sábado, 8 de outubro de 2011

Maurício Melo Júnior - Andar com fé

Bebíamos cerveja e falávamos de poesia, dois belos exercício para quem mora na aridez do cerrado, sob a sombra imensa dos edifícios feitos de concreto armado e modernidade. Naqueles idos o poeta Cassiano Nunes ainda se dava ao direito de degustar seu campari sem máculas. E ali estávamos entre goles e versos.

Um moço, desses que se equilibram nas desigualdades sociais de uma cidade qualquer, como quem nasce das sombras entra no bar e nos brinda com pequenos panfletos ordinários. Cassiano foi quem deu atenção ao papelzinho, a propaganda de uma brilhante cartomante capaz de desvendar todos os mistérios de nosso futuro e nos guiar para infalíveis dias melhores. “Não posso acreditar numa coisa dessas”, sentenciou o poeta, e nos contou o porquê.

Ele morava ao lado da casa de uma dessas videntes. A moça vivia à tripa forra, com carro de luxo e alto bem-estar social. Lendo na varanda, deitado em sua rede, o poeta, já aposentado como professor universitário, podia ver a romaria cotidiana à casa da vizinha. Isso de segunda a sexta, posto que, nos finais de semana, funcionária metódica, ela se dedicava às lidas domésticas e ao descanso. E foi num desses dias que ela pôs para secar nas grades de sua casa um imenso tapete. Fim de tarde, finda a faxina percebeu que alguém mais experto levara seu tapete. E Cassiano nos lembrava: “Se ela é capaz de adivinhar o futuro, como não previu que um ladrão passaria em sua porta?”

Verdade. Talvez o ofício destas moças seja mesmo o de se valer da ilusão alheia, da fé que transporta tanta gente, como Nazaré, uma doméstica que arrumava a bagunça de nosso tempo de estudante no Recife. Morávamos em Afogados em uma casa de muro baixo, como então era comum. Voltando do colégio, com relógio batendo quase uma da tarde, encontrei a moça conversando com alguém no portão. Atarantado com o excesso de livros que carregava, sempre uma cota bem além do que me exigia os professores, entrei formulando os cumprimentos de praxe. Fui tomar banho e sai do banheiro com os gritos escandalosos de minha irmã: “Como você fez uma besteira dessa?” Nazaré dera todo seu salário à mulher que prometia tirar dela um encosto que a estava levando a se envolver com um homem casado, o que desgraçaria de vez a sua vida.

Os pressupostos da fé sempre a dominar a esperança.

Outros encontros tive com estes mistérios.

Jornalista de ofício, cobria a movimentação de uma feira de livro em Brasília. Num almoço com os autores convidados, a poeta Hilda Hilst confessou-me que justo naquele dia da semana ela, como de praxe, precisava consultar um desses oráculos. E, claro, queria minha ajuda, já que não conhecia nenhum mago da cidade, a mesma situação em que me encontrava. Apelei para uma amiga que escrevia uma coluna esotérica no jornal e que me passou o telefone de uma certa Tia. Liguei do restaurante mesmo e deixei tudo acertado para o encontro. E Hilda me faz mais um apelo: “Você vai comigo?” Fui.

Pelo caminho a poeta contou-me de sua pouca intimidade com a fortuna. Nascera numa família de posses, mas o tempo se encarregou de levar tudo, inclusive sua intensa beleza física. Foi uma moça longilínea, elegante, de riso largo e olhar marcante, vivo. Belíssima, recebeu incontáveis propostas de casamento, mas dedicou-se aos namorados, como Vinícius de Moraes e o ator Dean Martin. E em Paris, solitária em um bar, foi assediada por um senhor de modos determinantes. Convencido do insucesso de suas investidas, o homem quebrou o copo em que bebia uísque, pagou a conta e se foi para sempre. Era Howard Hughes, então o homem mais rico do mundo. 

Minha amiga não tinha intimidades com a fortuna, e por isso estávamos ali, na morada da Tia, um apartamento pequeno e recheado de coisas, uma atmosfera pesada, opressiva. Fiquei na sala enquanto Hilda foi se consultar no quarto. Saiu impressionada. E aí a vidente se volta para mim: “Preciso lhe dar um passe.” Desconversei, mas novamente não resisti aos apelos da poetisa. E então fui banhado com um perfume fortíssimo e de cheiro terrível. No final recebi a sentença: “Você está destinado a um futuro brilhante, mas há um problema em sua vida. Sua mulher. Você precisa se separar para cumprir seu destino de sucesso.” Mas naquele instante meu único interesse era chegar em casa e tomar um bom banho.

Impressiona-me a capacidade de manipulação de vidas dessas videntes, dessas pessoas que simplesmente brincam de dados com o cabedal de crenças de cada um.

Há toda uma indústria de vendas de esperanças, sobretudo nestes espaços milenaristas em que vivemos. Depois de um século tecnológico, onde as máquinas ditaram o ritmo das vidas, ficamos carentes de mistérios. E daí a enxurrada de magos e videntes.

É certo que a fé ajuda a sustentar os homens nos seus princípios éticos. “A fé não costuma faiá”, nos diz Gilberto Gil. Pena que todos os seus benefícios sejam esquecidos e sua força seja usada para manipular vidas e rechear bolsos espertos. 

Como não creio que qualquer homem possa saber do futuro de outro e também tenho por princípio cuidar de minha própria vida, não me separei até hoje, contrariando a sugestão da Tia. Não sei se fiz certo ou errado, certeza mesmo é que me sinto muito feliz com minha escolha. Não foi desta vez que me roubaram o tapete. E assim prossigo, com fé na vida.


quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Cineas Santos - Tempo quente

Dileta amiga, sempre atenta às questões ambientais, postou no facebook uma pergunta que, de tão óbvia, dispensaria comentários. “Teresina está mais quente do que nunca?”. A resposta até as pedras sabem. A despeito disso, choveram comentários curiosos. Alguém sugeriu que a solução seria mudar-se para a serra, “Viçosa, talvez”. Um outro argumentou que “o problema se chama Suzano”. Não faltou quem apelasse para o humor: “Não sei responder porque o calor cozinhou meu cérebro”. Até aí, nada de extraordinário: o face é o local onde se descascam abobrinhas sem medo do ridículo. A questão é outra. Nenhum dos “comentaristas” nem sequer tocou na questão essencial: a destruição da cobertura vegetal da cidade. Consta que, ao sobrevoar Teresina na década de 30, o escritor Coelho Neto, impressionado com a exuberância do verde, teria agraciado a cidade com o título de “Cidade Verde”. Os teresinenses tomaram o elogio como ofensa e resolveram reduzir tudo a cinza. “Progresso se faz com trabalho e concreto”, afirmou um prócer da urbe.

Ainda não se fez um levantamento do número de árvores que se cortam diariamente em Teresina. Posso assegurar-lhes que é algo impressionante. Eliminam-se as árvores sob os mais diversos pretextos: “sujam os quintais” , “racham as calçadas”, “encobrem as fachadas”... É preciso que se diga: os gestores têm grande parcela de culpa nisso tudo. Até hoje não se fez um projeto sério de arborização da cidade. O que tivemos, até agora, foram “tendências”. Assim, houve o momento das algarobeiras, das acácias, do algodoeiro, do fícus. Agora, é vez do neen. Ora, o verde de Teresina sempre esteve concentrado nos quintais que, como era de se esperar, não resistiram à gula da especulação imobiliária. Onde ontem existia um quintal (recoberto de mangueiras e cajueiros), hoje rebrilha um edifício de linhas modernosas ou se esparrama um supermercado como nome chamativo. Na periferia da cidade, o chamado “cinturão verde” foi engolido pelas favelas, rebatizadas com o nome de “vilas”. A equação é simples: menos árvores, mais calor.

Para piorar a situação, a Prefeitura resolveu investir pesado no asfaltamento das ruas, notadamente na zona leste onde, supostamente, moram os “formadores de opinião”. Acrescente-se a isso o volume de veículos trafegando nas ruas, os aparelhos de ar-condicionado, as queimadas... 

Sem querer ser pessimista, recorro ao velho Millôr para deixar uma sugestão à dileta amiga que se queixa do calor de Teresina: “Se está ruim, aproveite; amanhã, pode estar pior”.


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O matador do matador de aluguel - A revanche de Luís Pimentel

A PEDRA NO CAMINHO
(Cordel de uma peleja)

Se o papel aceita qualquer coisa,
cada um escreve o que bem quer.
Falcatrua, parolas, coisa e lousa,
e até mexerico de muier.
Mas daqui do ninho onde a verdade pousa,
só conto história como a história é.

Eu estava mesmo na porta do estádio
vendendo uma a uma minhas laranjinhas,
quando chegou gritando pelo rádio
o bando feroz de Alagoinhas.
Se em campo o Touro do Sertão gemeu,
fora dele foi a Feira de Santana que tremeu.

Hoje digo ao amigo Seu Tom das Quebradas,
que fiquei de fora naquela algaravia.
Não fui o autor da bíblica pedrada,
pois eu sou até torcedor do Bahia!
Mas mesmo reconhecendo que são pedras passadas,
acho que o alagoinhense de então merecia (pela ousadia).

Agora, ao reencontrar o bravo atleticano,
mandando chover nas águas das Alagoas,
proseando, cantando e flimareando,
levando a vida assim tão numa boa,
me pergunto para que ficar lembrando
de uma pedrinha no caminho (ou na cabeça) tão à toa?

Eu festejo no entanto é o reencontro
que me deu de verdade tanta emoção.
Que sensibilizou ponto a ponto
esse filho distante de Gavião.
Que acertou no Tom, sem desconto,
e ganhou mais um verdadeiro irmão.


domingo, 2 de outubro de 2011

Salgado Maranhão - Outdoor

Do Velho Ancião (Cineas Santos) recebi abaixo:

"Irmãos e irmãzinhas: é uma alegria ver a face de um poeta estampada num outdoor, onde normalmente se anunciam bens de consumo, nem sempre recomendáveis. A alegria é ainda maior se o poeta for Salgado Maranhão, uma das vozes mais lúcidas da moderna poesia brasileira. Viva Caxias, que ama os poetas que tem. Uma semana luminosa para todos.

LUNAR

A cara da lua
está partida ao meio,
feito um queijo ruído;
meu coração também
vive partido
- à míngua:
de amar como quem se afoga,
de amar como quem se vinga.

(Salgado Maranhão - A Cor da Palavra - Ed. Imago - BN)"