sexta-feira, 28 de maio de 2010

“DEIXA A VIDA ME LEVAR”

De deixa a vida me levar



Não é fácil viver a vida tal qual a projetamos. Zeca Pagodinho, depois de variar de marca de cerveja, que lhe valeu uns cifrões a mais, usa como lema o “deixa a vida me levar”, porém, na prática, levar a vida na boa maré não é tão simples como se reunir numa rodada de pagode nas manhãs de domingo, regada a cerveja e feijoada à carioca, sendo servida por mulatas bem fornidas de coxas e de bundas. Os percalços são muitos e variados, sem se falar naqueles que nos surpreendem de supetão e que nos deixam atônitos, em completo ataranto e rodando feito barata tonta.

Viver a vida em toda sua plenitude talvez seja uma obra-prima que ainda não foi pintada ou escrita, haja vista ser uma condição não pertinente à vontade humana, perdida no desenredo de nossos anseios e contradições, sujeita às influências das nossas marés de março e das ressacas interiores que transbordam em calamidades devastadoras da nossa vontade. Sei que os poetas navegantes acharão o contraditório e, em bonitas palavras recheadas de rimas ricas, discorrerão sobre o achado em versos melosos e melódicos que deixarão seus leitores embalados pela quimera de ser o amanhã um porvir risonho, e que o Destino de cada um caberá a ele próprio pegar em suas mãos e traçar seu rumo, independente dos transtornos que entram em rota de colisão com os seus planos astrais.

Há mais dificuldades entre nosso itinerário terrestre e as estrelas do que sonha a nossa filosofia. Seria bom, se não ótimo, se pudéssemos acordar numa manhã tumultuada por raios e trovões e disséssemos que o nosso dia seria maravilhoso e que assim o fosse. Os problemas começam cedo, desde o momento que se coloca os pés no chão e não se acha o chinelo. Depois o gás que acaba, a empregada que não aparece e nem dar satisfação, o filho que fica enrolando para não ir à escola, a sogra que liga para dizer que vai passar o dia em sua casa, o trânsito congestionado, a chegada atrasada ao trabalho e a bronca do chefe, a traição de um amigo, a sacanagem de um colega, as fofocas cotidianas, as férias que você pede para descansar, viajar, relaxar e depois descobre que o dinheiro só deu para pagar a fatura do cartão de crédito e que, nas férias, você se cansa mais do que quando está trabalhando.

Seria bom se pudéssemos viver a vida como gostaríamos de viver, sem os encostos, atrapalhações e desvios do caminho previamente traçados. Deixar a vida nos levar é pura impessoalidade impossível de acontecer, pois somos movidos a sentimentos sujeitos às intempéries que deságuam em nossa vida desde quando abrimos os olhos em uma manhã de Primavera e sentimos o cheiro da angústia e do desfavor nos envolver em um terno abraço e a nossa boca sentir o gosto amargo de fel, expelido pela nossa incapacidade humana de cuspir para longe nossos augúrios e vaticínios.

Portanto, viver a vida do jeito que ela é, é entrar numa nau sem rumo e viver alheio ao mundo, virar um eremita e perder o contato com o que existe de mais belo e fascinante na existência humana: a sociabilidade e o caráter fraterno que temos em nos deixar seduzir pelos problemas alheios e da capacidade que criamos para driblar nossas angústias e medos e ficarmos o mais próximo possível de viver a vida do jeito que planejamos e queremos.

Tá rebocado, piripicado!

segunda-feira, 24 de maio de 2010

A primavera baixou no meu buteco - Luís Pimentel

De Boteco Perfeito



Foi durante uma das famosas reuniões de amigos no Buteco do Jisus, em Botafogo, um bar que não existe mais e que ficava no Rio de Janeiro Sem Bala Perdida – uma cidade que também já não existe. Lá para as tantas, o papo desandou para o lado das quatro estações. Pedro Garganta, um dos mais falantes e quase nunca convincente, fez a introdução, no bom sentido:

– A mim agrada, por demais (sacaram o estilo?!), o clima outonal. O frescor das folhas, o sol ameno, os dias são mais radiantes.

Rocha, conhecido nas mesas e arredores como “O Cacique da Bambina”, completou:

– A cerveja fica mais gelada. As mulheres são mais cheirosas e mais macias.

Foi solicitada a opinião de uma representante do grupo feminino:

– Prefiro o verão – disse Nina, uma morena que encostou na mesa um dia para pedir fósforos e nunca mais abandonou a turma.
– Aumenta o calor na formosinha, né, preta? – bombardeou o intrépido Yonzinho Cantareira, que todas as noites atravessava a Baía de Guanabara para beber em Botafogo, e arrastava uma asa caída para o lado da amiga.

Gargalhadas. Beijinho de reencontro nos copos. Mordidinhas na moela. Bilau Baixinho, que pecava pelo apelido e hoje seria chamado de “verticalmente prejudicado”, retomou o fio da meada:

– Sou mais o inverno. Ventinho frio, roupinhas quentes, a gente aproveita para dormir abraçadinhos.
– Dorme abraçadinho quem tem mulher em casa, ou na casa dos outros, ou mesmo na zona – completou um que estava meio calado.
– Também encontro vantagens na estação do frio – pontificou Pedro Garganta. O inverno tenciona os músculos e enrijece os doces lábios.
Nina engasgou com uma rodela de salaminho. Yonzinho partiu em socorro:
– Mastiga devagar, boneca. O salame é um tira-gosto roliço e traiçoeiro.
Era assim que a banda tocava. Havia poesia em tudo.
Rocha da Bambina interrompeu a conversa, levantando-se de braços abertos:
– Oi! Chega até aqui! – gritou, na direção de uma linda mulher que se aproximava. Olharam todos, ao mesmo tempo. Aquela emoção:
– Oh!!! – gemeram todos. Nina, inclusive.
– Vem cá, prima. Vem conhecer os meus amigos – disse Rocha, sorridente.
– Prazer, pessoal – falou a moça.

O primo puxou a cadeira para a visitante:

– Pessoal, esta aqui é minha prima Vera.

Primavera! Era a estação que estava faltando. Garganta deu a volta em torno da mesa e se aproximou, derretido.

– Conheço você, não sei de onde.
– Conhece Juiz de Fora? Sou de lá.
– Claro – disse Pedro, os braços de polvo varrendo copos e os ombros da moça. – Vou a Juiz de Fora pelo menos uma vez por mês. Fico no Plazza. Você mora onde lá?
– Moro na pensão de Dona Fulô.

O clima pesou um pouco. Nina evitou o salaminho. Mas Garganta não perdeu a viagem:

– Sou representante de uma empresa de tubos e conexões, por isto viajo muito. E você, Vera, mexe com o quê?

O humor presente em carne e osso, muito mais carne do que osso. Vera não perdia a timidez nem a inocência primaveril:

– Mexo com os quadris.

Resolveram falar das últimas cachorradas políticas. Bobagem ficar perdendo tempo com as estações do ano.

domingo, 23 de maio de 2010

Das Coisas Que Não se Esquecem - 3 - Cineas Santos

De Teje preso



1969. A pretexto de combater os terroristas, a ditadura recrudescia. Prisões, mortes, desaparecimentos. A censura, como o big brother (o do Orwel), adivinhava até os pensamentos mais recônditos. Ásperos tempos. Justo naquele momento, resolvi criar um grupo de teatro: Teatro Popular do Piauí. Na verdade, uma trupe mambembe sem maior experiência e sem qualquer veleidade profissional. Integravam-na: Lázaro, Moacir, Chico Viana, Sólis, Terezinha e um garoto, cujo nome já não me lembro. Cada um de nós tinha de se desdobrar para fazer quase tudo. As funções se misturavam. Por falta de textos disponíveis, eu e Chico Viana engendramos uma peça – “Uma noite entre miseráveis” – pastiche ordinário de “Dois perdidos numa noite suja”, de Plínio Marcos, e “Morte e vida Severina”, de João Cabral. Por obra e graça do Espírito Santo, permitiram-nos ensaiar a peça no auditório do Colégio Diocesano, “território livre” da ingerência dos esbirros. Não havia cenário, iluminação, nada. Estávamos inaugurando, na Chapada, o teatro nu e cru.

Onde montar a peça? Em Teresina, nem pensar. Foi aí que Chico Viana e Moacir tiveram a ideia de levar a peça a Bacabal (MA), onde o prefeito era boa praça e o Moacir tinha uma namorada. Acertou-se o dia da apresentação, fizemos meia dúzia de ensaios e embarcamos num dos “expressos” da Líder. Lá pelas tantas, olhei para o Viana e perguntei: - E se, avisada pelo capitão Astrogildo, a PF estiver no esperando em Bacabal? O Viana sorriu e desconversou. Pura paranoia: a Polícia Federal não tomara conhecimento das nossas estripulias.

Chegamos a Bacabal e, numa deferência especial, o prefeito se dignou a nos receber em seu gabinete. Era um cidadão corpulento, alegre, bonachão, com um sorriso confiável. Ao lado dele, um homem cinzento com cara de quem já morreu e ainda não foi comunicado. De repente, adentra o gabinete um cidadão baixo, chapéu Panamá, trajando um conjunto cinza, com olhar de ave de rapina, o perfeito estereótipo do policial civil. Tirou o chapéu e, alto e bom som, declarou: - Peço licença a Vossa Excelência para, em nome da revolução prender este indivíduo! Disse isso sem apontar para o tal “indivíduo” que, por supuesto, como dizem los hermanos argentinos, só poderia ser eu. Por alguns segundos perdi a noção do tempo, minha respiração tornou-se pesada, a saliva, travosa e a visão embaçada. Naquele momento, descobri que o medo tem cheiro, gosto e cor. Foram segundos que duraram uma eternidade. Tão aparvalhado estava, que nem percebi que tudo não passava de uma brincadeira do coletor estadual com o vice-prefeito, o homem cinzento. Todos riram da patuscada, menos eu que, em estado deplorável, limitei-me a perguntar: - Por favor, onde fica o banheiro?

Naquela manhã, percebi que não tinha cujones para tornar-me um “subversivo”. À noite, apresentamos a peça, a plateia generosa nos aplaudiu, o prefeito nos deu trezentos cruzeiros e o Teatro Popular do Piauí desapareceu sem deixar saudades. Ufa!