sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Luís Pimentel - A mesma praça, o mesmo rio


(Uma homenagem à Praça Tiradentes)

Liberino pegou o quentão da Itapemirim, em Capim Grosso, e desembarcou na Rodoviária Novo Rio como uma mão na frente e outra atrás. A de trás escondia a gaiola, embarcada graças à simpatia do motorista, um conterrâneo. O coleirinho era amizade antiga, seu canto o acordava e dava forças, essas razões que o coração desconhece.

A mão da frente enxugava uma lágrima e coçava a cabeça. E foi assim, entre perdido e patético, que o anjo o encontrou. Leu a angústia nas gotas de suor e foi dizendo:

– Bora lá, irmão. Vou te levar pro Paraíso.

O Paraíso era um hotelzinho de placa caída e escadarias sujas, num beco de onde se ouvia o repique do Elite, sentia-se o cheio agridoce das meninas na Estudantina, e apreciava vestidos longos a caminho do João Caetano e bundas de fora na direção do Carlos Gomes. Liberino descansou a gaiola aos pés do Monumento a Pedro I. Contemplava as moças que seguiam pela Rua da Carioca, para ouvir João Nogueira e Moacyr Luz nos Encontros idem, antes do beijo no umbigo da vedete que soprava uma pena pequena no Cinema Íris, quando o Anjo reapareceu:

– Fica esperto, baiano. Foi aqui que enforcaram o Tiradentes!
Não foi ali, mas numa arapuca da Avenida Passos – o que não faz a menor diferença.

Daí a pouco, Liberino já estava no bar A Paulistinha, apreciando a mesa de luxo onde pontificavam Zinho, Manola, Aziz Ahmed, Arthur Rocha e Miranda Jordão. A Gomes Freire ainda não era de Segurança máxima, e na Lavradio imperavam os cabarés de bandidos (do bem); isto muito antes dos botecos dançantes e cantantes de grife, claro. Era ali que Nelson Cavaquinho entornava as últimas antes de embicar, os cabelos brancos nas gramas pretas, rumo aos cafofos da Barão de São Félix, por trás da Central.

Foi amor à primeira vista. Liberino encantou-se com a fauna que Deus põe variada exatamente para que o sol e a lua não briguem. Namorou uma mulher de louça, outra de tromba, amparou um menino que vendia a alma, rezou com uma cigana que não viu o seu destino. Ao fundo, sempre a Praça Tiradentes, Adão e Eva soltando os cachorros nos quartinhos do Paraíso.

Dia desses voltou por lá, para aplaudir Nilze Carvalho no Centro Cultural Carioca, e ficou comovido ao constatar que o progresso nem sempre é ruim; a praça estava um brinco, acha até que ouviu o coleirinho cantando aos pés do imperador. 


quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Cineas Santos - Os muitos timbres das rabecas

Há coisa de cinco anos, o então governador Wellington Dias me falou de um projeto insólito, para dizer o mínimo. Pretendia realizar um festival de rabecas (isso mesmo) na região do médio Parnaíba. Embora não apostasse um níquel na viabilidade da iniciativa, não tentei dissuadi-lo. Aprendi com Millôr Fernandes que “toda palavra de desestímulo é uma má ação”. Deixei que o tempo se encarregasse disso. Um ano mais tarde, recebi o convite do deputado Fábio Novo para participar do Festival de Rabeca do Piauí, em Bom Jesus. Não podendo comparecer ao primeiro, fui ao segundo, em 2009. Para minha surpresa, o festival foi uma das mais belas manifestações culturais que já presenciei. A rabeca era pouco mais que um pretexto para uma festa rica e diversificada. Em vez de ceguinhos tocando toadas tristes, o festival nos propiciou um cardápio generoso: teatro, dança, literatura, gastronomia e música da melhor qualidade. O povo adonou-se do Festival e o mais veio em decorrência.

No início deste mês, voltei a Bom Jesus para a abertura da 4ª edição do Festival de Rabeca. Mais uma vez, surpreendi-me com a pujança do evento que já deveria chamar-se Festival Internacional de Rabeca de Bom Jesus. Lá estavam, além de representantes de 12 estados da Federação, um excelente grupo de gaiteiros de Portugal. Um dos momentos luminosos do festival foi a apresentação da bela e competente Renata Rosa, rabequeira pernambucana com agenda internacional. Acrescente-se a isso a soberba atuação do grupo Clã Brasil, formado por jovens instrumentistas paraibanos. O show de abertura ficou por conta do Peninha que, a exemplo dos bons vinhos, melhora com o passar dos anos.Por quase duas horas, cantou velhas e novas canções com a participação da plateia.

Ao lado das atrações nacionais, lá estavam os rabequeiros conhecidos de todos nós: Joaquim Carlota, Erondino, Pedro da Rabeca, Waldeci , Wanya e tantos outros. Coube ao sanfoneiro-mirim Isac do Acordeom abrir o festival, executando o Hino Nacional brasileiro. Com apenas 8 anos de idade, o pequeno Isac vai-se firmando como uma das estrelas da música piauiense: está em todas.

Para Fábio Novo, responsável pela realização do festival, “Além de resgatar um instrumento que foi largamente usado pelos sertanejos piauienses muito antes do aparecimento da sanfona, o Festival da Rabeca eleva a autoestima da nossa gente, dá visibilidade à nosso cultura e gera divisas para o município de Bom Jesus”.

Depois da festa de abertura do festival, que contou com a presença do governador Wilson Martins e de outros políticos de expressão, o senador Wellington Dias bateu no meu ombro e afirmou: “O próximo passo será a realização de um festival de pífaros no sul do Piauí. Você duvida?”. Decididamente, não. Depois do que vi em Bom Jesus do Gurgueia, estou mais do que convencido: tradição é o que cai no gosto do povo.


domingo, 4 de setembro de 2011

QUE FIM LEVOU ANA MARIA?



Compreendi a dor da solidão depois que os bárbaros tomaram de assalto a nossa casa e levaram a minha prima Ana Maria para um mundo além de nossa imaginação. Nessa hora o sol se escondia atrás do Cruzeiro dos Montes, formando um clarão avermelhado e triste. O Cruzeiro era uma tosca cruz de madeira, fincada no topo do morro mais alto e podia ser vista de mais de légua de distância. Ou, como diziam os primitivos, “até onde o olhar do homem pode enxergar as criações divinas”.

Naquela tarde as galinhas se aninharam mais cedo no poleiro. Os pássaros procuraram abrigo seguro entre as folhagens das árvores que resistiam ao verão inclemente. As cigarras cantaram réquiens metálicos como carpideiras em noite de luto.  Pareciam adivinhar a minha tragédia particular, embora não fossem elas insetos de mau agouro.

Ana Maria era a filha mais nova do meu tio Oduvaldo. Sua casa ficava perto da nossa, menos de meia légua, por isso suas visitas eram constantes, com ou sem companhia. Eram os tempos da inocência, não havia roubo nem violência física. Fomos criados unidos na mesma traquinagem e gozando da liberdade que o campo nos oferecia. Porém, naquela tarde, Ana Maria andava reticente e triste, sem seu riso brejeiro e a espontaneidade inocente da pré-adolescência.

–  Você está esquisita, Ana. Que bicho lhe mordeu?
–  Não sei, Tonico. Estou sentindo uma coisa no peito.
–  Como assim?
–  Minha mãe disse que virei mulher e terei que casar.
–  Casar? Você não tem nem namorado. Quer se casar comigo?
–  Ora! Deixe disso! Somos primos, se esqueceu? Minha mãe disse que primo que casa com prima os filhos nascem aleijados.
–  E como é que os filhos nascem?
–  Não sei. Ouvi minha irmã Maristela comentar que é por entre as pernas, onde a gente faz xixi.
–  E por que tia Florinda disse que você agora era mulher?
– Também não sei. Mas ela disse isso no dia que acordei de manhã e a cama estava empapada de sangue. Me assustei e gritei por socorro. Minha mãe apareceu sorrindo e disse que era o “chico” que tinha chegado e que todos os meses isso ia acontecer, que era coisa de mulher. Depois ficou cochichando com minhas irmãs e, quando meu pai chegou da roça, ela disse assim: “Oduvaldo, Ana Maria virou mulher e já pode se casar”. E ele fez uma cara de satisfação e disse: “Bom, nesse caso vou falar com Malaquias pra marcar a data do casamento”.
–  Malaquias? Quem é ele?
–  Não sei. Nunca ouvi falar.
–  Vamos brincar de pega-pega?
– Vamos. Você me pega primeiro. – disse e saiu correndo pelo terreiro, esquecida que virara mulher e podia se casar. A gente não entendia nada disso. E não queria entender. Tudo ao seu tempo, dizia meu pai. Crianças não precisam entender os problemas dos adultos. Como em Eclesiastes: “Há tempo para plantar e tempo para colher”.  Nosso tempo, embora não estivesse escrito nas Sagradas Escrituras, era só para brincar.

Havia três dias que Ana Maria estava lá em casa sem que eu atinasse o motivo dessa longa hospedagem. Isso só acontecia quando os meus tios viajavam e os meus primos ficavam sob os cuidados dos meus pais. Mas iam todos eles, do menor ao maior, no total de oito. A mais velha era Maristela, com dezessete anos. O mais novo dos homens era Edilson, e tinha uma enorme hérnia no umbigo, lembrando uma laranja de caroço. Havia também: Totonho, Jackson, Regina, Berivaldo e Raimundo, mais conhecido por Mundinho.

Ana Maria era da minha idade: doze anos. Nascemos no mesmo dia e mês. Comemorávamos nosso aniversário na mesma casa para não ter que dividir os convidados. Um ano era na minha, no outro, na sua. Diziam sermos primos-gêmeos.
–  Será que esse ano vem todo mundo pro nosso aniversário? – perguntei
–  Hein?! Ah! sim! Mas ainda está longe.
–  Eu sei. É que não estou aguentando esperar esse tempo todo.
–  A gente devia ter nascido com seis meses de diferença.
–  Por quê?
–  Assim não precisava esperar um ano pra reunir todos os primos.
–  É mesmo.

Nossa conversa fora interrompida por um chamado de minha mãe:

–  Ana Maria, venha aqui experimentar o vestido!
–  Que vestido?! – perguntei.
– O de noiva. Você não sabe que sua prima vai se casar amanhã? Ela está aqui porque estou costurando seu vestido.
–  Eu?! Estou sabendo agora. Não sabia nem que ela tinha namorado.
Ana Maria caiu em soluço. Daqueles três dias, somente naquele momento se dera conta de sua sorte.
–  Não quero me casar não, tia! Fale com minha mãe. Ainda sou muito nova e nem conheço meu noivo. Minhas irmãs são mais velhas que eu, por que não elas? Por favor, me ajude, tia!
Senti minha mãe hesitar. Amarelou penalizada. Abraçou Ana Maria e falou rouca de emoção:
–  Não posso, minha filha! Essa é a nossa sina de mulher. Conforme-se com seu destino e vamos entrar que Oduvaldo vem já lhe buscar.

Ana Maria caminhou trôpega, como se carregasse o mundo nas costas. Sentei-me no avarandado e fiquei matutando, tentando entender o que se passava. Não podia ser verdade. As duas estavam brincando, tentavam me assustar. Só podia ser isso. Diziam que Ana Maria ainda fazia xixi na cama, como era que podia se casar?  

Não queria imaginar a vastidão daquela campina sem as suas alegres peraltices. Desde quando nos entendíamos por gente que brincávamos ali, de pega-pega, peteca, pula-corda. No fim do dia sentávamos no oitão da casa para nos extasiar com o entardecer no horizonte. Como naquele momento, antes de sermos interrompidos pela minha mãe. Éramos crianças felizes e imaginávamos que assim seria para todo o sempre.

O fim veio a galope. Dois cavaleiros apearam à porta. À sombra da quase noite, lembravam dois bárbaros em missão de rapto da princesa na torre do castelo.

–  Ô de casa! Doralice!

Minha mãe saiu segurando a mão de Ana Maria. Ambas choravam.

–  Não me deixe ir, tia! – implorou minha prima.
– Nada há a se fazer, Ana. Você vai se acostumar. É só uma questão de tempo. Oduvaldo, converse com o noivo e peça pra ter paciência. Ana ainda é uma criança.
–  Já conversei, Doralice. Fique sossegada. Vamos, Ana! Antes, se despeça do seu primo Tonico. Esta será a última vez que vocês poderão conversar. Depois do casamento você vai pra longe.

Ana Maria correu ao meu encontro e me abraçou soluçando. Pediu-me para rezar por ela. Disse para eu não me esquecer dos nossos momentos porque eu estaria sempre em suas lembranças, principalmente no nosso aniversário. Montou na garupa do irmão enquanto o meu tio levava com extremo zelo o vestido de noiva. Antes de desaparecer no horizonte, virou-se e jogou um beijo. O primeiro e único de nossas vidas.

No dia seguinte acordei entre soluços. Sentia uma dor no peito, um nó na garganta, uma vontade de sair correndo gritando por ela. Levantei-me e a casa estava em alvoroço. Todo mundo se preparava para o casamento, cada um envolvido em cuidar de sua própria vaidade. Esqueceram-se de mim. Minha mãe levou um susto quando me viu.

– Tonico, você ainda está assim! Corra, vá se aprontar que o casamento é daqui a duas horas e ainda temos que ir pra rua!


A igreja estava enfeitada para o evento. Havia um tapete vermelho estendido até o altar. Chegamos a tempo de nos acomodarmos no banco da frente. Era o primeiro casamento que eu participava e tinha que ser justamente o dela. O mundo não era justo.

A organista dedilhou a marcha nupcial e o povo se levantou em obediência ao comando musical. Todos olhavam numa só direção: a porta da frente e a entrada compassada de Ana Maria. Parecia assustada dentro do vestido de noiva, que me lembrou uma mortalha. Caminhava trêmula, vacilante. Em suas mãos, em vez de um buquê de flores, a boneca de matéria plástica por mim arrematada no último leilão beneficente da igreja. Sua boca, ressecada pela desdita, sufocava um grito de agonia. Ao passar por mim seu olhar refletia a angústia aguda de quem está prestes a selar aliança com o próprio carrasco.