sábado, 23 de abril de 2011

O Foguete e as lágrimas


Era um cavaleiro solitário. Ideologicamente solitário. Em tempos que vereador prestava juramento de fidelidade, não aos poderes, mas aos mandatários constituídos, ter cisma ideológica era crime contra a moral e aos bons costumes e o pseudocriminoso se tornava um pária, estigmatizado socialmente para todo o sempre.

Dizia-se que ele era um comunista de carteirinha, desgarrado da Coluna Prestes, infiltrado pelos cossacos para perverter a pacata gente da terra, embora ninguém ali, salvo umas duas exceções, soubesse o que era ser comunista, muito menos cossaco, e pior ainda, Coluna Prestes. Não acreditava em santo e comia carne na Semana Santa, justificavam-se, assim, seus detratores. Podia ser muçulmano ou judeu, ter outro preceito religioso, mas ali, naquele lugar, sob a influência do padre, judeu, muçulmano e comunista era tudo uma coisa só: o Anticristo.

Chamava-se José Jacinto de Melo, primeiro oficial de cartório do distrito de Sátyro Dias, vereador no raiar do novo município, mas não entrou para história pelos seus feitos cartoriais, pela sua falta de Fé ou pela sua atuação política (que não se sabe se foi boa ou ruim). A história, que se conta, reservou um lugar nos seus anais para o Mestre Zezito Fogueteiro, o pirotécnico, reverenciado até hoje, principalmente nas noites de junho, e o povo mais antigo chora sua falta no Sábado de Aleluia.

O Judas, em Sábado de Aleluia, de Zezito Fogueteiro, iniciava o espetáculo no cair da tarde, em desfile apoteótico pelas ruas da cidade, montado no jegue Cemirréis, acompanhado de dezenas e dezenas de crianças e adolescentes, que diziam impropérios contra o famigerado traidor de Cristo. Vestido a caráter, de paletó, gravata e chapéu, depois de concluída a volta olímpica, era pendurado no cadafalso (que ficava embaixo do tamarindeiro existente perto do Mercado) à espera de sua sentença, que vinha após a leitura do seu testamento, um primor de irreverência e sátira aos homens notórios da cidade. Ninguém escapava da “herança” do Judas, nem mesmo o padre e o prefeito. Milhares de pessoas se aglomeravam em volta de um caminhão, improvisado como palanque, para se divertir com a leitura do testamento, que era escrito em quadras: “Para o meu amigo Prefeito/ como não tenho o que deixar/ Deixo a minha vassoura/ Para a cidade ele limpar”. Eram versos picantes e divertidos, que levavam de uma a duas horas para seu desenredo final.

Feita a leitura do testamento, o povo corria para a calçada da igreja para se deliciar com o espetáculo que viria a seguir. Por questão de segurança, e também de perícia técnica, o Judas era aceso à distância, da calçada da igreja, onde havia uma estaca enfiada na terra e dela saiam dois fios de arame até o umbigo do famigerado. Em cada um dos fios existia um foguete luminoso, que ficava em extremidades opostas; o primeiro rojão a ser aceso era o da igreja, que corria pelo arame até o cadafalso, acendia o pavio que desencadeava a queima dos fogos no corpo do boneco e acendia também outro foguete, que retornava para a igreja. O primeiro foguete era chamado de “gato”; o segundo, de “gato de resposta”. O ir e vir por si só já era um espetáculo multicolorido. Após a chegada do foguete “gato de resposta” à estaca da igreja, se iniciava a queima do Judas, com as bombas explodindo em série, soltando fogo e fumaça da barriga, gerando um espetáculo de puro êxtase visual, transformando o Sábado de Aleluia em verdadeira manifestação de congraçamento cristão. Vinha gente de outras cidades assistir ao espetáculo. O povo da roça comparecia em massa, contentando o padre, que no dia seguinte teria os óbolos consideravelmente aumentados.

Apagadas as chamas da glória (ou o fogo justiceiro dos vingadores de Cristo), tudo voltava a ser como dantes no quartel de Abrantes. Zezito Fogueteiro, ou José Jacinto de Melo, tão amado e admirado, retornava à odisséia de ser o proscrito solitário Cavaleiro da Esperança, sem coluna e sem seguidores, porém seus foguetes rasgavam o breu da noite seguinte, em estouro de bombas de “resposta” ou em chuva de lágrimas policromáticas, em anunciação da Ressurreição de Cristo.

- Judas morreu!
- O cavalo é teu! 

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Cineas Santos - Das vezes em que salvei Cristo

No final do milênio passado, convidaram-me para ministrar um curso numa cidadezinha perdida no sertão do Piauí. Terra pobre, gente simples, mas extremamente hospitaleira. Não sei se por falta de um hotel decente ou por excesso de generosidade, hospedaram-me na Casa Paroquial, deferência só concedida aos “do andar de cima”. O padre era um típico pároco do sertão: rotundo, comilão, bonachão, ostentando na carantonha bovina o resignado ar dos mansos. Tinha alguma sensibilidade cultural e gostava dos temas ligados ao folclore. À noite, depois do jantar, digo, depois da ceia digna de um bispo em desobriga, fomos para a biblioteca prosear um pouco. Falamos de Leonardo Motta, Câmara Cascudo, Fontes Ibiapina. Conversa de compadres velhos.

Talvez pelos excessos da ceia, dormi mal e acordei cedo. Levantei-me e fui vistoriar o quintal da Casa Paroquial. Entre as fruteiras, havia um autêntico umbuzeiro do sertão: atarracado, tortuoso, com galharia impenetrável. Lembrei-me daquela descrição antológica de Euclides da Cunha. Naquele umbuzeiro empoleiravam-se as galinhas para dormir. De repente, me dei conta de algo insólito no chão: era a imagem de um Cristo crucificado, ou melhor, o que restara dela. Na verdade, faltavam-lhe as duas pernas, um dos braços e a mão direita. Não bastassem tantas mutilações, a imagem estava recoberta de titica de galinha. Experimentei uma sensação estranha, misto de piedade e indignação. Eu sabia que era apenas uma imagem de gesso, dessas que se compram a preço de banana em fim de feira. Mas aquela imagem, com certeza, fora benta. Diante dela, centenas de fiéis persignaram-se, desnudaram-se, confessaram-se arrependidos de suas culpas e, naturalmente, imploraram pela salvação de suas almas. Era, portanto, uma imagem impregnada do que há de mais humano em nós: a fé. Transumana, se me permitem o termo. Agachei-me e, com alguma dificuldade, consegui resgatá-la. Enrolei-a num jornal velho e levei-a para os meus aposentos. Na hora do café, pedi ao velho pároco que me desse aquele Jesus mutilado. Ele me olhou com uma pontinha de desconfiança e perguntou: Pra que você quer isso? Expliquei-lhe que sou vidrado em coisas antigas e que pretendia restaurá-la. O padre, que não era nada bobo, propôs o seguinte: Deixa isso aí e te dou uma novinha, trazida de Roma, benta por Sua Santidade. Declinei da oferta e, para comover o vigário, recitei o belo poema “Gesso”, de Manuel Bandeira, que termina assim: “Hoje esse gessozinho comercial/É tocante e vive, e me faz refletir/ Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu”. O padre acabou aquiescendo, e o Cristo mutilado e obrado veio comigo. Guardei-o em casa. Com o tempo, esqueci-me da sua existência. Como qualquer cristão relapso, só me lembro de Cristo nos momentos de agrura.

No domingo passado, mandei limpar o quarto das inutilidades e eis que a imagem de Cristo, recoberta de poeira e pátina, veio à tona. A cidadã que limpava os trastes me perguntou: Posso jogar isso no lixo? Antes de dizer não, perguntei-lhe: Por quê? Sem rodeios, respondeu-me: Isso me incomoda. Foi aí que me dei conta de que Cristo, mesmo reduzido a escombros, continua incomodando, ou seja, continua vivo. Resolvi guardá-lo num sarcófago improvisado. Como sou um pecador inconverso, mas honesto, confesso que não agi desinteressadamente. O raciocínio é simples: por duas vezes, em menos de dez anos, salvei aquele Cristo do lixo. Se Ele é, como rezam as Escrituras, todo compaixão e amor, há de me salvar pelo menos uma veizinha. Espero e confio.




quarta-feira, 20 de abril de 2011

Luís Pimentel - Grande homem mais ou menos

O velho relógio pendurado na parede suja marca 15 horas. Traduzindo: são apenas três da tarde e já estou bêbado. Nem almocei ainda e estou trocando as pernas e enxergando muito além ou aquém da paisagem. Nem sei se vai ter almoço hoje nesta casa.

Será que vai ter jantar?

Entre quatro paredes e inúmeros andares acima do chão, cambaleio e tropeço nos móveis. Me assusta tanta altura, mas me sinto em segurança. Se estivesse no chão, neste momento, já estaria juntando um rebanho de moleques à minha volta. As crianças adoram os bêbados. Que nem Deus, que protege os bêbados e as crianças nas horas difíceis. Põe a mão embaixo, é o que dizem. Amortece as quedas.

Bêbado feito um gambá. Velho feito um gambá e bêbado feito um gambá velho.

A velha rabugenta se aproxima. Porre maior que qualquer porre, arrastando pelos corredores as velhas sandálias de couro, velhas e gastas que nem ela. A latinha de biscoitos na mão:

– Bêbado já, a esta hora?
– Bêbado já. Esta hora já. Bêbado estou – respondo.

A velha resmunga qualquer coisa e dá as costas. Volta pelos corredores, arrastando as sandálias.

Bebo meio litro de água e acendo um cigarro. A fumaça invade o corpo feito lava de vulcão e sai pior ainda. Solto um palavrão cabeludo, apago o cigarro e cuspo da janela, acompanhando do parapeito a trajetória da saliva gosmenta e amarelada por doze andares.

Dá gosto ver. Acompanho até a hora em que a porcaria se esparrama lá embaixo, na calçada ou na cabeça de um desocupado. Como tem gente desempregada ou vadia nessa merda de cidade. Sei que também tem uns que trabalham, mas mesmo assim ficam zanzando pelas ruas. E sei que tem aqueles que não precisam trabalhar mesmo e estão cagando para o mundo, chutando chapinhas por aí e levando cusparadas de bêbado no quengo ou nos ombros. Quem manda passar por aqui?

A velha abstêmia abandona sobre a mesa a latinha de biscoitos, a mesma que me servia de marmita na época da repartição. Me olha de cara feia, como se fosse possível envergonhar um velho bêbado que já sente vergonha de tudo, e faz um comentário dos mais idiotas:

– Essa porcaria pode cair na cabeça de alguém, sabia?

Eu podia dizer que já caiu, já emporcalhou quem tinha que emporcalhar, mas me falta a paciência:

– E daí? Não estou lá embaixo.
– Porco – diz a velha, curiosamente sem ódio. “Porco”, como se dissesse “chato”, “bobo” ou “maluco”.

Quando eu trabalhava na repartição só enchia a cara nos finais de semana. Começava mais ou menos ali pela quinta-feira, depois do expediente. Litros de cerveja, garrafas e mais garrafas de conhaque, uísque, vinho, o diabo a quatro. Falando tanta bobagem que até sinto vergonha de lembrar, entre um porre e outro.

Agora sou outro homem, só bebo cachaça e mais ou menos todo santo dia. Chova ou faça sol ou faça até mesmo um tempinho mais ou menos. Também não frequento mais bar, nenhum bar. Evito me misturar com o rebanho de aposentados que enche a cara e conta mentiras a noite inteira. Eles às vezes até telefonam, insistem comigo, mas eu não vou.

Não quero a companhia de bezerros castrados, tristes e impotentes iguais a mim.

– Quer um café amargo? – a velha de novo, com as sandálias nos pés e a lata de biscoitos nas mãos. Come o dia inteiro, mas não engorda. Nem morre.
– Melhorar de quê?
– Do fígado, da cabeça, da bebedeira. Vai ao médico, criatura.
– Deus é pai. Só mesmo Deus, todo poderoso.
– Não esquece do que os filhos te dizem.

Os filhos também são muito esquisitos, puxaram à velha. Quase não me visitam, o que é até um favor que me fazem. Não preciso deles, de nenhum deles. Na verdade, não preciso de ninguém. Sou um homem independente. Bêbado e independente, mesmo quando caindo pelos cantos.

– Quer um copo d’água? Prefere um leite morno? Esquento a água do banho?

Sei que ela jamais vai me deixar em paz.

– Responde, mal-agradecido.

Ainda bem que estou ficando surdo, só assim me tornarei um homem livre.

Tem um boçal esperneando lá de baixo, gritando comigo e interrompendo os meus pensamentos. “Ah, é?” Vou à janela, estufo o peito. A cusparada dessa vez vai certeira e a resposta vem em seguida. Volto à janela e o desmiolado pergunta se já estou bêbado novamente, enquanto limpa a cusparada na camisa branquinha.

– Mais ou menos – respondo.

A velha salta em defesa do moço cuspido. Diz que é um rapaz direito da loja que tem lá embaixo. Insiste em que se o rapaz fosse violento poderia subir e me dar umas pancadas, que eu bem mereço. Solto uma gargalhada estrondosa, tomo mais um gole caprichado e despacho nova cusparada voadora. Ela me chama de animal incorrigível e eu respondo apenas, em absoluta paz comigo mesmo:

– Sou isso tudo mesmo. Quer dizer, mais ou menos.

Fecho as janelas sem olhar para o céu, deixo a velha falando sozinha e me arrasto até o quarto. Repito para mim e para as paredes sujas:

– Sei que sou um grande homem. Ou sou um homem mais ou menos, como todo grande homem.


Conto título do volume de contos Grande homem mais ou menos (Bertand Brasil, 2007).







segunda-feira, 18 de abril de 2011

Edna Lopes - Profética

Estava tão certa de que o marido tinha amantes que passou a desconfiar até da própria sombra. Imaginava que era a vizinha, a colega de repartição, a moça do supermercado, a prima oferecida, a amiga da irmã...
Passou a viver no inferno e transformou a vida dele e dos filhos num purgatório, um tormento de lamúrias, queixas, acusações.

Ele, por sua vez, jurava de pés juntos que era delírio, que a desconfiança dela era infundada, que ele nunca dera motivo para que ela agisse assim, que ciúme tinha limites...
O convívio passou a ter clima de guerra fria. Se trazia um presente, ouvia:
– Culpa! Mil vezes culpa! A troco de que me traz esse presente se não é por culpa?
Se ele esquecia algum item da feira, mais reclamações, acusações:
– Desleixado, irresponsável! Aposto que da feira dela ele não esquece nada!
Se se atrasava:
– Eu não disse? deve tá por aí, farreando com a “rapariga”! – a lamúria e o choro estavam garantidos. Não adiantava os filhos dizer que ela exagerava, que não tinha provas e ela respondia:
– Terei!
Passou a rejeitá-lo na cama:
– Não me toque! Já tem quem lhe satisfaça!
O dito cujo, como não tinha mais sossego em casa, passou a chegar cada vez mais tarde. Aceitou o convite para o futebol, para o churrasco no clube, para o happy hour ...Sempre sozinho, mas, um dia, convidou uma amiga para jantar, outra para dançar, outra para tomar um drinque... Gostou de se sentir solteiro e arranjou uma namorada, duas... três...

Meses depois, chegando de mais de um fim de semana dormindo fora, já bem tarde da noite, estacionou o carro, jogou as chaves na estante e foi tomar banho. A mulher desfiou o costumeiro rosário das reclamações e ele nem ligou. Ela, enfurecida, perguntou:
– Posso saber por que você não se defende mais, não reclama mais do meu comportamento?
– Simples: você estava certa! Eu resolvi aceitar sua sugestão: arranjei uma amante.
Ela para, respira fundo, encara os filhos e grita:
– Eu não falei?!




domingo, 17 de abril de 2011

A Carta


Rabiscou um papel de carta, colocou no envelope, fechou, selou e jogou na caixa do Correio. Retornou a casa calculando o dia que chegaria a resposta. 

Três dias depois, cedo da manhã, sentou-se à porta à espera do carteiro. O agiota lhe dera o prazo até as três da tarde. Ou paga o que deve, oooou...

O carteiro não tardou. Estava com uma carta na mão. Carta, não, a salvação. Reconheceu o envelope. Reconheceu a caligrafia. Era da sua mão trêmula. O coração acelerou aflito.

– Mas, mas, mas... balbuciou, incrédulo.
– Faltou colocar o endereço do destinatário – explicou o carteiro.
– Mas como?! Está aqui, ó, do mesmo jeito que a minha filha falou pra mãe dela, por telefone: Maria Anderlaine 73 Arrôba Guimeio Ponto Com! Vixe, Maria Mãe de Deus, bem que eu sabia que ela tinha esquecido de dizer o tal do cepi!