sábado, 4 de dezembro de 2010

Cineas Santos - Da importância do primeiro passo

É senso comum que qualquer jornada se inicia com o primeiro passo. Não poderia ser diferente. Para surpresa de todos, o conservador Bento XVI deu o primeiro passo rumo a uma caminhada que poderá salvar milhares de vidas: admitiu, ainda que em caráter excepcional, o uso da camisinha. Em entrevista concedida ao jornalista Peter Seewald, o Papa acenou, pela primeira vez, com a possibilidade de as prostitutas recorrerem aos preservativos para se protegerem do HIV. Para Michel Sidibe, diretor executivo da Unaids (agência da ONU para o combate à Aids), ”É um avanço significativo por parte do Vaticano. Esse movimento reconhece que um comportamento sexual responsável e o uso da camisinha desempenham um papel importante na prevenção do HIV” (Folha de São Paulo- 22/11/10). Católicos progressistas do mundo inteiro saudaram a declaração do pontífice como “uma vitória da razão e do bom senso”.

Bento XVI, como se sabe, em curto espaço de tempo, teve de enfrentar dois problemas muito sérios: a prática da pedofilia no seio da Santa Madre Igreja e a debandada de fiéis que, cansados da intolerância da Igreja, migram para religiões menos conservadoras. Ao condenar as pesquisas com célula-tronco, o divórcio, a união entre pessoas do mesmo sexo, principalmente, o uso de preservativos, a Igreja Católica parece trafegar na contramão de tudo. Exigir dos fiéis que, em pleno século XXI, encarem o sexo como “atividade (meramente) reprodutiva” é, no mínimo, um anacronismo.

Há quem afirme que “a novidade” de Bento XVI já chegou tarde. Em alguns países do continente africano, a Aids atingiu proporções epidêmicas. Estima-se que só na África do Sul existam 6 milhões de pessoas com HIV. É certo que não se pode responsabilizar apenas a Igreja Católica, com sua postura retrógada, pela disseminação dessa “praga contemporânea”. A pobreza e a ignorância têm peso muito maior.

Por oportuno, vale ressaltar que muito antes do nascimento da igreja de Cristo, egípcios, chineses e romanos já protegiam suas espadas com bainhas de tecido (linho), peles e tripas de carneiro. Esses avós dos preservativos modernos protegiam os combatentes das doenças sexualmente transmissíveis. Por acreditarem que tais enfermidades eram castigo da deusa Vênus, os romanos batizaram-nas com o nome de doenças venéreas.

Em 1564, o italiano Gabriel Fallopius produziu um preservativo de linho relativamente seguro e confortável. Por sua engenhosa invenção, ganhou os aplausos dos seus pares, mas foi condenado ao purgatório onde, até hoje, expia suas culpas por “incentivar a luxúria e a concupiscência”. Com seu gesto significativo, Bento XVI poderá salvar milhões de vidas em todo o mundo e propiciar um merecido descanso à sofrida alma do bravo Fallopius.

Assim seja!

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O EXORCISMO



De tanto ser tentando pelo vizinho, ex-companheiro de copo, da sinuca e da porrinha, capitulou. Iria à sessão de trezentos-e-não-sei-quantos pastores na quarta-feira para ver como é que era. Se gostasse, frequentaria; caso contrário, o vizinho que lhe perdoasse, mas continuaria a adorar o deus Baco.

No dia acertado, foi um dos primeiros a chegar para melhor sondar o ambiente. Apesar de ser, até então, um católico, apostólico, romano, nunca fora chegado à igreja, muito menos a templos evangélicos. Achava padres e pastores mercadores da alma e da fé dos incautos e por eles nutria uma tremenda ojeriza. Os pastores principalmente, pois, estes, faziam verdadeira lavagem cerebral no infeliz que chegava ao ponto de adorar o seu líder espiritual acima de qualquer coisa.

Nesse dia os trezentos-e-não-sei-quantos pastores iriam promover uma faxina em regra para tirar o Diabo do corpo dos possuídos, prova irrefutável de seus poderes e da fragilidade espiritual dos fiéis. Já havia muita gente no recinto e por isso demorou a achar um lugar onde tivesse ampla visão do púlpito e ao mesmo tempo pudesse ser visto pelo amigo.

Sessão iniciada, viu os pastores suar a camisa em exercício de invocação do Divino e ficou impressionado com as exigências que faziam de Jota Cristo, como se fossem seus superiores hierárquicos ou se Cristo lhes devesse obediência por qualquer outro motivo. E, de tanto exigirem providências, um demônio se manifestou no corpo de um sujeito magricela, que pulou agitado no meio do corredor, espumando, gritando palavras incompreensíveis e ameaçando agredir as pessoas próximas a ele. Uma legião de seguranças, saída do invisível, segurou o manifestado e o levou para o local onde se daria o exorcismo. Dez minutos depois o magricela se acalmou e voltou tranquilo para o seu lugar, sorrindo e pedindo desculpas àqueles ameaçados por ele.

Os trezentos-e-não-sei-quantos pastores continuaram a sessão do bota-fora de capetas, dizendo que fora captadas ondas extra-sensoriais dando conta de mais demônios no recinto e que todos deveriam orar com mais fé e aumentar o dízimo. Era o amor ao vil metal que tornava o homem escravo de Satanás. “Desfaçam-se do canal de atração do Capeta! Esvaziem o bolso!” e o povo obedecia, enchendo as sacolas de dinheiro. Gente que, mais tarde, não teria como comprar pão para os filhos. Mas Deus daria um jeito de matar a fome, garantiam os trezentos-e-não-sei-quantos enviados do Divino.

No meio do alvoroço formado pelo esvaziamento de bolso, o candidato a evangélico notou um cidadão ao seu lado em estado de transe. Nada demais se o dito cujo não tivesse para mais de dois metros de altura por outro tanto de largura. A Bíblia, aberta, repousava sem a menor dificuldade na palma da mão do mastodonte, de tão grande que era. Lembrou-se do estrago que o magricela promoveu e temeu pela sua integridade física caso os tremores no corpo daquele cidadão fosse, de fato, o Capeta se manifestando. Dava sinais de alucinado. Haveria seguranças suficientes para dominá-lo? Não quereria o Capeta se aproveitar daquelas mãos gigantes para esgoelar uns quatro a cinco ali ao seu lado? Quem seria a primeira vítima senão ele, um descrente de tudo? Olhou ao redor em busca de outro lugar onde pudesse ficar e não viu nenhum. O templo estava lotado e ele mal podia se mexer. As pessoas oravam cada vez mais alto, respondendo ao comando dos pastores. Só havia uma saída: vigiar os movimentos do cidadão atentamente, à espera de algum gesto violento. O Inimigo é traiçoeiro e ele não iria abrir a guarda, apesar do aparente estado de pânico.

O cidadão pronunciava palavras desconexas, aumentando de volume todas as vezes que os trezentos-e-não-sei-quantos pastores exigiam de Jota Cristo que expulsasse os demônios presentes no corpo de alguns. Começou um autoflagelo, usando a Bíblia como chicote e não mais palavras se ouviam, mas grunhidos e estremecimento corporal, como se fosse ter um ataque de epilepsia a qualquer instante.

“Por que fui me deixar convencer por aquele sacrista, filho duma figa!?” pensou apavorado o ex-futuro evangélico, sem conseguir tirar os olhos das mãos do Possuído, que, àquela altura, pareciam mãos gigantescas. Sentiu um líquido quente escorrer pelas suas trêmulas pernas e os dentes começaram a ranger. O povo todo parecia uma multidão de alucinados e se imaginou sendo trucidado pelo “guarda-roupa” ao lado. Não. Não se deixaria abater por um endemoniado qualquer. Reagiria, lutaria e talvez desse tempo dos seguranças chegar.

Quando os enxota-diabos tornaram fortes seus apelos exorcísticos, o rebanho entrou em histeria coletiva. O possesso parrudo teve um forte estremecimento, largou a Bíblia no chão, levou as mãos à cabeça e, com cara de poucos amigos, virou-se para o lado do aterrorizado estreante na irmandade evangélica, que, sem encontrar um corredor de fuga, deu um salto felino sobre o banco traseiro, depois para o outro, pisando nas pessoas, e assim sucessivamente, até alcançar a saída do templo e sair em desembalada carreira rua afora, perseguido por uma multidão incentivada por trezentos-e-não-sei-quantos pastores incitantes:

– Peguem ele! Não o deixem fugir! Ele está possuído de Lúcifer, o rei dos capetas! Agarrem o possuído!

domingo, 28 de novembro de 2010

Cineas Santos - Lobato, intolerância e burrice

Monteiro Lobato (1882- 1948) foi um brasileiro atípico, ou seja, alguém que, movido por incontido entusiasmo, acreditava no Brasil, apostava no Brasil e, consequentemente, sofria com e pelo Brasil. Evidentemente, não foi o único. Na galeria dos que padeceram dessa mesma “enfermidade”, figuram: Mauá, Delmiro Gouveia, Heitor Villa-Lobos e o nosso engenheiro Sampaio, para citar apenas os que me vêm à memória sem maior esforço. É escusado afirmar que o país, com sua vocação pachorrenta, convive mal com esse tipo de gente. Não por acaso, os netos de Macunaíma procriam e prosperam a olhos vistos.

Lobato sofria daquela “inquietação de espírito” de que falava o poeta Bandeira. Tinha a compulsão de fazer: pintava, escrevia, ilustrava, traduzia, editava, divulgava, procurava petróleo e ainda encontrava tempo para, nas páginas dos jornais, envolver-se em polêmicas notáveis em defesa de suas ideias. Tantas fez que acabou preso em 1940 ao denunciar o Escândalo do Petróleo no Brasil. Para os esbirros da ditadura Vargas, o autor de Urupês “conspirava contra os interesses do país”. Irreverente, o escritor tratou o episódio com fina ironia: “O tribunal de Segurança, achando que eu estava um tanto magro, houve por bem mandar-me internar num dos melhores hotéis de S. Paulo – o Detenção Hotel, na Av. Tiradentes”. Ao longo da vida, foi vítima de outras desinteligências: acusaram-no de ser agnóstico, comunista, e até de “deformador do caráter” das crianças brasileiras. Resistiu a tudo bravamente.

O que Lobato não poderia imaginar é que, 62 aos após sua morte, em plena normalidade democrática, um grupo de sábios que integram o Conselho Nacional de Educação (CNE) iria acusá-lo de um crime muito mais grave: racismo. Como se sabe, pela lei brasileira, trata-se de crime inafiançável e imprescritível. Os guardiões do “politicamente correto” encontraram no livro As Caçadas de Pedrinho (1933) nítidas manifestações de “racismo e perversidade” e recomendaram ao MEC a exclusão do livro da relação das obras a serem distribuídas nas escolas públicas brasileiras. Em defesa de Monteiro Lobato, levantaram-se muitas vozes, gente que aprendeu a gostar de ler na sua caudalosa e colorida obra destinada ao público infantil e infanto-juvenil.

Curiosamente, enquanto se acende uma polêmica inútil para questionar a obra do iniciador da literatura infantil em nosso país, uma jovem universitária paulistana, insatisfeita com o resultado das urnas, disparou no Twitter: “Nordestino não é gente. Faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado”. Até onde se sabe, a cidadã não aprendeu isso na obra de Monteiro Lobato. Seguramente, nunca leu um livro dele. O que se vê, hoje, nas escolas brasileiras, com as exceções de praxe, é ignorância, intolerância e burrice. Consta que certa feita, Lima Barreto, que foi editado por Lobato, ao passar em frente a uma livraria onde beletristas discutiam o sexo dos anjos, ouviu o seguinte comentário: “Eis o Lima, bêbado como um gambá. A cachaça é a desgraça deste país”. Lima teria retrucado: “Não, meu camarada; é a burrice!”. Mais atual, impossível.