sexta-feira, 30 de julho de 2010

A mãe, as professoras e os dias de um escritor - Antonio Torres

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", de Antonio Torres

De Aprendendo o ABC



O primeiro foi aquele em que sua mãe lhe mostrou um ABC, passando em seguida a dizer os nomes das letras. Jamais esqueceria o encantamento que o desenho delas lhe provocaram logo à primeira vista. Arrumadas em filas no abecedário, formavam um conjunto enigmático. Cada uma, porém, tinha sua própria identidade e personalidade, como as coisas e as pessoas. E eram elas que davam registro a tudo o que há na Terra e no céu, compreenderia depois, quando aquela senhora chamada Durvalice começou a juntá-las em sílabas - bê-a-bá, bê-e-bé... - e, nos dias seguintes, em vocábulos que passariam ao reino das frases. Ivo-viu-a-uva...

Aquele menino nunca tinha visto uma uva. Agora sabia que se tratava de uma fruta. Mas como é, mãe? Ela também não a conhecia. Seu mundo era o das jabuticabas, murtas, graviolas, muricis, cajás, umbus.

Quando foi para a escola, num mês de março, já sabia ler a cartilha, o que deixou a professora Serafina muito feliz. Então chegou o dia 7 de Setembro. Escolhido para recitar um poema patriótico em cima de um palanque, viu a praça antes empoeirada e deserta apinhar-se de gente. Pensou que ia cair, tal era a tremedeira nas pernas. Ainda assim, soltou a sua voz gasgita: "Auriverde pendão da minha terra/ que a brisa do Brasil beija e balança/ estandarte que a luz do sol encerra/ as divinas promessas da esperança."

O público reagiu com lágrimas, num emocionado preito a uma criança capaz de memorizar todas aquelas palavras bonitas. Dali por diante, se lhe perguntassem o que queria ser quando crescesse, já tinha a resposta: Castro Alves.

Aí chegou outra professora. "Leve os meninos," disse-lhe dona Serafina. Triste notícia. Que graça teria uma escola sem meninas? A recém-chegada chamava-se Teresa, que trazia uma novidade: um livro para ser lido em voz alta, tão encardido e pobrezinho quanto aquele lugar de lavradores. Vinha a ser uma antologia de contos, crônicas e poesias. Para começar, ao personagem desta história coube um texto de José de Alencar, que nunca esqueceria: "Verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia na fronde da carnaúba." Imagine o efeito disso. Ele não fazia a menor idéia de como era o mar.

Também não tinha familiaridade com a chuva, o tema de uma redação, dificílimo, para quem vivia no polígono das secas. Asas à imaginação. Seu desempenho na escrita ganhou fama, levando-o a ser solicitado à realização de serviços mais desafiadores, por exemplo, as cartas dos apaixonados do lugar - e suas respostas. E as das chorosas mulheres dos migrantes. Estas eram de cortar o coração.

E assim iria se fazendo um escritor nascido na roça. As leituras o levaram a trocar a enxada pela caneta, com a qual viria a cavar o seu sustento, pela vida afora. E sempre a olhar as letras com o mesmo encanto com que as viu pela primeira vez.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Pobres meninos ricos... - Cineas Santos




De Futebol de várzea


O moleque ainda se encontra no “ventre das expectativas” e já é observado por olhos rapaces. São os “olheiros” profissionais, gente com faro para descobrir o que pode render bons dividendos. Como não dispõem de capital, trabalham para ex-jogadores de futebol, cartolas, especuladores de todos os naipes. Perambulam pelos subúrbios à caça de garotos com alguma habilidade. Quando descobrem algum, correm para entregá-lo a quem o contratou. A partir daí, o passe ( leia-se a posse) do futuro craque é fatiada entre os que se dispuserem a investir nele. Inicia-se, então, a trama para encontrar um grande clube disposto a contratá-lo. Assinado o primeiro contrato, cada um recebe o que lhe cabe e o garoto vai suar a camisa. Se, porventura, tiver talento e sorte, pode marcar ou defender um gol decisivo. Aí, como num passe de mágica, passa de “promessa” a “revelação”. Sai do anonimato para as páginas dos grandes jornais, com direito a elogios e afagos. No dia seguinte, aparecem o pai (até então, desconhecido), os parentes, os aderentes, os amigos de infância, e as indefectíveis marias-chuteiras. Esse caldo de cultura costuma ser letal. Adiante-se que o garoto-revelação, há bastante tempo, vem adubando seus sonhos de consumo: carrões, joias e louras... Assim, antes de reformar o barraco da mãe, passa a circular, sempre “bem” acompanhado, por lugares badalados.

Antes que um dos meus três leitores esbraveje, adianto: o que acabei de afirmar aqui é uma caricatura grotesca, mas com gotículas de verdade. A pergunta cabível é a seguinte: o que os grandes clubes de futebol estão fazendo para melhorar o nível intelectual dessa molecada pobre, semianalfabeta, que só possui alguma habilidade com os pés? As empresas da construção civil, por exemplo, já se deram conta de que operários instruídos acidentam-se menos e rendem muito mais. Estão investindo na alfabetização dos trabalhadores. Por que os clubes de futebol não fazem o mesmo? Por que, durante o tempo que passam concentrados, os jogadores não recebem aulas de português, de inglês, de ética, de educação sexual, de cidadania? Certa feita, Rachel de Queirós afirmou: “Vida de craque não são rosas”. Tinha razão: jogador profissional passa 80% do tempo concentrado, treinando,viajando ou jogando. O tempinho livre que lhe sobra é dedicado à esbórnia, que ninguém é de ferro.

Alguns, antes da maioridade, são “exportados” para os milionários clubes europeus. No ato da transação, um desses moleques pode embolsar, de uma vez, o que um professor-doutor não ganhará ao longo de toda a vida útil. O que fazer com tanto dinheiro e nenhuma informação? Comprar carrões, piercings de diamantes, correntes de ouro e louras, um harém de louras... Com raras exceções, o desempenho dessas estrelas, em campo, decresce na mesma proporção em que se lhes aumentam os salários. Como conciliar uma carreira que exige disciplina espartana com as tentações do mundo?

Quando “pisam na bola” ( e como pisam!), a mesma imprensa que os diviniza, sataniza-os sem a menor piedade. Num átimo, passam de heróis a vilões e acabam nas páginas policiais. Pensando bem, até por piedade, o país deveria importar-se um pouco mais com o destino desses pobres meninos ricos

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Polícia! Pra que Polícia? - Ronaldo Torres

De Procura-se Polícia



Se gritarem “pega ladrão!” corra para o lado oposto, porque o meliante nunca age sozinho ou de cara limpa. E, no arraial do Junco, Polícia virou vocábulo em desuso.

A delegacia de lá é como “A Casa”, de Vinícius de Moraes: “Era uma casa muito engraçada / não tinha teto, não tinha nada”. Presos não há nela não porque lhe falta um escrivão. Se houvesse segurança institucional conforme manda a Constituição Brasileira, havia superlotação na cadeia, de tantos velhacos e amigos do alheio que pululam na cidade. Sem se falar nos latrocidas de plantão no matagal à espreita do incauto velhinho e seu salário da aposentadoria.

Se faltou craque na seleção de Dunga, no arraial do Junco o crack abunda de tal maneira que uma boa parcela da população já anda de boca torta. Sem polícia para interromper o fumacê, a turma fuma seu cachimbinho na santa paz de Jah. O problema é na hora do acerto de contas com o traficante. Sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes, a solução é enveredar pelo mundo do crime. Quem quiser que cuide em colocar tranca reforçada nas portas ou contratar vigilância particular.

Esse cuidado não teve o cidadão que abriu uma loja de revenda de aparelho celular, pensando em tirar proveito da novidade: uma torre da operadora TIM, que fora obrigada pela Anatel a ligar a caatinga ao restante do mundo. Até que ele teria feito seu pé de meia sem maiores delongas se o ladrão não tivesse descoberto a fragilidade da segurança da loja e a inoperosidade da polícia. Arrombou a porta e fez o rapa, sem deixar um aparelho de remédio, como diria a minha avó.

Mas houve um tempo que existia lei no arraial do Junco. Eu era menino, mas me lembro da noite que o delegado teve o prazer de inaugurar a cela e a palmatória da cadeia, que, aliás, não era nem cadeia nos padrões normais, mas uma casa alugada pela Prefeitura, cujos quartos serviam de abrigo aos meliantes. Era um garoto o tal do ladrão, quase da minha idade, que fora flagrado roubando umas miudezas na feira. O delegado, um cidadão comum da cidade investido do cargo, convocou a população para dar testemunho do seu método científico em fazer o ladrão de galinhas cantar. Como havia muita gente e não cabia na casa, ele colocou o malfeitor na calçada, pegou a palmatória e deu tantos bolos no ladrão que, se vivo ainda for, deve chorar toda vez que se lembra desse episódio. No dia seguinte o agente da Lei abriu a porta da cadeia e o soltou, com a recomendação expressa de nunca mais aparecer por lá.

O meu avô materno também foi um homem da Lei, nomeado por um político de alta patente. Não exibia uma estrela de xerife à moda do Velho Oeste, mas sentia orgulho como tal. Como os fora-da-lei passavam ao largo da cidade e ele ia torrar seu mandato sem nenhuma ocorrência policial de relevância reconhecida, resolveu então prender um petroleiro que passava no carro da Petrobrás e, ao avistá-lo montado em seu alazão, buzinou em saudação. O cavalo se assustou, empinou e jogou o cavaleiro ao chão. Ato contínuo, levantou-se, sacudiu a poeira, montou no cavalo e se dirigiu ao acampamento da Petrobrás, onde deu voz de prisão ao infeliz. O motorista delinquente passou três dias na cadeia e só foi solto depois que o cabo de turma garantiu que ele seria transferido.

Nos anos oitenta havia um delegado e um destacamento da Polícia Militar na cidade. Dava para o gasto se o Banco do Brasil não tivesse inaugurado a sucursal do Inferno em pleno sertão: hora e outra era assaltado sem a menor desfaçatez dos assaltantes, pois coincidia da polícia e do delegado estarem em diligência noutras paragens. Mas um aprendiz de ladrão de cavalos não teve a mesma sorte. Roubou um cavalo no pasto e foi para a cidade fazer negócio, se imaginando o rei do crime insolúvel. Era dia de feira e não seria difícil passar o animal adiante. Ao primeiro que ofereceu, recebeu voz de prisão: era o delegado e, por azar, o dono do cavalo.

Por exigência constitucional, delegados, agora, só de carreira. E nomeados por concurso. É que muitos xerifes, à moda do Oeste americano, se rendiam facilmente ao poder local, normalmente se agregando ao prefeito que era, na verdade, o responsável por sua nomeação. Como o acontecido no arraial do Junco. A cidade festejava mais um ano de emancipação política quando um arruaceiro foi preso. Correram ao prefeito pedindo soltura, pois era filho de um cabo eleitoral importante. O prefeito, de cima do trio elétrico onde vendia simpatia, tomou o microfone do cantor e mandou a polícia soltar o rapaz. Os agredidos se sentiram mais agredidos ainda e subiram no trio. Eram muitos. O prefeito voltou atrás e mandou a polícia levar o desordeiro pro xilindró. Outros amigos do preso intercederam. Era só um mal entendido. O prefeito mandou soltar. E nesse vai e vem, um soldado subiu no trio, pegou o microfone, e implorou:

– Seu prefeito, resolva logo: é pra prender ou pra soltar?

Hoje, infelizmente, é para se prender os autores de outros tipos de delitos, mais perniciosos e até crimes de morte. Mas... cadê a Polícia?

Ah! O prefeito?! Vai bem, obrigado.