sábado, 11 de dezembro de 2010

Cineas Santos - O Juazeiro e a onça

Seu Liberato era um sertanejo atípico: não fazia o menor esforço para esconder a delicadeza, o lirismo e a ternura que o animavam. A violência não encontrava agasalho em seu juízo: não batia nem em jegue, bicho ronceiro e sestroso. Fazia tudo para agradar os filhos. No final do dia, trazia-nos da roça uma pororoca de melancia, uma bananinha de coroatá, uma resina de angico, um favo de enxuí, uma simples flor de caruá ou de rabo-de-raposa... Era lento, sossegado, paciente e excelente contador de causos. As histórias eram as mesmas, mas sempre acrescidas de detalhes que lhes conferiam sabor de novidade. Se tivesse de defini-lo com uma metáfora, não me ocorre outra: um juazeiro, só sombra.

Dona Purcina, ao contrário, era agitada, enérgica, autoritária. Não admitia contestação, desrespeito, desobediência. Partidária da pedagogia da pancada, não hesitava em aplicar corretivos severos e rigorosos nos filhos, afilhados, agregados e afins. Afirmava, sem rodeios: “Quem não faz o filho chorar chora por ele”. Estava sempre atenta a tudo. Nada se lhe escapava ao olhar de águia. Quando alguém lhe questionava uma ordem com o argumento: “não vai dar certo”, ela retrucava na hora: “Você já tentou?”. Nascida e criada no sertão do Caracol, tinha um sonho recorrente: migrar para uma cidade grande, onde “corra dinheiro, saia água das torneiras e tenha escola de graça”.

Com temperamentos tão distintos, ela e seu Liberato nunca brigavam. A canga do trabalho os unia. Quando ele percebeu a vocação dela para o matriarcado, abdicou do poder de mando: deixou que ela o exercesse plenamente. À proporção que envelhecia, fazia-se mais brando, mais suave, mas companheiro dos filhos. Às vezes, no auge das nossas reinações, ouvíamos dele a advertência providencial: “Cuidado com a onça!” ou: “A onça está por perto!”. Serenos e sossegados, esperávamos a fera afastar-se para reiniciar as traquinagens. Aos 75 anos, seu Liberato perdeu completamente a visão. Nunca se ouviu dele uma queixa, uma imprecação. Dir-se-ia ter nascido cego. Fez sua última viagem no dia 1º de maio de 1984, sem saber que aquela data era consagrada ao trabalhador. Era um sertanejo íntegro, um homem exato.
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Este fragmento de prosa integra o livro A Matriarca dos Loucos, que pretendo lançar brevemente.


sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Perpetuum Jazzile e BR6 - Aquarela do Brasil

O que é bom e bonito é pra ser divulgado. Agradeço ao mano Antonio Torres por me enviar essa pérola.

Os eslovenos falam Português? Não. Falam, claro, o Esloveno. Mas o povo que vive lá no frio ao pé dos Alpes cantam em Português tupiniquim melhor que os lusos, os inventores da nossa língua mãe gentil. Talvez haja uma explicação para essa interpretação musical sem sotaque, mais cristalina que música sertaneja: Portugal e Eslovênia tiveram a mão dominante dos celtas e dos romanos.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Luís Pimentel - O ano e o mês de Noel

No mês em que o Brasil inteiro comemora o seu centenário de nascimento, Noel de Medeiros Rosa, da Vila e do mundo, recebe as mais justas homenagens. Noel faria 100 anos exatamente agora: ele é de 11 de dezembro de 1910. Viveu apenas 27 anos, mas deixou uma obra de tirar o fôlego de qualquer um: mais de duas centenas de músicas, todas com uma garantia de qualidade jamais questionada por quem quer que seja.

O autor de momentos sagrados da MPB, como Conversa de botequim, Pra que mentir?, Pela décima vez, O orvalho vem caindo, Silêncio de um minuto, Feitio de oração, X do problema e de tantos, tantos outros, veio ao mundo marcado (e para sempre) pelo fórceps que lhe fraturou a afundou o maxilar inferior. Carioca, nasceu na Rua Teodoro da Silva, em Vila Isabel, filho de um gerente de loja de roupas (Manuel Rosa) e de uma dona de casa (Marta de Medeiros Rosa).

Noel teve infância de menino classe média no Rio daqueles anos, com direito a escola, alimentação na hora certa, roupas bem passadas e lazer. Estudou em bons colégios e chegou à Faculdade de Medicina. Chegou, mas não ficou. O samba (que não se aprende no colégio) falou mais alto. A Medicina perdeu um doutor, mas a música brasileira ganhou seu mais inspirador compositor.

A primeira música foi gravada em 1928 (neste ano, do outro lado da linha do trem, Cartola, Cachaça e outros bambas estavam criando a Estação Primeira de Mangueira) e chamava-se Ingênua, uma valsa. Dois anos depois estourou com a irreverente Com que roupa? (Eu hoje vou mudar minha conduta/Eu vou pra luta, pois eu quero me aprumar). Em 1931, ainda tentando conciliar as atividades de estudante de Medicina com as de compositor, cantor, boêmio e namorador inveterado, gravou mais de 20 músicas e viu seu nome consagrado, sobretudo por conta da divertida Gago apaixonado (Mu-mu-um-um-mulher/Me fi-fi-fi-zeste um estrago).

Daí em diante, era Noel Rosa, o poetaço da Vila, pontificando no Café Nice, nos bares da Lapa, no teatro de revista, no Theatro Central, nas principais emissoras de rádio, polemizando com Wilson Batista (outro gigante), namorando coristas e produzindo sem parar. Numa época em que uma simples tuberculose matava, o Poeta da Vila bebeu muito sereno – sempre acompanhado de um bom traçado, um conhaque e a cervejinha de fé – e descuidou do peito. Tentou salvar os pulmões nos inúmeros recantos de recuperação então existentes, mas não conseguiu.

O coração mais inspirado que já bateu na Vila fez silêncio no dia 4 de maio de 1937, na casa dos pais, na mesma Teodoro da Silva onde nasceu, deixando uma multidão de fãs órfãos e de mulheres apaixonadas.



domingo, 5 de dezembro de 2010

Eliezer Setton no Programa Sr. Brasil

Hoje é um domingo de música. Não uma música qualquer, mas as nossas canções hinárias em arranjo e voz de Eliezer Setton, acompanhado do excelente sanfoneiro alagoano Tião Marcolino, no programa de Rolando Boldrin, intitulado "Sr. Brasil". Além das músicas, o artista também fala (e canta) de algumas curiosidades do Hino Nacional e até do hoje universal "Parabéns a Você".

Delicie-se com esse presente dominical que o blog oferece aos seus diletos leitores.







Manifesto Sururu ressurgiu das cinza




No dia 25 de abril de 2010 recebi o seguinte e-mail de Cláudio Canuto:

“Tom, achei o seu texto sobre o meu artigo. É uma beleza, um retrato sem disfarces e muito acurado da realidade cultural da província. Acho que talvez você possa aproveitá-lo, adaptando-o em artigo, se necessário excluindo a citação ao meu próprio artigo, já que o perdi.

Por seu intermédio, fiquei sabendo que ele foi publicado em 3 de outubro de 2007. Vou tentar acha-lo. Neste caso, publicaríamos os dois: o meu artigo e o seu comentário que, aí, poderia ficar tal veio ao mundo. O que você acha?

A ilustração no texto sobre Prometeu, foi uma grande sacada. Obrigado.”

Cláudio Canuto se referia a um texto publicado no jornal Tribuna de Alagoas, em apoio ao seu artigo no jornal Extra, de Maceió, sobre o Manifesto Sururu, um movimento cultural capitaneado pelo sociólogo, poeta, compositor e músico Edson Bezerra. Infelizmente Cláudio Canuto não pôde cumprir a promessa e levou para o túmulo todo seu desejo de resgatar esse Manifesto que seria tão importante para a Cultura alagoana.

Hoje, no intervalo do jornal local, ouvi a chamada para outro programa que seria exibido logo após o noticiário e qual o quê?! tratava-se de um programa baseado no Manifesto Sururu, e assim vos apresento, diletos leitores deste blog, para que  fiqueis sabendo que a Cultura de Alagoas, em particular, de Maceió, vai muito além da cultura de cana-de-açúcar e do fumo de Arapiraca. 

Em pouco mais de trinta minutos de vídeo há uma verdadeira mistura de música, imagem e história. Também publico o texto ao qual o saudoso Cláudio Canuto fez referência.





DESPINICANDO O SURURU DA CULTURA OFICIAL

“Colonialismo ideológico consciente de alguns intelectuais que moram nas almofadas do poder, abraçando-as, defendendo-as como filhos. (...)”    

Assim Cláudio Canuto inicia o seu introito em manifesta defesa do “Manifesto Sururu”, publicada em um jornal desta cidade, no ano passado, sob o título “Sururu apresenta sua grande couraça”.

Cláudio Canuto, sociólogo, escritor e jornalista, conhece de letra o que é a cultura alagoana, o que é a literatura alagoana e, principalmente, o que é o sururu da Lagoa Mundaú, e ninguém melhor do que ele para avalizar o chamado Manifesto Sururu, um movimento que segue na contramão da cultura oficial das Alagoas.

Apesar da coerência que rege a fundamentação ideológico-cultural do texto em questão, sou completamente cético quanto aos rumos da bandeira levantada em prol da cultura alagoana, haja vista outros projetos de igual teor ter sido jogado na vala comum do esquecimento. Em 2002, o Governo do Estado, em noite de gala, inaugurou uma nova política para a nossa cultura, cuja ação, se posta em prática, tiraria Alagoas do marasmo em que se encontrava e ainda se encontra. Lamentavelmente existiu um longo corredor entre as palavras e as ações e as boas intenções foram enterradas na inanição ou má vontade de seus executores.
Infelizmente os atos evidenciam um fato, embora haja algumas exceções: Alagoas é uma terra de amadores. As políticas públicas para a cultura são amadoras. Os patrocinadores são amadores, os artistas são amadores e os veículos de comunicação conseguem se superar no amadorismo. O artista brinca de ser artista. O Governo brinca de fazer cultura. A imprensa faz de conta que divulga. 

O público, que seria o consumidor final, o cliente a ser cativado, a ser conquistado, de repente se tornou em válvula de escape do mau humor dos dirigentes culturais que atribuem a ele, o público, a culpa pela incompetência gerencial dos promotores dos eventos culturais. No show de abertura do Projeto Pixinguinha, os nossos “promoters” deram uma aula de sandice administrativo-cultural ao colocar o artista roqueiro alagoano Basílio Sé para encerrar um show do grupo Época de Ouro, um conjunto de chorinho e que tem o seu público cativo entre os “jovens” da meia-idade, os saudosistas de Jacob do Bandolim. Outra coisa não poderia ter acontecido, senão uma revoada do povo ao final da apresentação do artista maior, exibindo sorrisos de satisfação pelo reencontro com os anos doirados da década de sessenta. Após uma overdose de saudosismo, não havia espaço nem clima para um outro estilo musical.
Dias depois, dois jornais da cidade publicaram artigos de alguns colunistas envolvidos de corpo e alma com a nossa administração cultural – desconfio até que sejam os verdadeiros responsáveis pela gafe –, criticando e culpando o público pela estupidez de uma carapuça que só cabia a eles, os gerentes culturais. O que fizeram com o Basílio Sé foi de uma sandice contundente, coisa de aventureiros e não de amadores, pois, estes, ao menos se esmeram para mostrar competência e duvido que algum amador, por mais imaturo que seja, coloque a carroça na frente dos bois.

Voltando ao tema central, o problema de certos manifestos é que se limitam ao próprio gueto cultural, ignorando a presença do público lá fora. Salvando as raras exceções, o artista alagoano acha que o público é quem deve ir onde o artista está, e não o inverso. É como se dissesse: “eu me basto”. Cultura, para certos artistas, é o que está ligado ao seu umbigo. Quando mete o pé em um cargo da “viúva”, trata logo de puxar a brasa para sua sardinha. Pensa no individual, em prejuízo do coletivo. Patrocina certas figurinhas do seu círculo de amizade em detrimento do verdadeiro artista, aquele que sobe no palco e expõe sua alma para o público, certo de atingir um objetivo, porém a voz das massas embevecidas e reconhecidas do seu talento não ressoa além dos paredões blindados dos interesses mesquinhos e individuais daqueles que podem fazer acontecer.

Assim, em vez do Marechal Deodoro apear do seu cavalo para que um líder legítimo tome as rédeas da História, conforme o implícito no Manifesto Sururu, vemos o explícito puxa-saquismo de pseudos líderes puxando as rédeas do cavalo de algum marechal de plantão no poder público em total atitude de subserviência e incorporando o servilismo brutal à gente descomprometidas com a cultura alagoana, mas que ocupa cargo por mera indicação política. Quem haverá de se esquecer de um secretário de Cultura que, no discurso de posse, disse: “A única cultura que entendo é a do fumo”?

São pessoas assim que acham que “ópera-bufa” tem a ver com flatulência intestinal, que pululam na nossa cultura oficial. Oxalá o “Manifesto Sururu” não seja apenas um rompante passageiro de indignação de alguns e que, tal qual o molusco nos últimos tempos de matança da poluída Lagoa Mundaú, não se asfixie nos gases venenosos formados pela estagnação das suas traiçoeiras águas.

No presente caso, as águas deslumbrantes e sedutoras do Poder Público.