sábado, 8 de maio de 2010

Das coisas que não se esquecem - Cineas Santos

De O beijo



Se você ainda não leu o conto Viagem aos seios de Duília, de Aníbal Machado, leia-o: é a mais patética, digo, a mais humana de todas as narrativas que já li. Para não lhe furtar o prazer da leitura, direi apenas que é a história de um cidadão, José Maria que, adolescente, num dia de festa religiosa, teve a felicidade ou a desdita de ver os seios de uma bela jovem, Duília, num povoado (Pouso Triste) perdido nos cafundós de Minas. A cena durou apenas uma fração de segundo, tempo suficiente para marcar-lhe a existência. Uns 40 anos depois, José Maria, aposentado, resolve voltar ao local da mágica visão, na vã tentativa de reencontrar Duília...

Por que me lembrei desse conto agora? Honestamente, não sei. Sei apenas que, ao acordar na manhã de ontem, lembrei-me de Evanilde, uma menina baiana que parecia feita de porcelana e sonho. Parafraseando o poeta, quando olhada de face, era uma boneca de louça; quanto vista de perfil, a haste de um lírio, prestes a partir-se. Tudo nela reclamava cuidados especiais. Era muito branca, dissimulada e gaga. Falava aos trancos. Às vezes, na tentativa de pronunciar uma palavra, fechava os olhos como se o gesto pudesse livrá-la da gaguice. Aos olhos do menino, era encantadora. Seu passatempo preferido era provocar-me. Sagazmente, aproximava-se de mim, sem jamais me permitir tocá-la. Era um jogo de sedução sofisticado demais para uma garota tão jovem, de aparência angelical.

Uma noite, saímos para acompanhar o Reisado do Manuel Antônio, no bairro Aldeia. Éramos um bando de meninos e meninas do mesmo tope. Lá pelas tantas, ela afastou-se das meninas e, sorrateiramente, aproximou-se de mim. Como peças imantadas, nossas mãos se atraíram e entrelaçaram-se. A cena deve ter durado apenas alguns segundos, mas me fez acreditar na existência de um paraíso terreno... Naquela noite, sepultei de vez o sonho de dona Purcina de me fazer padre. No dia seguinte, ela se comportou como se nada tivesse acontecido, o que me deixou profundamente magoado. Aquele jogo pendular que lhe dava tanto prazer me exasperava.

O tempo e os contratempos nos separaram. Poucos dias depois, numa manhã de sábado, com a leveza de um felino, ela veio até mim e, sem aviso prévio, beijou-me o rosto. Aparvalhado, nem percebi que aquele beijo inusitado se fazia acompanhar um doloroso ADEUS. Como naquela canção do Chico, “agora eu era um louco a perguntar/ o que é que a vida vai fazer de mim?”. Nunca mais a vi. Se bem me lembro, foi a primeira vez que morri de amor. Mas o tempo tudo cura. Com Quintana, aprendi que é tão bom morrer de amor e continuar respirando...

quinta-feira, 6 de maio de 2010

SOBRE A ORIGEM DO NOME PAPAGAIO VINTÉM

Ou: Um Conto de Especulação

NA - O conto abaixo em nada tem a ver com a choparia paulista, mas com um restaurante no pé da Ladeira de Bidô, no arraial do Junco, com esse nome.


De Papagaio


Na Ladeira de Bidô havia uma forja e um ferreiro. Havia também muitas crianças brincando de patinete e um papagaio muito falador. O ferro na bigorna e o martelo a cantar: “téin! téin! téin!”, em extremo gozo tirano do vencedor sobre o vencido, o escárnio do forte sobre o fraco, o supremo júbilo da subjugação do aço aos seus caprichos.

– Téin, téin, téin! – repetia o papagaio, que não mais dizia “hu! tabaréu!”, desorientado que estava com tanto martelar. Era um desassossego só, mal o sol raiava e o martelo cantava em estridência ritmada, acordando o povo para mais um dia de labuta, nas roças, ou nas repartições públicas, que nessa época, se resumiam a apenas duas. Acordava também o papagaio, para mais uma lição musical.

“Téin, téin, téin”, era a canção mais ouvida, cobrindo um raio de dois quilômetros, silenciando apenas quando o ferreiro Bidô parava para tomar uma caneca de café ou então para ralhar com o seu neto Renan, que gostava de jogar pedra nos meninos. O papagaio, por puro instinto de papagaio, rompia o curto descanso do martelo em metálicos e melódicos chalreios: “téin, téin, téin”.

Por causa disso, o povo passou a chamar o louro de “papagaio Téin” e ele ficou muito famoso e atraiu muitas crianças que queriam ouvi-lo cantar “téin, téin, téin”, nos intervalos em que o ferreiro Bidô usava para ralhar com o seu neto Renan ou para tomar uma caneca de café, conforme foi dito acima.

Um dia, o papagaio Téin se cansou da melodia, se abusou da gritaria da molecada e do martelo que só sabia uma música e resolveu procurar outras plagas, onde houvesse diversidade musical e os meninos fossem mais educados e menos barulhentos. Aproveitando uma noite de lua cheia, em que o povo se encontrava sentado na calçada da igreja fazendo serenata, o papagaio Téin arrumou as malas e partiu, sem deixar nenhum bilhete de despedida nem rastro de sua fuga. No outro dia, mais ou menos no horário em que o ferreiro Bidô ralhava com Renan, o povo se preparou para ouvir o papagaio e... nada. “Que é de Téin?”, perguntava-se aflito o povo. “Será que foi comido pelos gatos?”, especulava-se. Desencadeou-se então uma verdadeira onda de vingança pela cidade, sendo colocada a prêmio a cabeça dos gatos, não ficando nenhum felino vadio para contar a história. As crianças choravam a rodo. As aulas foram suspensas e o ferreiro Bidô deu uma surra no neto Renan, desconfiado de que o mesmo estivesse por trás do sumiço do papagaio. A oposição colocou a culpa no prefeito que, para mostrar serviço, decretou luto oficial de três dias e enviou projeto à câmara de vereadores dando o nome do papagaio a uma rua que ia ser inaugurada.

Os anos se passaram e quando o povo começava a se conformar com o sumiço do papagaio, eis que, no meio de uma missa, um garoto irrompe igreja adentro, gritando feito um alucinado, interrompendo o sermão do padre:

– Eu vi Téin! Eu vi Téin! O papagaio! Vi Téin na televisão! Ele tá cantando numa banda de pagode! O papagaio! Vi Téin!

terça-feira, 4 de maio de 2010

Até qualquer dia, amigo - Edna Lopes



A arte de viver

É simplesmente a arte de conviver...

Simplesmente, disse eu?

Mas como é difícil!

Mário Quintana

Durante quase toda esta semana, estive fora de casa e não sei se por cansaço ou mesmo por impaciência, foi uma semana de insônia, de inquietação. Estar fora de minha vida por vezes me põe irritada, desassossegada.

Acordei no meio de uma dessas madrugadas sobressaltada. No meu sonho, meu filho chorava e eu não conseguia consolá-lo. Passei uma manhã terrível, angustiada.Tentei controlar minha ansiedade pois se algo de ruim houvesse acontecido a ele, já teriam me ligado. Esperei o horário de almoço para ligar e ouvir a voz de meu filho.

No telefone, aliviada em saber que ele estava em casa e bem, ouvi de meu companheiro a notícia da morte de um amigo muito querido. Desabei, pois por mais que entendamos que esse é o movimento da vida, a partida de pessoas caras sempre nos causa tristeza, nos emociona.

Esse amigo tinha um coração proporcional ao seu um metro e noventa. Quando tive Vinícius estava concluindo uma das especializações e ele aceitou ser meu orientador mesmo não sendo o tema de minha monografia seu campo de estudo. Aceitou para me facilitar a vida, já que estava amamentando, de licença maternidade e não me agradava sair muito de casa, ir á Universidade para acertar outro/a orientador/a.

Todos nós tínhamos um carinho muito especial por ele, por sua alma leve e boemia, por seu jeitão de menino grande, sempre pronto para uma boa conversa, uma farra. Dia desses meu filho e eu estávamos relembrando de algumas brincadeiras entre eles: pegava a cabeça de Vinícius entre suas mãos enormes e suspendia até o teto. Vini morria de rir e pedia sempre mais. Outra brincadeira era dependurar-se no pescoço dele e entrar no mar bravo, para mergulhar, pegar onda... Vini segurava-se em seus cabelos a La Sidney Magal e se divertia muito.

Uma saudade imensa em todos nós, seus amigos e amigas. Claudio Canuto, o nosso Magal foi um exemplo de doçura e gentileza e certamente estará sempre nas boas lembranças de nossa família, em nossos corações.

Da despedida, uma certeza: viver é um milagre, amar uma benção, ter amigos um privilégio. Agradeço a Deus cada minuto que me é dado o merecimento de poder usufruir da presença de seres tão especiais em minha vida, que me fazem aprender tanto, exercitar os sentimentos da paciência, da solidariedade, do convívio fraterno. Agradeço a quem me oportuniza ser mais gente a cada novo dia.

Até qualquer dia, amigo. Certeza que ainda a gente vai se encontrar...




segunda-feira, 3 de maio de 2010

A Manha do Barão - Luís Pimentel

De Aparício Torelli



O Barão de Itararé – o jornalista, humorista, frasista, poeta, político e sacana inveterado, que um dia autoproclamou-se herói de um batalha inexistente, “pelos relevantes serviços prestados no front” – nasceu em 1895, em São Leopoldo (RS), e foi batizado com o pomposo nome de Fernando Aparício Brinkerhoff Torelly. Era filho de uma índia charrua que sentiu as contrações durante uma viagem de carroça pelo interior do estado.

“De repente, a carroça quebrou e eu resolvi botar a cabeça para fora pra ver o que estava acontecendo.”

Foi sua primeira gracinha. Fez alguns períodos na Faculdade de Medicina e, depois de publicar alguns poemas cínicos e satíricos nos jornais e revistas de Porto Alegre, reunindo-os em seguida no livro Pontas de Cigarro, arrumou as malas e se mandou para o Rio de Janeiro, onde desembarcou aos 21 anos de idade e com o endereço do jornal O Globo no bolso. Procurou o diretor, Irineu Marinho, e avisou que era o profissional que o jornal estava precisando.

– O que o senhor sabe fazer? – perguntou Irineu.
– Tudo. Desde varrer a redação até dirigir o jornal. Mesmo porque, não há muita
diferença entre uma atividade e outra.

Em 1926 o inquieto humorista lançou seu próprio jornal semanal, A Manha, pequena sacanagem em cima do matutino A Manhã. A redação ficava na Rua 13 de Maio, onde tempos depois de prisões e pescoções, o Barão de Itararé afixou uma placa destinada aos policiais que freqüentemente visitavam a redação e seu responsável:

ENTRE SEM BATER!

Não adiantou. Entraram, bateram muito e ainda carregaram o Barão para o presídio da Ilha Grande, onde puxou um ano e meio de cadeia. Lá conheceu Graciliano Ramos, vindo a tornar-se depois personagem do antológico Memórias do Cárcere.

A Manha resistiu com vida até o começo da década de 1930. O Barão, que depois assinou colaborações em vários jornais, resistiu até 1971. Foi um dos maiores.

Nota do blog:

Luís Pimentel é jornalista e escritor e, a partir de hoje, é o mais novo colaborador do blog. Ministrou oficinas de contos na Estação das Letras, no Armazém Digital, no Centro Cultural da Light e em feiras de literatura. É autor de mais de 20 livros, entre eles os volumes de contos Um cometa cravado em tua coxa (Record) e Grande homem mais ou menos (Bertrand Brasil), vencedor do Prêmio Nacional Cruz e Souza.

domingo, 2 de maio de 2010

Quase Candango - Cineas Santos



De Brasília



Em mais de uma oportunidade, afirmei: seu Liberato não tocava viola, não fazia versos, não contava vantagens. Era um sertanejo morigerado, com vocação para pedra. Só grudado ao chão da caatinga, sentia-se em casa. Perfeitamente integrado ao seu habitat, não estendia suas aspirações além dos limites de suas roças. Ao longo da vida, empreendeu apenas três viagens. Em nenhuma delas fez boa colheita. Acontece que, em 1958, as chuvas se negaram a cair no sertão do Caracol. Levas e levas de catingueiros deixavam para trás roças, mulheres e filhos e rumavam para o imenso canteiro de obras no Planalto Central onde um presidente visionário pretendia plantar a capital do País. Magoado com a sovinice dos céus, seu Liberato, aos 55 anos de idade, encarapitado num pau-de-arara, foi tentar a sorte naqueles ermos onde sobrava trabalho e faltavam mulheres.

Dona Purcina, com sua alma cigana, vislumbrou naquele gesto desesperado do marido a possibilidade de levar os filhos para uma terra onde “corria dinheiro e tinha escola”. Para aquela camponesa semi-analfabeta, educar os filhos não era apenas aspiração; era obsessão. Enquanto seu Liberato cavava valas na terra vermelha do cerrado, dona Purcina urdia planos. Pensou tudo: abriria uma pensão familiar para fornecer boia aos candangos, construiria uma casinha para a família, o mais próximo possível de uma escola. O mais viria com o tempo.

O que ela não poderia imaginar é que o velho Liba, embora estivesse fisicamente no Planalto, seu espírito catingueiro jamais se ausentou do Campo Formoso, sua gleba, seu reino, seu mundo. Assim, o exílio doloroso durou pouco mais de oito meses. Ao saber que chovia no Piauí, juntou seus teréns e voltou correndo para o sertão. Por pouco, por muito pouco, dona Purcina não o expulsou de casa. Morria ali o sonho de construir “um futuro melhor” para os filhos. À época, eu não fazia a menor ideia do que fosse morar numa cidade grande. Na verdade, aquela aventura não me tentava. A exemplo do meu pai, eu começava a fincar raízes fundas na terra árida do sertão. Tenho (como meu velho) uma indeclinável vocação para pedra.

Plantada por mãos calejadas e regada com o suor dos candangos, Brasília nasceu acanhada. Mas, com o adubo do dinheiro e o fascínio do poder, cresceu rapidamente. Em pouco tempo, tornou-se uma espécie de Las Vegas do cerrado. Para lá migraram arrivistas, falsários e apostadores de todas as procedências. Gente que só aposta com o dinheiro alheio e nunca perde.

Brasília, “ninho de tédios” e de escândalos, faz 50 anos de existência e tem pouco a comemorar. De minha parte, não me canso de agradecer a seu Liberato por ter voltado para o sertão do Caracol. Como o canto das sereias, o poder vicia, inebria e alucina...