sexta-feira, 8 de abril de 2011

Juca Kfouri - Uma derrota que jamais esqueceremos

Ontem o Brasil sofreu uma das maiores derrotas de sua história de mais de 500 anos.
Que Maracanazo, que Sarriá, que nada!
Realengo é o nome da tragédia, tragédia de verdade.
O Brasil perdeu 12 crianças estupidamente.
Quem sabe se perdeu um Pelé, uma Maria Esther Bueno, uma Hortência.
Ou uma outra Elis Regina, uma Dilma Rousseff.
Sabemos que perdemos uma Ana Carolina Pacheco da Silva, uma Bianca Rocha Tavares, uma Géssica Guedes Pereira, Karine Lorraine Chagas de Oliveira, uma Larissa dos Santos Atanázio, outra Laryssa, esta Silva Martins, uma Luiza Paula da Silveira, uma Mariana Rocha de Souza, uma Milena dos Santos Nascimento, uma Samira Pires Ribeiro, um Rafael Pereira da Silva e mais um menino cujo nome ainda não foi revelado.
Todos entre 12 e 15 anos.
Doze famílias choram hoje neste manhã que não tem bom dia a perda de seus filhos, de seus netos, de seus irmãos.
Dez garotinhas e dois garotinhos.
Uma desgraça que não permite falar de mais nada.

Comentário para o Jornal da CBN desta sexta-feira, 8 de abril de 2001.


quarta-feira, 6 de abril de 2011

A Fuga


O médico-cirurgião retirou a chapa radiológica do envelope, examinou-a cuidadosamente usando a luz da janela, recolocou-a de volta no envelope e diagnosticou:

– O raio-X mostra claramente que houve uma redução não anatômica do cotovelo e por causa disso seu irmão não consegue articular o braço normalmente.
– Mas Dr. Alberto, me diga uma coisa: uma cirurgia restabeleceria o movimento do braço?
– Veja bem: como já se passou muito tempo, a cirurgia se torna muito arriscada e não garanto sucesso. Temos que abrir o braço na região do cotovelo, fazer raspagem nos ossos, depois encaixá-los em seu devido lugar. Mas, repito: não garanto sucesso.
– Quais as chances?
– Isso, infelizmente, não sei lhe responder. Por outro lado, como ele é muito novo, a chance de recobrar o movimento fazendo fisioterapia é bem maior.
– Não, doutor. De onde viemos não há como fazer fisioterapia. Prefiro arriscar a cirurgia. Marquemos a data, pois preciso viajar pra São Paulo. Minhas férias estão acabando.

Da antessala do consultório eu ouvia toda a conversa do médico com o meu irmão. Tinha sete anos de idade e ainda não sabia diferenciar o confiável do perigoso. Se o meu irmão achava que o médico deveria me operar, bem achado estava. Mesmo porque, de onde vim, menino e tamanco ficavam debaixo do banco.

Era um final de tarde e pela janela do consultório assisti deslumbrado ao pôr de sol na Baía de Todos os Santos. Bahia de todos os encantos. O mar sôfrego chupava o sol em desejo imoderado e as águas tranquilas espelhavam a vermelhidão do céu anil, muito mais bonito que o arrebol atrás do Cruzeiro dos Montes, cujo horizonte rúbeo enlevava as almas rudes e conduzia os céticos à presença divina.

No caminho do consultório para a casa onde nos hospedáramos, no Terreiro de Jesus, havia uma praça muito bonita, de onde se via a Baía de Todos os Santos. A Praça do Poeta, disse meu irmão. Existiam outras praças, mas não eram tão bonitas quanto aquela. Perto de casa havia uma igreja toda de ouro e outra chamada de catedral basílica. Sair da roça diretamente para a capital foi um choque cultural imensurável. Sequer imaginava haver vida além da Ladeira Grande, o caminho de saída ou de retorno da pequena cidade, o limite entre o real e os sonhos dos do lugar. Não conhecia água encanada, dormia à luz de candeeiro, acordava mal o sol raiava para rezar a Ladainha de Nossa Senhora, andava em garupa de jegue e agora estava ali, no coração da velha Cidade da Bahia, e tudo era novo, tudo era um deslumbramento total. No dia anterior meu irmão me levou para conhecer o mar. Não consegui articular palavra diante daquela visão extraordinária. Léguas e léguas a perder de vista de um tapete azul-marinho. O meu irmão me contou que existiam milhares de mares como aquele e que eles se uniam e davam a volta ao mundo. Como era possível tanta água num lugar só e gente morrendo de sede em outros? Na minha terra, andava-se quilômetros por um pote d’água. O padre, que obrigava o povo a subir de joelhos a ladeira íngreme e encascalhada do Cruzeiro dos Montes em remissão dos pecados, devia saber que Deus privilegiou alguns nas Suas sublimes escolhas.

Chegando a casa meu irmão me chamou a um canto e me falou que precisaria retornar a São Paulo e que eu ficaria aos cuidados dos donos da casa, que eram seus amigos desde os tempos de foca no Jornal da Bahia. A cirurgia aconteceria duas semanas depois, que não me preocupasse não, ia dar tudo certo, confiava no médico, e que no final do mês seu amigo Giese se encarregaria de me levar embora.

Acordei no dia seguinte e não encontrei meu irmão, como nos dias anteriores. “Viajou logo cedo, no escuro”, me disse D. Maria, sorriso bondoso nos lábios. Ela passara de nossa anfitriã a responsável direta por mim. Disfarcei a apreensão de me ver sem nenhum parente em terras alhures, mas, com o passar do tempo, não conseguia disfarçar a tristeza pelos dias iguais que vivia. A casa era um puxadinho no fundo de um sobrado no Terreiro de Jesus, reduto de velhos marinheiros, proxenetas e putas. Dois quartos minúsculos e uma sala que mal cabia a mesa de jantar. O sofá ficava do lado de fora, na varanda sombria, protegida por um muro espremido entre dois velhos prédios. O bem mais valioso da casa era um rádio de pilha que seu Petrônio, o marido de D. Maria, levava todos os dias para o trabalho. No portão, um letreiro avisava tratar-se de casa de família.

Havia mais duas mulheres na casa: Lucy e Judith, filhas de D. Maria. Ambas trabalhavam no comércio da Avenida Sete e, como seu Petrônio, saíam cedo e voltavam à noite, reclamando do cansaço. Somente D. Maria não trabalhava fora e eu passava o dia remoendo saudades pelos cantos. Não havia nenhuma criança para brincar, nem podia sair à porta de casa sozinho. À noite, depois do jantar, as duas mocinhas me contavam histórias e me faziam afagos até dormir em uma cama improvisada na sala, desfazendo a carranca que aumentava com o passar dos dias.

No domingo levaram-me a passear. A solidão era tanta que a Velha Bahia perdera o encantamento. Subir e descer o Elevador Lacerda, andar de bonde ao léu, admirar o pôr do sol da balaustrada da Praça do Poeta já não me fascinavam mais. Ao retornarmos a casa, pensei nos meus irmãos Guidório e Badego, o primeiro, mais velho, o segundo, mais novo que eu. Que estariam fazendo àquela hora? Será que sentiam a minha falta do mesmo jeito que eu sentia a deles? Súbito, ouvi os apelos de minha mãe ecoar na memória:

– Desça dessa jega, menino! Se lembre que seu primo Jucinaldo caiu de uma e quebrou o braço!

Preocupação de mãe é vaticínio. Entre o falar e o cair foi só piscar e coçar. Badego meteu um pau no cu da jega e ela empinou, se contorceu, deu uma upa e fui ao chão, batendo o cotovelo numa pedra. Uma dor aguda e o braço balançando, sem obedecer ao meu comando. Ouvindo os gritos de dor, minha mãe adivinhou o sucedido e mandou Guidório chamar o farmacêutico na rua. Era o único que encanava braço nas redondezas. Hospital, só em Alagoinhas, cem quilômetros além da Ladeira Grande.

O farmacêutico chegou montando um jegue. Caindo de bêbado. Ele e o jegue. Mesmo assim encanou o meu braço, improvisou uma tala com pedaços de ripa, fez uma tipoia com um pedaço de toalha e foi embora, sem receitar um analgésico ou anti-inflamatório. Um mês depois, quando a tala foi removida, minha mãe compreendeu que não se deve confiar serviço ortopédico a um alcóolatra, principalmente em se tratando de luxação: o meu braço não dobrava no cotovelo. Segundo o Dr. Alberto, o encanamento mal feito causou uma sub-luxação, mas a minha mãe nunca soube disso. Para ela, era braço mal encanado mesmo.

Depois do passeio, Lucy, a filha mais nova de D. Maria, me chamou a um canto, perscrutou o ambiente à caça de algum ouvido indiscreto, e depois falou baixinho, quase em cochicho:

– Morro de pena de lhe ver nessa tristeza sem fim, Tonico. Você deve sentir muita falta de seus irmãos e seus amigos, né? E ainda falta uma semana pra você ser operado. Parece pouco tempo, mas quando o sofrimento é muito a dor paralisa as horas. Juntei um dinheirinho e se você aceitar eu lhe dou pra você ir embora pra sua casa.

Olhei-a num misto de espanto e contentamento. A esperança renascia naquele oferecimento. Estaria falando sério ou apenas me provocando?

– Você fala a vera? Você me deixaria ir embora?
– Deixaria, não; deixo. Se eu lhe ensinar como pegar o trem para Alagoinhas, você sabe chegar em casa sozinho?
– Em casa não, mas em Alagoinhas tenho alguns parentes. Também, na vinda, dormimos na casa da mãe de Giese, o amigo do meu irmão que nos trouxe até aqui. Não sei o endereço, mas meu pai fala aos amigos que fica na Rua do Cruzeiro, perto do Jardim dos Macacos. Na estação de Alagoinhas eu pergunto. E a casa da mãe dele eu sei qual é.
– Então vamos fazer assim: amanhã eu venho pra casa meio-dia, digo que vou dar uma volta com você, lhe deixo no bonde que vai pra estação de trem da Calçada, e de lá você segue seu caminho. Já me informei na estação: o trem sai às quatro horas da tarde e chega em Alagoinhas por volta das sete horas da noite. Combinado?
– Combinado!

No outro dia, saciada a fome do meio-dia, arrumei a minha maleta e passei às escondidas a Lucy. Ela saiu furtivamente e retornou, instante depois, sorridente e sem a maleta. Puxou-me pela mão e avisou à mãe que iríamos dar um passeio. Acenei um adeus tímido a D. Maria e apressei os passos antes que o remorso pela minha saída sorrateira me impedisse de levar adiante a minha fuga.

Na rua, pela primeira vez, desde a minha chegada, senti o contraste entre o deslumbramento e a realidade. Vi a imponência da Igreja de São Francisco no final da rua e confidenciei a Lucy minha incompreensão em ver tanto ouro dentro da igreja e a grande miséria do lado de fora. Ela disse que também não entendia a diferença entre a humildade que os padres pregavam e a ostentação que a Igreja praticava.

– É por isso que sou de Oxalá e um dia você vai saber o que quero dizer – completou.

Caminhamos de mãos dadas em direção do Elevador Lacerda, onde nossos destinos se separariam para sempre. Os olhos marejados de Lucy no abraço de despedida foram a única imagem da Cidade da Bahia que conservei na parede da memória.


domingo, 3 de abril de 2011

Maurício Melo Júnior - A infância invisível

Foi Jorge Amado quem primeiro me deu notícia deles.

Era um romance meio proibido, apesar de sua longa idade. Beirava os quarenta anos quando a década de 1970 estava pelo meio, ainda era lido com olhos de escândalo e seu texto somente falava de uma tensa questão social. Pelo sim pelo não foram as palavras que eu podia ler sem medos ou restrições – não me lembro de meus pais terem me proibido nenhum leitura; eu que cheguei, por influência de Tim Maia, a ler O Universo em Desencanto, bíblia de uma seita meio hippie de então –, pelo sim pelo não, dizia, foi Jorge Amado e seu romance que levaram meus olhos a enxergar a infância invisível que circundava minha quase adolescência.

Eram meninos afoitos e libertos, mas não tinham o heroísmo vadio dos personagens jorgeanos e moravam em Palmares. O líder do grupo chamava-se Calango, um homossexual ingênuo, com voz de comando e uma indizível capacidade de revestir todas as atitudes com uma capa lúdica. Gostava de nos mostrar como batia a carteira dos matutos e roubava o relógio dos cidadãos.

A rigor não temia nada, só Luiz Guarda, um policial arbitrário que costumava matar todos os ladrões que encontrava. E enquanto não se deparava com seu destino fatal, Calango se divertia correndo e brincando nas ruas da cidade. Poderia ter presença no romance de Jorge, mas seu tempo era outro, e os capitães da areia me parecem mais reais que a realidade vista de minha janela adolescente.

Não sei o fim de Calango. Acho que quando sai de Palmares ele já não andava pelas ruas. Foi pro Recife? Morreu? Ajustou-se? Impossível saber. Sua invisibilidade ganhou densidade e ele não pertencia ao grupo de meninos que tentava nos arrancar algum trocado enquanto bebíamos pelos bares da Boa Vista. E sempre duvidávamos de seus apelos.

Certa feita um deles se achegou à mesa pedindo dinheiro para comprar comida. Desconfiando de seu pedido, oferecemos sanduiche. E o menino devorou. Agradeceu olhando com olhos súplices para nosso petisco. Oferecemos outro sanduíche. Devorou três ao todo.

Em sua invisibilidade tinha fome e nenhum futuro.

Seus pares espalhavam-se por todos os cantos.

Conheci um deles em Matriz de Camaragibe. Era prestativo, carregava as compras de quem se dispunha a dar-lhe algumas moedas na feira da cidade. Como o morador do cais da Bahia, Perna-Seca, tinha um perna comida pela poliomielite, mancava e chamava-se Pé-de-Bombo. Mais do que viver, brincava pelas ruas escaldantes da cidade, pela praça Bom Jesus, um descampado onde nas festas de Ano-Novo se armavam barracas de madeira para as funções da pândega, os jogos e as bebidas.

Dia dois de janeiro, passada a procissão e fechadas as barracas, sobravam as armações de madeira. Liderando um bando de cangaceiros lúdicos, Pé-de-Bombo se encarregava de derrubar os restos. Aquelas estranhas ruínas que ainda recendiam a madeira nova caiam, uma a uma, na força lúdica do lazer dos meninos que logo sumiam, iam brincar noutros terreiros, deixando aos garis a necessidade de recolher os novos restos.

Eu que os aprendi a olhar nas páginas da literatura, sem cheiros desagradáveis e com o futuro trágico ou glorioso descrito no final do volume, ainda me surpreendo.

Ceio que o precursor de todos eles, pelo menos nos livros, foi Leonardo, o herói de Manuel Antônio de Almeida, das Memórias de um Sargento de Milícia. Era no tempo do rei Dom João VI que ele reinava no Rio de Janeiro. Abandonado por pai e mãe, vivia entre a liberdade das ruas e o pouco rigor da casa do padrinho, o barbeiro que “arranjou-se”. O mundo era tão outro que das ruas Leonardo também “arranjou-se”.

De outras leituras – dos jornais, das revistas – vejo crescer a invisibilidade dessa gente e os alertas vêm de longe, muito longe.

“E o garoto de doze anos, raquítico e cínico, encostado num poste, escolhe entre os passantes precisamente aquele que sabe ingênuo e facilmente enganável. É um psicólogo instintivo, no excesso de pó que cobre o rosto de certa senhora descobre a infalível beata, a dona da bolsa cheia de níqueis destinados aos mendigos que possa encontrar no caminho…”

Eu ainda encontro esse garoto de doze anos, não cresceu, embora José Carlos Oliveira o tenha visto nas ruas do Rio de Janeiro e era novembro de 1953. O tempo teima em não passar para essa gente invisível. Continuam vagando na vastidão, Carlinhos, pois “sobre os desmandos e a insensatez dos adultos paira a inocência infantil”.

Enquanto isso fazemos literatura, enquanto isso o real escarra em nossos rostos escanhoados todas as manhãs.

Pouco antes das seis da madrugada, no Núcleo Bandeirante, cidade-satélite de Brasília, um menino brincava com uma cadeira de rodas. Descia na disparada possível a rua de baixo declive. Estava feliz. Disse um galanteio chulo para duas senhoras que passavam de roupa justa com destino à academia. Elas não deram bola. “Coitado, deve estar varado de crak”, diagnosticaram. E o menino, nem-aí-seu-souza. Corria com a cadeira que tomara emprestado a outro miserável. Já estava invisível.

Os olhos bem formados somente costumam enxergá-los nos noticiários, na narrativa de tragédias que nenhum Sófocles escreveu.

Todos perderam a ingenuidade, já não se assinam Pedro Bala, Calango, Leonardo, Pé-de-Bombo, não esperam a senhora maquiada nas esquinas, não pedem sanduíches. Cresceram suas necessidades e suas encruzilhadas são bem mais cruéis e doloridas.

Cresceu também nosso distanciamento.

Pela televisão, impotentes, ou indiferentes, assistimos o balé macabro. Vestidos de trapos, andrajos, jogaram fora as latas de cola que já nos chocou e fumam crak com o prazer danado de quem caminha para a indesejada. A certeza de que não chegam a lugar nenhum nos transmite a segurança de que não carece enxergá-los. Até a lei os apaga da vida. São inimputáveis, não são responsáveis, e nesta condição, são canteiros férteis para a criminalidade de outros tantos.

E no meio do desalento, na calçada de um edifício em Maceió, por esses dias, esperando um amigo, vi a polícia acossando essa infância invisível. Um deles, idade indefinida, talvez doze anos, levantava com seus trapos. Dormia sob uma árvore. Caminhou até a árvore mais próxima. Voltou a dormir. Seu amigo, um pouco mais velho, ensaiou um discurso. Deus está vendo. Chamou a polícia para nos expulsar daqui. Nós não roubamos, queremos só viver. E porque estão na rua? Minha mãe morreu. Não tenho pai nem para onde ir. E essa corda aí na árvore? Só um balanço; a gente precisa se distrair, né? É.

A ausência do espaço lúdico, da solidariedade, da esperança.

E aí fechamos a porta e abrimos um livro. A legião de excluídos, espectros vivos, ganha a rua na solidão da madrugada fria.

O mundo pode dormir em paz.