segunda-feira, 20 de junho de 2011

Recesso temporário do blogueiro



Comunico aos leitores deste blog que o blogueiro, depois de ler a crônica de Luís Pimentel falando do são joão na terrinha, não resistiu à tentação e,nos próximos dias, estará em turnê etílica licoreira pela Bahia e provavelmente não haverá novas postagens no blog até o dia 30 deste.

Como se diz lá na minha terra, nessa época: VIVA SÃO JOÃO!

Inté a volta.

Cineas Santos - O Homo Faber do Sertão

Num gesto de pura generosidade, a jornalista Cláudia Brandão, com a cumplicidade de Zózimo Tavares, publicou, no Diário do Povo (12/06/11), uma crônica – “O Midas do sertão” – na qual me atribui qualidades e importância que efetivamente não tenho. Comovido, agradeço-lhe o carinho, mas a verdade deve prevalecer sempre. Em relação ao Salão do Livro do Piauí, por exemplo, a iniciativa não foi minha. Na década de 80, eu realizava, praticamente sozinho, o seminário Língua Viva, tentativa de propiciar aos professores piauienses o necessário diálogo com os gramáticos e linguistas do país. Por minha conta e risco, trouxe a Teresina, entre outros, Celso Cunha, Evanildo Bechara, Celso Pedro Luft, Napoleão Mendes de Almeida e José de Nicola Neto. Cansado de malhar em ferro frio, resolvi parar. Foi aí que apareceram os professores Wellington Soares, Luís Romero e Nilson Ferreira e me propuseram a realização do SALIPI. “Emprestei-lhes” o meu nome e autorizei-os a utilizá-lo onde pudesse ter alguma utilidade. Os rapazes foram à luta e, em 2003, nasceu o Salão. Não sou, portanto, o pai da ideia. Sou,quando muito, um avô afetuoso. Além disso, o SALIPI só se mantém vivo graças ao apoio de muitos parceiros, entre eles, o governo do Piauí e a Prefeitura de Teresina, para citar apenas dois. Trata-se de um trabalho coletivo.

A Cláudia acertou em cheio quando falou da minha paixão pelos livros, pela educação, pela cultura. Não respiro bem onde não exista efervescência cultural. Creio que o título da crônica estaria mais adequado se fosse O homem faber do sertão. Ao longo da vida, tenho sido apenas isto: um fazedor. Sofro de uma saudável inquietação que me impele a fazer sempre, independentemente das dificuldades a serem enfrentadas. Em 1969, quatro anos após chegar a Teresina, eu já estava à frente de um magro grupo de teatro, mambembando pelos sertões do Piauí e do Maranhão. Desde então, como professor, editor e produtor cultural, tenho realizado muitas atividades, coisas pequenas, mas que, no conjunto, constituem um lastro de certa expressão. Entre as realizações, faço questão de destacar a criação do grupo A Cara Alegre do Piauí que, há 34 anos, presta serviços onde for solicitado. Na próxima semana, por exemplo, estaremos ensinando, aprendendo e compartilhando experiências com professores e alunos de Pio IX. Compartilhar é o meu verbo preferido.

Depois de milhares de aulas ministradas, centenas de palestras proferidas, dezenas de livros editados, todos os dias me surpreendo fazendo a mesma pergunta: o que serei quando crescer? No limiar da senescência, continuo apaixonado por tudo o que faço. Sou um amador, na acepção plena da palavra. O que amealhei? O que não está à venda em nenhum lugar do mundo: o respeito e o carinho de pessoas especiais como a Cláudia Brandão, ex-aluna e sempre amiga. Para um homem do meu tope, basta.


Luís Pimentel - Elza: mulher, negra, estrela e gostosa

Ela já me disse em uma entrevista: “Degustei lágrimas como quem degusta vinho. Sei o gosto que elas têm”. Não foi apenas uma frase de efeito. Quem conhece um pouco de sua história sabe que ela comeu o pão que o diabo amassou, apanhou mais do que boi ladrão. Mas seguiu os ensinamentos do “Che” e não perdeu a ternura, jamais.

Elza Soares, uma das mais brasileiras entre as cantoras brasileiras chega aos 74 anos neste junho de 2011, no dia 23, cantando melhor do que nunca. Possui recursos vocais personalíssimos, arrancando as sílabas da garganta como se quisesse estourar as veias do corpo. Parece que “rói do cóccix ao pescoço”, como no verso da música que Caetano Veloso escreveu para ela e que virou título de um dos seus mais belos CDs.

Outro que homenageou lindamente a garra da cantora, seu som em fúria, foi Chico Buarque. Lembrou o craque dos craques, na canção Dura na queda: “Apanhou à beca, mas pra quem sabe olhar/A flor também é ferida aberta/E não se vê chorar”.

Do velho 78 rotações ao CD, são mais ou menos 100 discos gravados, no Brasil e no exterior. Nos EUA, resolveram examinar sua garganta e concluíram que as cordas vocais eram defeituosas. Um defeito perfeito. “Armstrong ficou deslumbrado quando viu que termino de cantar e falo normalmente, que esse som é puro efeito vocal. Ele me chamava de filha espiritual”. Não vai nesse depoimento nenhum excesso de vaidade. Simples relato.

O sucesso enorme que fez com músicas como Mulata assanhada, Se acaso você chegasse, Língua, Malandro, Cadeira vazia etc., não mudou sua estrada, desde o início para cima: 

– Sou uma poderosa. Vitoriosa quatro vezes: mulher, negra, estrela e gostosa.

Diz o último verso da canção do Chico: “O sol ensolará a estrada dela...”. A estrada sempre esteve ensolarada. Elza Soares é a verdadeira guerreira da luz.



domingo, 19 de junho de 2011

Maurício Melo Jr - O Sequestro de Dom Helder

Parei de rezar há muito tempo. Hoje minha memória não alcança nada além de uma Ave Maria ou um Pai Nosso. Nada mais. A decisão foi voluntária, mas inconsistente. Tenho uma irmã carola de batizar e casar. Se o padre cochila, ela diz até missa. Ou seja, na família já tem reza de sobra, de forma que pude ir cuidar de outras coisas.
E fiz isso com um grande aval.

Numa conversa de mesa de bar ouvi o velho senador Teotônio Vilela contar: “Meu irmão, o cardeal Dom Avelar, era o diabo quando menino. Depois resolveu seguir vida religiosa, de forma que pude continuar endiabrado, e fui cuidar de política.”

Os meus pecados são menores: cuido de literatura.
Bom, voltando à carolice da família, minha irmã segue o exemplo de uma tia, também afeita às práticas do catolicismo. Ouvir a conversa das duas faz de qualquer pecador um homem pio. Eu é que, ouvindo várias dessas conversas, não tomei jeito. Fazer o quê? Como elas mesmas asseveram, são os desígnios de Deus.

Numa dessas conversas minha tia contou, um tanto em êxtase, que encontrou Dom Hélder Câmara, por acaso, no centro do Recife. Naqueles dias, finais dos anos de 1970, o arcebispo circulava sozinho, na companhia de suas crenças, cumprimento e dando atenção a todos que lhe procuravam. Nunca lhe faltou uma palavra de carinho para deixar com quem quer que fosse, uma solidariedade cotidiana.

De minha parte, na cabeceira, deixava um exemplar de O Deserto é Fértil, uma reunião de crônicas que lia por prazer e desejo de conhecimento. Impressionava-me o texto corretor, seguro, prenhe de referências religiosas, mas sem imposições. Os exemplos, Dom Helder arrancava da vida, e ela, a vida, na sua conceituação de injustiças e contradições, era que devia ser mudada. Não interessava aquele homem frágil apenas o paraíso celeste, a terra também podia ser transformada num novo Jardim do Éden, um lugar de bonança, felicidade e harmonia para todos.

Minha tia não cansava de falar da tarde em que caminhou ombreada pelo sacerdote, o interrogando e ele, pacientemente, a lhe falar de Deus e dos homens. E eu ouvia seu relato apanhando os ensinamentos possíveis. Até ganhei fôlego para discutir com um amigo, dias depois, numa ocasião qualquer. Num tempo maniqueísta, onde a isenção se fazia impossível, o amigo, um tanto emprenhado pelo cântico do este-é-um-país-que-vai-prá-frente, disparou: “Dom Hélder foi integralista”.

Parti para a defesa. O integralismo, doutrina inspirada no fascismo, criado por Plínio Salgado, foi o retrato de uma época. Vivia-se um mundo dividido entre duas possibilidades de ditaduras, esquerda ou direita, deixando no meio a democracia americana com todas as suas ambições. O discurso arrebatador de Plínio na defesa de um Estado forte e orientador, definidor de políticas para o caminho do desenvolvimento, encantou verdadeiros gênios, como Câmara Cascudo e Érico Veríssimo, e gerou um clássico da ciência política, O Estado Nacional, escrito por Francisco Campos, um sábio da direita.

Cascudo, Érico e Dom Hélder, a exemplo de vários outros, reviram seus conceitos e passaram a defender a postura de que, mais que o Estado, o homem é que deveria ser fortalecido para defender com as próprias garras sua dignidade, sua vida. E escudado nesta crença o padre partiu para a prática. Admirávamos sua disposição de, ainda nos anos de 1950, como bispo auxiliar do Rio de Janeiro, criar a Cruzada São Sebastião e o Banco da Previdência. Acredito que pela primeira vez, fora dos padrões folclóricos do samba, se revelava o povo invisível da favela.

Essa mania de revelar o invisível, e que tanto desagradava os poderosos de plantão, no Recife, trouxe à tona o povo das pontes, toda uma comunidade que vivia encastelada nos vãos, entre o mangue e o concreto que, com a luz do dia, mendigava pelas ruas. Aquilo era um tapa nas ações eleitoreiras da Campanha Contra o Mocambo, de Agamenon Magalhães.

E minha tia caminhava com este homem de aparência frágil e voz suave a quem os poderosos não podiam afrontar. Agrediam sim, a igreja voltada para o combate à pobreza e a defesa dos direitos humanos. Vários de seus auxiliares mitigaram nos cárceres ou foram assassinados.

Dom Helder não temia. Seguia seu caminho. Tanto que perguntou para minha tia se ela estava de carro. Sim. “Você pode me dar uma carona? Estou indo para casa.” Ela, que morava para os lados do Espinheiros, maravilhada, guiou o próprio guia. E no caminho o indagou. “Dom Helder, o senhor não me conhece e entra em meu carro despreocupado. Não tem medo que eu o sequestre?” Passando a mão na cabeça, respondeu: “Minha filha, eu, quando adolescente, tinha uma cabeleira basta. Aos pouco Deus foi tirando meus cabelos. Assim é a vida, quando Deus quer, tira. E nós somente temos que fazer valer com dignidade o nosso tempo.”

Minha tia não sequestro Dom Helder. Chorou de emoção, apenas, e deixou o arcebispo em casa. E pelas ruas nós chorávamos de revolta a morte de padre Henrique e a prisão de Cajá, de certa forma, dois dos tantos sequestros de que Dom Helder foi vítima.