balconista e ela uma cliente cinco estrelas. Era um senegalês legítimo, altivo, zeloso de sua cor, tal qual o poeta Léopold Sédar Senghor, primeiro presidente do Senegal independente e um dos mais destacados membros da Academia Francesa de Letras.

Poema para meu irmão branco

Léopold Sédar Senghor

Querido irmão branco.
Quando eu nasci, eu era negro,
Quando eu cresci, eu era negro,
Quando estou ao sol, eu sou negro,
Quando estou doente, eu sou negro,
Quando eu morrer, eu serei negro.

Quanto a você, homem branco,
Quando você nasceu, você era rosa,
Quando você cresceu, você era branco,
Quando você está ao sol, você é vermelho,
Quando você está com frio, você é azul,
Quando você está com medo, você é verde,
Quando você está doente, você é amarelo,
Quando você morrer, você será cinza.

Agora, de nós dois,
quem é o homem de cor?

Quem é o homem de cor, cara-pálida? No antigamente de Copacabana, quando as madames caras-pálidas levavam seus cachorrinhos para fazer cocô no calçadão mais famoso do Brasil, algumas vezes paravam para tricotar com algum negro de suas relações. Se flagradas por alguma amiga em conversa iorubana, assim se justificavam:

- Ele é um preto de alma branca!

Pronto: achada a fórmula para se acabar com o racismo no Brasil e no mundo: preto com alma branca. Tão simples quanto uma equação matemática. Tão fácil quanto pescar de bomba em aquário. Na contramão da singeleza desse argumento preconceituoso, escreveu o poeta negro pernambucano Lepê Correia, em seu livro de poesias “Caxinguelê”:


Nego Afoito

Podem me chamar tiziu

Toco preto ou azulão

Toco de lenha queimada

Me chamem de tisna ou tição

De nego da alma preta

Fazedô de confusão.

Podem dizer que sou feio

(Macaco num perde não)

Sou escuro que nem breu

Sou parente de carvão

Que minha alma é suja

Que nem a alma do cão

Que jabuticaba é alva

Se fizer comparação

Que sou tição de fogueira

Depois que passa são João

Que sou borra de cuvitêro

Lá nos confins do Sertão.

Que das coisas pió do mundo

Eu sou a consumação

Que sou briga em fim de festa

Que pareço um boi tungão

Que sou tudo o que não presta!

Mas que tenho a alma branca, NÃO!


Mas não foi por causa deste poema que o preconceito mudou de cor. Os farofeiros suburbanos descobriram simultaneamente sua cidadania e o mar de Copacabana. Assim como os pretos e os paraíbas, também se tornaram a bola da vez dos puros de sangue e cor. Dondocas chateadas reclamam da plástica e da farinha tarada que encarna em seus microbiquinis. Como paliativo, construíram o Piscinão de Ramos para segurar a plebe rude em seu reduto, mas periferia é feito formigueiro e seria preciso mais de mil piscinões para se manter o povo em seus domínios. Serão construídos, duvide não da capacidade dos nossos políticos em governar para a elite. O importante é deixar Copacabana para a nata social, com seus sucrilhos e limonadas geladas.

Quem teve a oportunidade de assistir ao documentário “Faixa de Areia”, sentiu as cores do preconceito na areia de Copacabana e Ipanema. As cineastas Daniela Kallmann e Flávia Lins e Silva expõem cruelmente a face dessa segregação latente e, em tomadas alternadas entre os invasores e os pseudos donos do pedaço, escancaram o apartheid existente nas areias de Copacabana: a demarcação territorial dos gays, das lésbicas, dos farofeiros fugidos de Ramos, dos pretos, dos gordos, dos magricelas desenxabidos e dos adoradores do capim seco.

No Porto da Barra, em Salvador, também campeia o mesmo preconceito suburbano de Copacabana. Quando a Prefeitura criou a linha de ônibus do subúrbio e de bairros populares passando pelo Porto da Barra, as madames também chiaram. E chiam. Hoje, menos. O medo da censura pública e de um processo judicial amordaça o preconceito de muita gente. Mas, no início, a reação era uníssona:

- E agora? Minha praia invadida por farofeiro?

Atentai, almas brancas, para a posse iminente: “Minha praia”! Compra-se uma casa financiada pelo Sistema Financeiro de Habitação, e já se faz dono do pedaço inteiro, mesmo com o oficial de justiça batendo à porta, em penhora de calote à Caixa Econômica Federal.

Xangô, o deus da Justiça, um dia ouviu o clamor dos injustiçados e desceu sua ira com fúria total sobre os sublimados moradores do Porto da Barra e adjacências, ampliando o domínio do carnaval baiano, empurrando para o outrora sossegado bairro do Farol, a axé music e toda sua parafernália eletrizante. Seria o supra-sumo do castigo aos ímpios se o diabo ocidental não tivesse consolado os brancos pálidos e loiras oxigenadas do metro quadrado mais caro da Bahia com seu sádico axioma: preto pobre e suburbano que estiverem no carnaval da Barra, ou estão catando lata ou puxando corda nos blocos de trio.

É por isso que digo, afirmo e confirmo: o Piscinão de Ramos e os blocos de corda de Salvador têm tudo a ver com os navios negreiros.