sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Cineas Santos - Pra você também

Por azar ou sorte, o tão decantado espírito de Natal não baixa em mim. Se por um lado, isso me faz um estranho no ninho; por outro, me livra da febre consumista que acomete a maioria dos cristãos do mundo. No sertão onde nasci, 25 de dezembro era um dia como outro qualquer, com direito a enxada, foice, suor, sol e, às vezes, chuva. Quando chovia (chuva mansa, fina, demorada), meu pai aproveitava o “bom tempo” para plantar gergelim nos aceiros das roças. Não nos consumia o desespero de ser felizes a qualquer preço ou fazer os outros felizes à custa da nossa generosidade. Quando vim tomar conhecimento da figura execrável do Papai Noel, a mais nefasta das criações do capitalismo, já tinha perdido a inocência. Não tenho comércio com esse velho ilusionista que alicia e desilude crianças indefesas.

Diferentemente do Natal, o primeiro do ano, era uma data memorável: rompíamos o ano novo num forró puxado a sanfona, zabumba e triângulo. Cultivávamos uma brincadeira inocente: no primeiro dia do ano, quem gritasse primeiro “meus anos”, fazia jus a uma prenda que o outro era obrigado a pagar. Uma melancia, uma espiga de milho, um taco de rapadura, coisas que não causavam maiores danos ao patrimônio do pagante. A vida era simples, e as aspirações, rasas. Viver não doía tanto...

Presentear os amigos é algo extremamente prazeroso, desde que não se faça por imposição de um calendário criado por mercadores e agiotas. Ao contrário do que apregoa, o capitalismo não quer a nossa saciedade; quer – isto sim - a ansiedade de todos nós. Consumir por indução ou compulsão é doença grave. Muito a contragosto, sou obrigado a concordar com o Pe.. Marcelo Rossi, o marqueteiro da fé: “Natal é ser presente e não dar ou receber presentes”. Perfeito.

De qualquer forma, acabamos todos envolvidos ou enredados nessa teia pegajosa que o Natal cria. Este ano, depois de receber todas as bordoadas que fiz por merecer e mais algumas, acabei recebendo dois presentes que me deixaram comovido. O primeiro, coisa de negro para negro: um pires minúsculo com o escudo do Flamengo. Como se sabe, sou flamenguista desde a época da invenção do urubu. Coloquei-o na mesa de trabalho ao alcance dos olhos. Agora, quando quiser chorar (eu também choro), já não precisarei de melhor pretexto. O segundo, confesso, não fiz por merecê-lo: uma chuva fina, mansa, “amorosa”.

Na noite de 25 de dezembro, fazia um calor infernal. No breu do céu, sem o menor pudor, a lua exibia-se completamente nua... De repente, sem aviso prévio, caiu uma chuvinha passageira, mas suficiente para lavar a cara da cidade. Depois, retirou-se para as brenhas do Maranhão, dormitório de todas as chuvas do Nordeste. Com a mesma sem-cerimônia de antes, a lua voltou a exibir-se no céu. Foi aí que uma amiga querida me ligou para me dizer que aquela chuva era “um presente” para mim. Encharcado de emoção, mal balbuciei um Deus lhe acrescente e fui dormir sossegado, certo de que não me mataria no dia seguinte. Aqui estou.




quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Edna Lopes - Canção da Esperança


Aos amigos e amigas, companheiros de jornada, afetos tão caros, tão especiais!


No amanhecer
ou no fim da tarde
agradeço pela possibilidade da partilha
de tantos sonhos e pela alegria
de sua solidária presença em minha vida.

Obrigada por entender quando o silêncio se faz
e por entender a ausência nem sempre voluntária.
Obrigada pela oferta da amizade, do carinho
revelado em tantas formas especiais.

Obrigada por cada sorriso
por cada lágrima de emoção derramada
pela alegria da vitória em cada luta, mas
também pelo aprendizado
que ficou no fracasso de algumas e nas perdas
que contabilizamos.

Alguns se foram para sempre,
outros encontraremos em novas jornadas.
Novos oferecerão os braços para a luta
e a vida se renovará em cada ciclo.

Desculpem se faltaram abraços
Desculpem se deixei soltar alguns laços
Não esqueçam que tal qual
o poeta Maiakovski
minha anatomia é toda coração
e sempre estarei por perto.

Queridos e queridas

Que a próxima jornada nos encontre juntos
ainda que a Geografia nos distancie.
O meu abraço terno e fraterno
e o meu desejo mais sincero:
“Que o caminho seja brando aos teus pés
Que o vento sopre leve em teus ombros
Que o sol brilhe cálido sobre tua face
Que as chuvas caiam serenas em teus campos
E até que eu de novo te veja
Que Deus te guarde na palma da mão."


terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Luís Pimentel - Duas cenas de Natal

1.
Chegaram a casa com a informação de que o caminhão da Ação Social estava parado na praça, carroceria carregada de brinquedos, farta distribuição de presentes para os necessitados.

O menino largou o time de botão espalhado sobre a mesa, recolheu camiseta e sandálias e partiu na carreira. O moço da Prefeitura disse que bolas de futebol, de couro ou de plástico, não havia mais. Nem carrinhos de madeira ou controle remoto, nem livros ou velocípedes, bonés do Batman, insígnia de comandante, nada.

– Agora, só tem bonecas que choram e fazem xixi.
– Me dê. Vou levar para minha irmã.

O menino não tinha irmã para dar a boneca que chora e faz xixi. Mas não ia perder a viagem.


2.
Barbas e cabelos brancos ele já tinha. Também já andava meio barrigudo, e a rouquidão provocada pelo cigarro e a cachaça ajudavam a voz na hora do Ho, ho, ho! Era só botar a roupa de Papai Noel que ia dar tudo certo.

Vários coroas, muito gordos e meio roucos, já estavam na fila, pegando senhas para a entrevista. Uns dez ou doze seriam escolhidos para representar o bom velhinho nas portas das lojas, fazendo fotos com as crianças e chamando a freguesia.

– O que você acha do espírito natalino? – perguntou o homem da agência.
– Acho uma merda, mas preciso muito desse emprego.

Expulso da sala, foi fazer o seu Ho, ho, ho no botequim.


domingo, 19 de dezembro de 2010

Cineas Santos - A insólita poesia

Depois de uma tarde de chumbo, dessas que entorpecem a alma, a noite chegou acenando com a promessa de “chuvas amorosas”, como diria o Dobal. E a chuva veio: breve, mas intensa como costumam ser as boas coisas da vida. É incrível o poder que a chuva tem de mudar os ares de Teresina. Hoje (terça, dia 7), a cidade acordou de cara lavada; dir-se-ia uma mulher recém-saída do banho, com os cabelos gotejantes e cheirando a lavanda, uma mulher pedindo para ser amada...

Um dia propício para teresinar, no dizer de A.Tito Filho, de saudosa memória. Com o pretexto de ir ao centro, fiz o percurso mais longo. Por volta das dez horas, na Av. Duque de Caxias, parei um instante para ver mais uma cicatriz no ventre da cidade: um novo supermercado engoliu uma fatia significativa de área verde. Num ritmo alucinante, homens e máquinas trabalham para construir, no menor espaço de tempo, mais um templo destinado ao deus-consumo. Num gesto de “boa vontade”, preservaram um ipê amarelo, prova de que “o capitalismo tem alma”.

De repente, contrastando com a agitação do canteiro de obras, a insólita poesia: um adolescente negro, magro, não teria mais de 17 anos, com a camisa no ombro, percorria lentamente uma das ciclovias, puxando um prosaico carrinho de lata, desses que outrora fascinavam os meninos pobres da periferia. Um carrinho velho, amassado, amarelo. No para- choque do carro, um fiapo de linha, presa a um pedaço de madeira. Às vezes, as rodas do veículo prendiam-se num obstáculo qualquer. O rapaz parava e, pacientemente, contornava o obstáculo, com o cuidado de um manobrista experiente e responsável. Os raros ciclistas que usavam a ciclovia desviavam-se do moço sem importuná-lo. E ele, indiferente ao rugir dos automóveis, prosseguia, atento ao preceito zen: “Jornada longa, passos curtos”.

Aos olhos dos que só veem as coisas rentáveis, a presença daquele moço com seu brinquedo de lata não passava de uma cena patética. Aos olhos do velho cronista, a poesia em estado puro. Por um instante, transportei-me aos longes da minha aldeia onde, por falta de recursos, éramos obrigados a construir nossos brinquedos, usando como matéria- prima latas de sardinha, caixas de fósforos, carretéis de linha... Eram brinquedos pobres, simples, rústicos, mas que se enchiam de beleza e vida com o adubo da nossa imaginação. Era um tempo em que brincar não tinha nenhuma relação com o ato de consumir. Mais uma vez recorro ao Poeta: não nos ardia o desespero de ser donos de nada. Viver bastava.