sábado, 5 de dezembro de 2009

Eis que vos apresento: o arraial do Junco

Pequena amostra do Casamento da Rosinha




O Junco: um pássaro vermelho chamado Sofrê, que aprendeu a cantar o Hino Nacional. Uma galinha pintada chamada Sofraco, que aprendeu a esconder os seus ninhos. Um boi de canga, o Sofrido. De canga: entra inverno, sai verão. A barra do dia mais bonita do mundo e o pôr-do-sol mais longo do mundo. O cheiro do alecrim e a palavra açucena. E eu, que nunca vi uma açucena. Sons de martelo amolando as enxadas, aboio nas estradas, homens cavando o leite da terra. O cuspe do fumo mascado da minha mãe, a queixa muda do meu pai, as rosas vermelhas e brancas da minha avó. As rosas do bem-querer:


- Hei de te amar até morrer.

Essa é a terra que me pariu”.

Antonio Torres. In “Essa Terra”

...

O Junco é o Junco, nada mais que o Junco. No princípio era o Verbo. Depois um Substantivo. Real: um cruzeiro. Concreto: uma igreja. Abstrato: uma estrada que leva ao mundo dos anseios e dos sonhos.

Terra dos confins. Léguas da promissão. De errantes navegantes que se aventuram de corpo e alma nesse mundão sem dono. Ou melhor: eles são o seu dono. Antonio Torres, o escritor; Marcelo Torres, o jornalista; Cristiana Alves, a poetisa; Décio Torres, o professor, e Udileston Lopes, o venturoso, que chegou ao distrito federal com u’a mão à frente, outra atrás, pra se tornar um empresário bem sucedido do ramo alimentício. Herval Santana, o oficial de justiça em Salvador. Com uma câmara na mão e uma ideia na cabeça tenta resgatar a memória cultural da terra à moda glauberiana. Também não nos esqueçamos de Aimé Cruz, a boa cristã, que passa o ano em Alagoinhas arrecadando brinquedos para doá-los às crianças carentes no Natal do Junco.

Mas a estrada de saída é a mesma de chegada. Há os que nasceram em terras alhures, chegaram e ficaram. Luiz Eudes, o empreendedor, hoje guardião dos cofres públicos, filho do comerciante Luiz de Rouxinho, que até hoje mantém o antigo hábito de vender fiado pra se pagar na safra. Quando há safra. Joaquim Neto, o médico, hoje prefeito, sobrinho-neto de Ioiô Cardoso, um dos idealizadores da emancipação política e primeiro prefeito do arraial do Junco. Tem também o Abimael Borges. Chegou sonso e permaneceu calado e hoje é um cineasta premiado por mostrar a feira do Junco em rede nacional. Esse seu curta-documentário se encontra postado aqui no blog, com o nome “Caminho de Feira”.

Outros há, e de monte, a contribuir com o progresso. Se não ocupam uma posição de destaque, destacam-se pela sua importância no contexto econômico nacional. Uns mais, outros menos, mas todos contribuem para rodar as engrenagens do desenvolvimento da nação. Não há estrofes na poesia concreta da pauliceia desvairada que não contenham versos escritos pelas mãos calejadas de um junquês.

Em fevereiro tem carnaval. Tem a festa da padroeira. E que festa! Três mil e quinhentos carnavais não traduzem a alegria emanada do povo. É o dia convergente, o chamado da terra aos que partiram em exílio voluntário. É o dia do encontro entre os que estão e os que são apenas saudades no resto do ano.

Junho é o mês joanino. Maior festa da Bahia: São João. Todas as cidades se enfeitam de bandeirolas e fogueiras, onde alguns se casam, outros se acasalam e as crianças soltam fogos ao pé da fogueira, indiferentes às ações dos adultos. É o forró, o rala-bucho, o pau-de-porteira. Licor de jenipapo, passas, quentão. É a poeira subindo, a fumaça sufocando, a sanfona rangendo e o couro da zabumba gemendo. E no arraial do Junco ainda há mais: o Casamento da Rosinha, no dia 24 de junho, que atrai um monte de gente do lugar e de outros rincões. Uma festa à antiga em tempos modernos. Chova ou faça sol, por trinta anos o cortejo segue rua acima, rua abaixo, arrastando multidões que não resistem ao chamado da sanfona e da zabumba. E aos encantos da Rosinha.

Portanto, eis o arraial do Junco, hoje Sátiro Dias, o herói abolicionista nacional, que em 1884 teve a coragem de abolir a escravidão no Ceará, e seria hoje uma terra como outra qualquer se não existisse um fator relevante: é a terra que me pariu.



sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Indicação de Leitura

Fogo morto,
romance vivo

Por Antonio Torres


De Fogo Morto - José Lins do Rego


São raras as obras literárias comparáveis aos diamantes, cujo brilho nunca se apaga. Fogo morto é, sem dúvida alguma, uma dessas raridades. Publicado originalmente em 1943, foi logo aclamado como uma obra-prima, assegurando a seu autor, o paraibano José Lins do Rego, um lugar inarredável na galeria dos maiores prosadores do século XX. Lido (ou relido) agora, entende-se perfeitamente o impacto que ele provocou logo no seu lançamento, quando foi festejado por críticos exemplares como Otto Maria Carpeaux, Antônio Cândido, Tristão de Athayde, Afonso Arinos, Wilson Martins, e mais e mais, sem esquecermos o entusiasmo que despertou em dois expoentes das letras nacionais, os escritores Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Mas a força criadora de José Lins do Rego, que em seu décimo romance – e aos 42 anos de idade - chegara ao apogeu, haverá de ser sempre louvada.

Fogo morto tem por núcleo a pungente história de três personagens trágicos: o mestre José Amaro, homem do povo, de firmes convicções, condenado a um destino brutal; o major Luis César de Holanda Chacon, um citadino instruído e ocioso que, por laços matrimoniais, ascende à nobreza rural, vindo a se tornar um senhor de engenho truculento, cujo destino o condenaria a uma melancólica decadência; o patético capitão Vitorino Carneiro da Cunha, o Papa-Rabo, espécie de Quixote sertanejo, réprobo de suas fantasias de heroísmo – e uma criação literária simplesmente brilhante. Estes protagonistas, somados a um elenco de coadjuvantes igualmente memoráveis, compõem um amplo espectro da sociedade brasileira na transição entre a Escravatura e a Abolição.

Simbolizando o fim de uma era, Fogo morto expõe a vulnerabilidade de todo um ciclo econômico – o da cana-de-açúcar –, dependente do trabalho escravo. Com a Lei Áurea, até os senhores de engenho ficaram sem saber o que fazer de si mesmos. A trama do romance, portanto, envolve complexas tensões entre casa grande x senzala, homens x mulheres, brancos x pretos, cangaço x governo etc. E escancara uma realidade de violência, racismo, machismo e loucura, temas (ainda!) tão contemporâneos. Tudo isso entretela a sua abrangência histórica e alta significação literária.



quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

QUANDO ACABAR O MALUCO SOU EU

“Olha, toda boa, toda boa... 
Agora eu quero ouvir: ai, ai... eu sou toda boa 
Olha toda boa, toda boa... Ai, ai... 
Eu sou toda boa!!! 
Quando falar ai, ai... Passa a mão no corpinho assim ó... 
Ai, aí... Eu sou toda boa...”
(refrão da música campeã do carnaval baiano)
Ontem, ao meio-dia, enquanto esperava o ônibus no centro da cidade, um carrinho de cd pirata tocava uma música dessas bandas de pagode baiano. O bater do tambor imprimia um ritmo difícil de ser identificado: tanto poderia ser um samba, um pagode, um reggae, um rap, um technobrega ou tudo isso junto. Meus parcos conhecimentos eruditos não me permitiram separar o joio do trigo daquela preciosidade musical, cuja letra ainda massageia minha persistência timpânica: 
“Ela tá toda molhadinha
já sinto cheiro da calcinha
vou cheirar sua bundinha”
Uma vez, conversando com Edna sobre a péssima influência da axé music sobre os jovens brasileiros, assim ela me explicou a razão do sucesso instantâneo de alguns e de sua transitoriedade midiática:
– Acontece que essas músicas têm um ritmo forte, quente, e atraem a garotada justamente por não precisar forçar os neurônios para decorar letras complexas. Eles querem dançar, e não cantar, e nisso a melodia é muito boa. Quem oferecer melhor opção de se dançar sem precisar pensar, este será a bola da vez.
Para quem não sabe, Edna é a minha cara consorte (ou sem sorte mesmo) e é educadora (ou sofredora) e por isso falou com a sabedoria de um sábio chinês. Se é que realmente existe algum sábio chinês. 
Nunca havia pensando nas razões dessa juventude atarantada que chega a pagar mais de dois mil reais por um pedaço de pano que dá direito a se desgastar atrás do trio elétrico do Chiclete com Banana, apesar de ter acompanhado o nascimento, o auge e, espero um dia, a morte dessa praga que leva o nome indevido de “axé”. Cada vez mais aumenta a corrente dos contra na Soterópolis. Do Abaeté ao Farol da Barra, do Porto até o Largo dos Tamarineiros, na Ribeira, no carnaval passado, não se ouvia um elogio ao carnaval. Branco, preto, loiro e mulato, cada um a seu modo, reclamavam da “turistização” da festa que até vinte e um anos atrás tinha o sotaque genuinamente baiano. Nos jornais, colunistas famosos reclamavam; na rua, Carlinhos Brown pedia ao ministro da Cultura o fim do apartheid das cordas; no chão, Caetano Veloso brincava na pipoca de Margareth Menezes e se dizia contra os camarotes e as cordas; na tevê, Armandinho e outros desciam a ripa no mercantilismo carnavalesco; no Mudança do Garcia um artista plástico denunciava que “em todo bloco de corda há um pouco de navio negreiro” e “em todo camarote há um pouco de casa grande”. Na quarta-feira de cinzas o prefeito de Salvador anunciava nos jornais: “É preciso repensar o carnaval”.
O que se viu foi um carnaval completamente esvaziado do publico pipoca, aquela enorme multidão que deu voz ao carnaval baiano e que cada vez mais se sente alijado de sua festa. Da Castro Alves ao Campo Grande, do Farol da Barra a Ondina, podia se andar tranquilamente pelas ruas da folia, pois era pífia a presença do folião fora das cordas e o empurra-empurra, característica do carnaval de rua, este ano praticamente não existiu, exceto em alguns pontos badalados, como o em frente ao camarote de Daniela Mercury e do Expresso 2222, onde os artistas se esmeram no puxa-saquismo desenfreado.
Mas o carnaval não foi perdido de todo. Ainda sobra espaço para os foliões da velha guarda. O Centro Histórico é um deles. E se tornou o carnaval da família, com milhares de mamães corujas brincando com seus bambinos atrás de bandinhas de frevo e marchinha. A violência inexiste e quem ousar tocar axé, será sumariamente defenestrado do circuito. O contraponto é que a cada ano aumenta a afluência de público, principalmente o infantil, e brincar atrás de um bloco requer um verdadeiro teste de paciência e tolerância ao se tomar banho de spray de espuma, brincadeira preferida da garotada. Inocentemente, elas revivem os primórdios do carnaval, quando ainda se chamava “entrudo”.
Outro local aprazível é o bloco de protesto Mudança do Garcia, que sai na segunda-feira. Esse bloco é formado pelos sindicatos e arrasta uma multidão de foliões, sem corda nem segurança. Quem chegar cedo à concentração, ganha camisa dos vários blocos que acompanham o cortejo, animado por bandas e mini trios elétricos, e as músicas tocadas são as dos carnavais de antigamente: marcha, frevo, samba ou samba de roda. Uma grande parte dos participantes é constituída de jovens, o que significa que nem tudo está perdido. 
Hospedado no Farol da Barra, não poderia ir para casa sem apreciar a magnitude sublimada das estrelas da festa. Depois de curtir o carnaval de outrora, tomava uma overdose de axé musical antes de dormir e, para meu espanto, nossas divas se esmeraram em sucessos antigos, deixando para trás a fraca criação carnavalesca. Frevos e marchas podiam ser ouvidos constantemente, o que me trouxe a risonha esperança de que algo vai mudar sob o céu anil da mais velha capital do Brasil. 
Mas, voltando ao carrinho de cd pirata que repetiu a música “molhadinha” enquanto eu esperava o ônibus, a aberração musical incomodava os meus ouvidos e, quando pensei em pedir ao pirateiro para mudar a faixa do cd, notei que a maioria das pessoas presentes sacudia o corpo no ritmo do cavaquinho. Recolhi-me à minha insignificância e puxei conversa com uma senhora, acompanhada de duas adolescentes, provavelmente suas filhas. Tive a impressão de que ela também não estava gostando do que ouvia. Animei-me a falar da falta de imaginação (ou talvez excesso de intolerância de minha parte) dos compositores de tais músicas, quando ela me interrompeu para falar com as filhas:
– Olhaí a música que vocês gostam. Por que não aproveitam e dançam enquanto o ônibus não chega?
Por sorte meu buzú chegou e não precisei dar testemunho dessa decadência moral. O mundo se perdeu na indecência globalizada enquanto católicos e evangélicos preocupam-se apenas com o uso da camisinha ou com as pesquisas de célula-tronco, que podem salvar muitas vidas. Salvemos o mundo da indigência cultural e da mediocridade que a acompanha. 
Dançar é preciso, mas cantar é fundamental.



terça-feira, 1 de dezembro de 2009

OS SALVADORES DA TERRA

Cineas Santos

De SOS Planeta Terra


No milênio passado, trouxeram a Teresina um sábio para discorrer sobre questões ambientais. O cidadão, autor de um livro referência sobre chuvas ácidas, era professor-doutor não sei exatamente em quê. Por mais de uma hora, o moço verteu sabedoria por todos os poros e terminou sua peroração com o chavão apocalíptico: “Lembrem-se de que temos pouco tempo para salvar nosso planeta”. Tive a compulsão de questioná-lo sobre o poder e a responsabilidade que ele nos atribuía. Salvar a Terra? Isso dito por uma professorinha de escola de periferia até que se entende, mas por um sábio... Ora, a Terra, com ou sem a nossa presença, vai continuar existindo e parindo novas formas de vida. Quanto a nosotros, o máximo que podemos fazer é, se tivermos bom senso, prorrogar por mais alguns anos a nossa permanência nesta casca de noz. Nada além. Como aprendi que não se devem questionar os sábios, permaneci calado no meu canto.

Por razões que ignoro, os organizadores do evento pediram que eu me manifestasse. Limitei-me a afirmar que as minhas preocupações ambientais estavam centradas no meu quintal, na minha rua, na minha aldeia. O sábio, com um misto de ironia e desprezo, perguntou: “Quer dizer que você não se preocupa com o macro?” Peguei de bate-pronto: tanto me preocupo, meu irmão, que estou cuidando do micro. E, só de sacanagem, acrescentei: eu também me interesso pela Via Láctea, mas, no momento, estou tentando entender o mecanismo que acende os vaga-lumes. E mais não disse por que não vinha ao caso.

A lembrança desse fato ocorreu-me quando fui procurado por um grupo de jovens que queria a minha participação na “Marcha pela salvação do Planeta”, que se realizará antes da Conferência de Copenhague. Segundo um dos organizadores, “Precisamos pressionar os Estados Unidos e a China para que eles estabelecerem metas concretas de redução das emissões de CO2”. O garoto falava com tal convicção que quase me convenceu a participar da passeata salvadora. Lembrei-me de que, na remota década de 80, eu também andei “salvando o Planeta” em manifestações do gênero. Como já não tenho aspirações tão ambiciosas, perguntei-lhe: meu jovem, não seria menos complicado tentar convencer os bem-nascidos de Teresina a não lavarem seus carrões e carrinhos na beira do Parnaíba? Veja bem: os Estados Unidos não costumam ouvir a ninguém; a China, por seu turno, é muito longe. Por que não “pensar globalmente e agir localmente”, como apregoam os corifeus da ecologia?

Os jovens me fuzilaram com olhares reprovativos e se retiraram sem se despedir. Um deles chegou a declarar: “Não adiante discutir com esse tipo de gente: são todos iguais. Ambiciosos e egoístas, não pensam no futuro da humanidade”. Ao ver aqueles jovens idealistas partirem desapontados e enfurecidos, experimentei (por que não confessar?) uma pontinha de arrependimento. Meu Deus, se o mundo acabar em 2012, como preveem alguns profetas, seguramente a culpa será minha. Minha e de mais ninguém.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Mulher que se toca

Por Edna Lopes


De Autoexame


“... se tudo que você disse tivesse se transformado em ouro, se tudo que você sonhou fosse novo, imagine o céu bem lá no alto... (da cor do) azul do Caribe” [Caribbean Blue-Enia ]

Parte do trabalho que sempre fiz e faço é formação e sempre sou convidada por outros municípios para momentos assim com professores, conselhos escolares, conselho de educação, coordenadores pedagógicos e diretores. Certa vez fui convidada por um dos municípios alagoanos para realizar um trabalho de Avaliação da Aprendizagem para um grupo só de professoras mulheres. No relato da secretária de educação, um grupo difícil, com problemas de relacionamento, de convívio, um grupo que vivia se estranhando.

Perguntou se podia iniciar o trabalho só com dinâmicas de grupo e autoestima. Recomendei um profissional da área de Psicologia, pois, embora goste e utilize dinâmicas e outras estratégias lúdicas no meu trabalho, são sempre dentro de um contexto específico, voltadas para a questão ou reflexão em pauta. A secretária concordou comigo e providenciou o profissional adequado para aquela demanda e lá fomos nós fazer o trabalho.

Já que o profissional não se opôs, fiz questão de participar do trabalho junto com o grupo. Seria o momento ideal para nos conhecermos um pouco mais, já que ficaríamos juntas por uma semana. Muitas dinâmicas depois o grupo estava leve, descontraído.

Perto do meio-dia, o profissional colocou Caribbean Blue (Enia) no micro system e pediu para que deitássemos. Iniciou uma sessão de relaxamento, orientando a forma correta da respiração, sugerindo imagens, pensamentos. Com voz pausada, sugeriu que nos tocássemos. Mãos, braços, rosto, pescoço, seios. Do meu lado uma senhora já não tão jovem exclamou baixinho: “Sangue de Cristo!! Estou toda arrepiada!”

Precisei me controlar para não cair na risada. Percebi certo constrangimento em outras, mas essa senhora estava visivelmente apavorada com o que estava sentindo. Falei baixinho que se não estivesse se sentindo bem não precisava fazer, mas ela respondeu que tudo bem.

Minutos depois, já em círculo, o profissional pediu para que, quem se sentisse à vontade, avaliasse a atividade e se quisesse, comentasse também sobre o que sentiu da experiência do toque. Todas avaliaram, mas poucas ousaram comentar. Os risos amarelos diziam apenas “gostei muito”, “adorei”, “maravilhoso” e outros tantos elogios no gênero, mas havia nos olhares furtivos ou meio assustados um quê lúbrico, como se todas temessem a areia movediça do sentimento... Traduzi olhares de surpresa por terem ousado tanto. E mais: olhares também muito culpados por terem sentido algum prazer naquilo.

Ainda sem perceber onde o moço queria chegar, optei por defender a ideia do autoconhecimento, da importância que é conhecer nossos sentimentos, nossas limitações, nossas qualidades. A importância de conhecermos nosso corpo e nossas reações ao que nos cerca, ao que nos estimula e mobiliza. Lembrei a elas do quanto era importante esse “se tocar”, fazer o auto exame das mamas a cada mês, se olhar e se tocar para identificar qualquer alteração no corpo, salvar a própria vida.

- Tocar o corpo, para nós mulheres, é mais que prazer, é necessidade e não devemos sentir vergonha por isso – falei, passeando os olhos pelo grupo. Algumas assentiam, outras fugiam do olhar, riam encabuladas.

Aproveitei o silêncio que se fez e comentei do quanto é importante também conhecer o próprio corpo com relação ao nosso prazer, afinal não somos assexuadas, temos desejos, somos seres afetivos e se, culturalmente, nos cobram um papel passivo, receptivo, cabe a cada uma desconstruir essa imagem primeiro em nós mesmas, depois em quem conosco convive. Devíamos, sim, refletir por que se nossa educação marcadamente na versão religiosa nos inferiorizava tanto (mulher é o ser que induz o homem ao mal; tudo que se relacione ao corpo da mulher é impuro, é pecaminoso) e éramos nós mesmas a aceitar esse pensamento recorrente e a reproduzir isso nas nossas práticas como companheiras, mães e educadoras.

Finalizei citando Eduardo Galeano: “O corpo não é uma máquina como nos diz a ciência. Nem uma culpa como nos fez crer a religião. O corpo é uma festa.” Não sei se me aprovaram, mas me aplaudiram.

O profissional aproveitou a deixa e comentou que tocar em si se aprende. Que é preciso gostar de tocar em si para gostar de tocar o outro. Se permitir apertar a mão, abraçar um amigo sem achar que isso já é “conjunção carnal”. Que na nossa cultura as relações afetivas reverenciam o toque como o gesto máximo, o coroamento do afeto e todas ali se abraçaram, acho eu, que para ratificar o que ele acabara de dizer.

Durante a semana tivemos muitos momentos de descontração. Bom demais o contato com aquelas mulheres! Na hora do cafezinho tinha sempre uma me fazendo confidências, me perguntando coisas sobre vida, relacionamento, educação de filhos. Muitas delas com muito mais idade que eu, mas curiosas como adolescentes descobrindo a vida. Voltei para casa cheia de presentes e com o coração transbordando de alegria pelo presente do convívio.

Lembrei dessa história porque, dia desses, encontrei Marta, a do arrepio, num evento, e depois do reconhecimento e do abraço de reencontro perguntei, maliciosa:

- E aí, Marta? Continua se tocando e se arrepiando? E ela, numa gargalhada:
- E apois!!!!



* Maceió, 27 de novembro, dia Nacional do Combate ao Câncer

Da série: VIDA DE PROFESSORA