sábado, 9 de outubro de 2010

Por final, dancemos tango

De Tango

POR FINAL, DANCEMOS TANGO


Dona Maria lava a roupa todo dia. Além da rima, é uma agonia. Não foi ela a musa de Luiz Melodia, pois dispensa a quebrada da soleira. Arranja-se no fundo do quintal, entre a sombra preguiçosa da goiabeira, onde está a lavanderia de cimento, e a cozinha, onde uma vitrola em cima da mesa cantarola em hispano. Faz dueto, desafinado e incompreensível. A Língua de Cervantes não era o seu forte.

– Tango!
– Não. Júlio Iglesias – responde contrariada com a brusca interrupção.
– Tango!
– Não. Júlio Iglesias, já disse! (êta argentino burro! Além de gago, burro!) – concluiu em seus pensamentos.
– Tan golpeando la puerta! – gritou o argentino, fazendo um esforço incomum para se comunicar sem tropeçar nas palavras.
– Ah! bão! Por que não disse logo?! - lembrou-se da gagueira do argentino – Deixa pra lá!

Enquanto se dirigia à porta, dona Maria fazia suas conjecturações. Existe coisa mais incompreensível do que conversa de argentino gago? Existe. Uma assembléia internacional de gagos. Em Buenos Ayres. Será que existe assembléia de gagos? Deve existir. Hoje há fóruns, palestras, simpósios, encontros de tudo o que é classe, categoria, clube, ong, partido político e o escambau. Quem não se lembra do recente encontro dos surdos-mudos no Planalto Central? Nem no panelaço reprimido pelo general Nini Mussolini, às vésperas da votação do Diretas-Já, se viu tanto barulho. Deu nos jornais que o Presidente da República, orador oficial desse evento dos filhos do silêncio, não ouvindo nenhuma vaia da platéia, se empolgou, fez um discurso inflamado e, no final, foi calorosamente aplaudido. De pé.

Finalmente, a porta. Do lado de fora, sua vizinha, Noélia, a fofoqueira do bairro. Sabia da vida de todo mudo. Língua mais ferina ainda estava para existir. Quando morresse o corpo iria numa caixa de fósforo e a língua numa carreta. Que queria?

– Maria, me empresta meia xícara de café!
– Você quer meia xícara cheia ou meia xícara vazia?
– Sabe que eu não tinha pensado nisso. Por via das dúvidas, me dê meia xícara cheia.

Há certas coisas que não podem ser meio nem meia. Uma xícara poderia conter a metade de açúcar, de sal ou de café, a depender da precisão do vizinho, que nunca diz “me dê”, mas “me empreste”, mesmo sabendo que jamais vai devolver. Mas como se admitir ser “meio” corno? Isso não existe. Vão dizer que foi coisa que botaram na cabeça, mal-entendido, fofoca da vizinhança e coisas que tais. Mas a verdade é única e simples: ninguém pode ser meio corno, do mesmo jeito que não pode ser meio bicha, meio tarado, meio morto de fome ou meio morto empanturrado. Ou estamos com fome, ou estamos saciados. 

Às vezes dizemos inverdades e cometemos injustiças quando afirmamos que “os políticos são meio desonestos”. Não. Não são. São desonestos por completo, porque essas coisas a gente é ou não é, não pode ser apenas a metade. É como se admitir que existe meio-virgem. 
Dona Maria é invocada com esse negócio de “meio”, “meia”, o numeral fracionário, a metade. É uma incongruência, um meio para a embromação, principalmente quando se diz que “fulano tá meio ruim”. Fulano tá lá, pé na cova, e ficam arranjando eufemismos.

Essa bronca de dona Maria não é de agora. Vem dos tempos de cabaré, quando dançava à meia-luz dos spots coloridos, embaçada de fumaça de cigarro, no compasso de ritmos eróticos. Era dançarina e faturava relativamente bem, sem ter que ralar a periquita para sobreviver. Trepava com alguns clientes, mas a ela cabia o direito de escolher com quem se acasalar. E cobrava alto.

Não entendia esse negócio de meia-luz. Se a luz está acesa, é claro; se está apagada, é escuro; se fica no meio-termo, é penumbra. Onde está a meia-luz? Por que não “meia-escuridão”?

Arranjou confusão por causa de Meio Quilo, o anão que fazia o serviço de quarto no puteiro. Não concordava com a cáften quando chamava o anão de “Meia Foda”. Não por preconizar o preconceito, mas por conter uma sentença falsa: não existe meia foda. Trepa-se por completo ou fica-se na saudade. A não ser quando se é pego de surpresa por um corno brabo e a retirada estratégica é obrigatória. Aí é interrupção de coito, o que não classifica como meio-coito. No mais, é paz e amor e pau nas coxas.

A partir dessas ponderações realísticas, o anão perdeu o famoso epíteto de Meia Foda e passou a ser chamado carinhosamente de Tamborete de Puta.

Foi com as reminiscências cabarenianas que dona Maria retornou para a sala, onde Noélia havia se aboletado. Em vez de meia xícara cheia de café, levava a xícara vazando pelo ladrão. Noélia agradeceu e, antes de sair por completo, virou-se e perguntou:

– Maria, como vai aquela sua meia-irmã?
– Meia-irmã?! Você já viu meio-pai? Você conhece meia-mãe? Aquele garoto amarelo que lhe chama de mãe por um acaso é um seu meio-filho da puta? Então vá pra meia-puta que te pariu!

Bateu a porta com força, sem esperar a réplica da vizinha. Deitou-se no sofá para esfriar a cabeça. Esse negócio de meio ou meia enchia a sua paciência.

Na cozinha, o toca CD injetou no laser outro CD. Mecanicamente Julio Iglesias cedeu lugar ao tango, das lembranças lascivas de dona Maria. Lentamente o ambiente foi preenchido pelo som voluptuoso e forte do bandoneón, acompanhado de Carlos Lombardi, com sua voz calorosa e firme, interpretando Donato e Lenz em apoteótica noite de cabaré argentino: A Media Luz.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O matador de aluguel - Luís Pimentel

De matador de aluguel



Caruá, para quem não conhece, fica em região incerta e não sabida no sertão nordestino. Avessa a badalações, divulgação ou febres turísticas, a população local me pede que jamais dê qualquer pista que identifique a cidade no mapa; até porque, Caruá não está no mapa.

Eis que notório homem de terras caruarenses resolveu eliminar um desafeto, com quem vivia às turras por conta de pendengas rurais. Contratou um matador de aluguel, que atendia pelo sugestivo nome de Trabuco, e encomendou o serviço. Com uma ressalva das mais curiosas:

– Não dê conversa pro Fulano, pois ele é muito camaradeiro. Monte a arapuca, faça o serviço e venha embora, pois se cair na besteira de prosear, você desiste de cumprir a tarefa. Leve metade do dinheiro, depois do trabalho feito venha buscar o restante.

O matador partiu e o fazendeiro foi acender uma vela pela alma do futuro defunto. Depois de aguardar o tempo regulamentar combinado neste tipo de empreitada – uma semana – pelo retorno de Trabuco, que viria trazer a prova do crime e receber a outra parte do pagamento, o fazendeiro resolveu dar uma incerta no local combinado para a tocaia, à procura de algum vestígio do serviço: o corpo, sinais de luta, um cartucho de espingarda, o que fosse.

Lembram do aviso? Não dê conversa pro Fulano, pois ele é muito camaradeiro? Não deu outra. Debaixo de um pé de umbu, curtindo a sombra em volta de uma garrafa de pinga, cigarrinho de palha entre os dedos, estavam o ex-quase-futuro morto e aquele que deveria mandá-lo desta para uma melhor. A prosa parecia das mais animadas, o camaradeiro entregue à sua atividade principal, o exercício da camaradagem, e o (im)provável matador às gargalhadas, embevecido com as histórias deliciosas que ouvia.

Ao ver o contratante, pasmo e incrédulo sobre o cavalo, o contratado pegou o maço recebido com adiantamento e o devolveu, com esta pérola:

– Tome o seu dinheiro de volta, coronel. Um homem alegre desse não se mata!