sábado, 9 de julho de 2011

Cineas Santos - Um sonho em curso

De Prof. Cineas Santos

Corria o ano da graça de 1977 e, apesar da ditadura, imperava entre nós a crença na “salvação do planeta”, na iminência de uma luminosa revolução cultural e, principalmente, na construção de um mundo mais justo e mais fraterno. Sonhos juvenis, irrealizáveis, mas necessários. Movido por esse desejo de mudanças, juntei um grupo de jovens – Paulo Machado, Fernando Costa, Alcide Filho, Rogério Newton e Margarete Coelho – e decidimos construir uma ponte cultural entre Teresina e o sertão do Piauí. Amontoados num velho fusca verde-sonho, iniciamos nossa peregrinação por São Raimundo Nonato onde, anualmente, realizava-se uma semana universitária. Levamos uma bela exposição do pintor Fernando Costa que, sozinha, falava mais que a nossa arenga de pregadores. Animados com os resultados, fomos a Oeiras, Floriano e já nos preparávamos para ir a Corrente, quando a gasolina do fusca acabou. Como não éramos financiados por ninguém, encerramos nossa errática aventura na vizinha cidade de José de Freitas. 

Esta história é sabida e consabida. A aventura durou pouco, mas as sementes foram lançadas em terreno fértil, e o projeto A Cara Alegre do Piauí, 34 anos depois, continua mais vivo do que nunca. Agora, por exemplo, estou escrevendo de Pio IX, onde, com um punhado de trabalhadores culturais, estamos fazendo o de sempre: ensinando, aprendendo, compartilhando experiências e vivências. Com a chancela da Universidade Aberta do Brasil, da UESPI e da UFPI, sob a batuta da professora Rosa Melo, nada menos de 500 pessoas (professores, alunos, gente do povo) estão participando dos cursos e oficinas oferecidos por nós na sede do município. É gratificante participar de um projeto que, entre outras atividades, semeia alegria. Mais do que nunca, estou convencido de que a ponte cultural entre a capital e o interior do estado precisa ser construída com a maior urgência para que se mantenha aceso o diálogo enriquecedor entre os que fazem cultura em qualquer parte, mesmo em condições adversas. É ocioso afirmar que um projeto de tal magnitude não poderá ser mantido apenas por um punhado de esforçados trabalhadores. Urge que o Estado faça a sua parte, fomentando políticas culturais capazes de gerar emprego, inclusão social e, acima de tudo, de elevar a autoestima do nosso povo.

            O Cara Alegre, com a experiência dos que já vêm fazendo há mais de 30 anos , está disposto a colaborar com qualquer iniciativa que tenha como objetivo promover a inclusão cultural e estimular o intercâmbio entre a capital e os municípios do Piauí. 


quarta-feira, 6 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - Viver é arriscoso

Riobaldo Tartarana, o brilhante jagunço maquinado por João Rosa, tinha medo da vida, mesmo assim trocou tiros com Hermógenes, amou loucamente e sobreviveu por muitos anos, um tempo suficiente para contar suas aventuras a um ouvinte desconhecido. Sobreviveu agarrado em suas crenças e no desespero de não poder concretizar os desejos do peito. Quando pensava em religião, variava, bebia água de todos os rios, quando devotava seu amor via Diadorim como uma neblina.

Um homem sábio temente a Deus e ao diabo.

Contra esta corda bamba permanente que é a vida, não há muito remédio senão viver, e viver intensamente, como fez Riobaldo.

Um tio meu bem criativo, maquinando uma vida segura, projetou uma casa onde seria possível morar livre de todos os riscos. Desenhou quadrados, estabeleceu espaços, pensou soluções para todos os problemas, previu todas as brechas possíveis para a insegurança e, enfim, fechou o projeto de seus sonhos: um imóvel sem portas ou janelas. “Ninguém vai conseguir entrar nesta casa”, constatavam os céticos. “Nem mesmos ladrões ou homicidas”, rebatia meu engenhoso tio que, infelizmente, não encontrou pedreiros ou mestre-de-obras capazes de concretizar seus sonhos de segurança. Hoje vive no décimo segundo andar de um edifício comum. Aparentemente livre de perigos.

Isso enquanto fica em casa, pois nas saídas há sempre um trânsito cada dia mais difícil. Embora não morando na mesma cidade que este meu tio, vejo o quanto tem se tornado arriscado andar nas ruas das grandes e pequenas cidades. Vai longe o tempo em que uma modesta batida de carros sem vítimas, fatais ou não, era assunto por toda uma semana em Palmares ou Matriz de Camaragibe. Discutíamos o prejuízo dos infelizes proprietários e os possíveis lucros dos mecânicos escolhidos para reparar os estragos. E isso tomava dias de nossas vidas até que nova batida ou, mais comum, as notícias de um novo adultério aumentavam nosso repertório de prosa boêmia.

Os tempos mudam e a vida se torna cada vez mais arriscada, parece uma bolsa de valores onde apenas se negociam ações de massas falidas.

Frequentemente escuto notícias de sequestros relâmpagos, novos golpes na praça, balas perdidas, agressões no trânsito e busco encontrar um outro lado da vida. Nunca consigo chegar ao excessivo grau de otimismo daquele personagem do Roberto Benigni, o Guido, de A Vida é Bela, mas acredito que estamos num tempo de bonança. Talvez isso se deva ao fato de vir de outros tempos, não tão remotos, é certo.

Basta dizer que outro dia, no Recife, tomei conhecimento, um noivo enlouquecido matou um dos padrinhos de seu casamento, a noiva e depois se suicidou. Um fato tão absurdo que nem mesmo Nelson Rodrigues conseguiu imaginar.

Vivi no Recife num tempo em que nosso maior medo, quando rondávamos suas ruas vazias, nas madrugadas vadias, era encontra a Perna-Cabeluda, uma lenda urbana, um ser misterioso com mais de dois metros de altura que chutava corruptos e outros cidadãos menos perigosos. Como éramos boêmios inveterados, temíamos uma vingança mandada pelos céus.

Da terra o perigo era mais real. Galeguinho do Coque vivia nos noticiários e em nosso imaginário. Era cruel, perverso, roubava e judiava de suas vítimas. Um dia foi preso e comemoramos como altas doses de rum, única bebida acessível aos nossos modestos bolsos. E, surpresos, sem comemorações, lemos nos jornais a conversão do famoso bandido ao protestantismo. O mundo estava salvo e podíamos voltar, nas altas da noite, dos bairros distantes, onde os preços eram mais justos e as noites mais felizes. No entanto, confirmando minha tese jurídica de que a ocasião faz o furto, já que o ladrão nasce feito, lamentamos a volta de Galeguinho à prisão: fora flagrado roubando os cofres de sua igreja. Na Idade Média seria queimado por heresia, o malandro.

Isso se deu no Recife, uma cidade cruel, inóspita para quem não se adequa aos seus caprichos. Vítima disso foi o doce Mané Antônio, mecânico estabelecido em Catende. Homem pacato enquanto não lhe envolvia um súbito e costumeiro surto de loucura. E aí subia no primeiro banco da primeira praça que encontrava e desandava seu mais vibrante discurso com a maior de suas frustrações.

Certa feita, desembarcando na Estação Central, foi acometido pelo surto em plena Praça Joaquim Nabuco. Vivia-se os tumultuados idos de abril de 1964. Mané subiu ao banco e abriu o verbo: “Exército, Marinha e Aeronáutica, toda nação, fode e eu não. Por quê?” Os olheiros de plantão não perdoaram e até descobrirem que focinho de porco não era tomada o pobre mecânico exemplar sofreu pelos cárceres da repressão.

Corre-se mais riscos em tempos de exceção, é fato.

Ascenso Ferreira, pelo que me consta, foi dos pouco a escapar com bom humor desta fatalidade. Nos mesmos idos de 1964, no sentido de neutralizar a tendência de esquerda dos artistas pernambucanos, circulou o boato da existência de uma indecente lista apontando os poetas veados, boiolas, homossexuais, enfim, eram tempos em que tal prática não tinha nenhum glamour. O fato é que foi uma avalanche de acusações. Os poetas já não podiam circular em paz sem serem apontados como membro da desabonadora lista. Até que todos os dedos apontaram para o imenso Ascenso. E sem outra saída mais convincente ele gritou para os quatro ventos: “Eu não posso. Eu tenho hemorróidas.”

Viver é arriscoso, mas como vale a pena correr este risco.


domingo, 3 de julho de 2011

Cineas Santos - Pérola na lixeira


Há quem afirme, com uma pontinha de maldade, que a internet é uma espécie de cloaca da civilização ocidental onde cabe tudo: de pedofilia a passaporte para o céu, em módicas prestações mensais. Ainda assim, basta buscar com cuidado para encontar pérolas à disposição de todos. Ademais, não se pode culpar uma estrada pelo simples fato de nela, acidentalmente, transitarem salteadores. Um amigo me mandou esta bela história que, comovido, repasso a vocês.

UBUNTU

A jornalista e filósofa Lia Diskin, no Festival Mundial da Paz, em Floripa (2006), nos presenteou com um caso de uma tribo na África chamada Ubuntu.

Ela contou que um antropólogo estava estudando os usos e costumes da tribo e, quando terminou seu trabalho, teve que esperar pelo transporte que o levaria até o aeroporto de volta pra casa. Sobrava muito tempo, mas ele não queria catequizar os membros da tribo; então, propôs uma brincadeira pras crianças, que achou ser inofensiva.

Comprou uma porção de doces e guloseimas na cidade, botou tudo num cesto bem bonito com laço de fita e tudo e colocou debaixo de uma árvore. Aí ele chamou as crianças e combinou que quando ele dissesse "já!", elas deveriam sair correndo até o cesto, e a que chegasse primeiro ganharia todos os doces que estavam lá dentro.

As crianças se posicionaram na linha demarcatória que ele desenhou no chão e esperaram pelo sinal combinado. Quando ele disse "Já!", instantaneamente todas as crianças se deram as mãos e saíram correndo em direção à árvore com o cesto. Chegando lá, começaram a distribuir os doces entre si e a comerem felizes.

O antropólogo foi ao encontro delas e perguntou porque elas tinham ido todas juntas se uma só poderia ficar com tudo que havia no cesto e, assim, ganhar muito mais doces.

Elas simplesmente responderam: "Ubuntu, tio. Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?" 
Ele ficou desconcertado! Meses e meses trabalhando nisso, estudando a tribo, e ainda não havia compreendido, de verdade,a essência daquele povo. Ou jamais teria proposto uma competição, certo?

Ubuntu significa: "Sou quem sou, porque somos todos nós!"
Atente para o detalhe: porque SOMOS, não pelo que temos...