sábado, 22 de outubro de 2011

Edna Lopes / Audálio Dantas - Início da festa / De volta pra casa


De Abertura da V Bienal do Livro de Alagoas

Um evento em torno de livros é festa e trabalho. Uma festa de palavras, de imagens que traduzem visões de mundo, de divulgação de ações e de trabalhos que corporificam o interesse e a paixão pelo livro e seu entorno.

Um evento desse porte e nível não é só oportunidade para que editores façam bons negócios e autores mostrem o que produziram e produzem, mas é oportunidade de encontros e reencontros, de se ouvir quem pesquisa, quem poetisa a vida, quem proseia refletindo o vivido, quem dá a notícia e quem fotografa o cotidiano e o traduz, em prosa e em verso.

Um evento assim é mesmo uma festa. E, para provar, mostro algumas fotos e digo que dá tempo de aparecer por aqui, pois a Bienal começou ontem, 21, e vai até o dia 30.

Segue um texto feito a meu pedido por Audálio Dantas, jornalista e escritor alagoano, patrono da Bienal, para publicação no jornal produzido pelo SINTEAL.


De volta pra casa


Voltar à terra, aos velhos pastos, é sempre um grande prazer. Lembro-me de meu tio Alcebíades, que chamávamos Arcebílio, que transportava cargas de rapaduras de Chã Preta para Canudos (hoje Belém), onde mantinha uma espécie de central de distribuição para abastecimento de feiras vizinhas. Uma delas era a de Tanque d´Arca, que tinha fama de ser boa.

Arcebílio vinha pelo caminho de dentro, que transpunha a serra, um atalho. Se viesse pela rodagem, precisava dar um arrudeio de mais de duas léguas. Valia o esforço de subir e descer ladeiras, mesmo porque quem penava era o burro carregado de rapadura, que vinha tangido pelo dono, este no conforto do cavalo de sela.

Lembro o tio Arcebílio porque ele contava que tanto o burro quanto o cavalo faziam corpo mole na ida pra feira, mas quando voltavam, no final do dia, nem precisavam de relho ou chicote para que trotassem avexadinhos.

No caso do burro, poderia ser pelo alívio da carga, visto que as rapaduras tinham sido vendidas, mas e o cavalo, que voltava com a mesma carga, levando no lombo o mesmo peso da viagem de ida, ou seja, o tio Arcebílio escanchado na sela, todo ancho?
-– Ah – dizia o tio Arcebílio –, é que bicho tem ciência!
E explicava:
– Cavalo – ele dizia carralo – conhece quando tá voltando pro pasto. Fica assim avexado, dana-se até pra correr.

Lembro a historinha porque estou de volta às Alagoas. Faz muito tempo que vim fazer a feira aqui em São Paulo e, sempre que posso, dou um jeito de voltar. Por mais que tenha corrido mundo (já andei por américas, europas, ásias, áfricas, franças e bahias), essas voltas me dão uma gastura boa. Tem vez que até sinto antecipado cheiro de mato, de fruta, de flor de gitirana, umas que davam na beira do caminho de dentro por onde o tio Arcebílio viajava, um caminhozinho todo torto que pulava as aguinhas dos riachos da serra (digo isso porque vi, admirei, num dia em que ele me levou na garupa do cavalo).

Pois é, daqui a uns dias estarei de volta a esses velhos pastos. Será uma volta diferente de muitas outras. Gente amiga, importante, aí da terra, decidiu me prestar homenagem. De repente, virei um alagoano ilustre. Tanto que me honraram com o título de patrono da V Bienal Internacional do Livro de Alagoas. Fiquei até meio abestado com a honraria.

Não é pouca coisa. Já vi uma dessas bienais, a quarta, e fiquei impressionado com o capricho com que foi organizada. Patrocinado pela Universidade Federal de Alagoas, o evento nada fica a dever a outros do gênero, bem mais antigos, que se fazem no País. Seu sucesso se deve ao empenho da Reitoria da Ufal, conduzida pela profª Ana Deise, e à teimosia da profª Sheila Maluf, que é da espécie de gente que enquanto descansa carrega pedras.

Pois estarei aí de volta, no dia 21, quando a Bienal será inaugurada. Vou todo ancho, cheio de "patronice".


domingo, 16 de outubro de 2011

Dedicatória de grego

Ela não era a Amélia de verdade. Não nos termos imortalizados nos versos de Mário Lago e Ataulfo Alves, a Amélia paciente, contrita e asceta, que passava fome e ainda achava engraçado não ter o que comer.

Essa Amélia da qual vos falo vivia longe do burburinho do samba, não era anoréxica e nunca me disse “Meu filho, que se há de fazer?” quando me via contrariado. Para ser sincero, ela nunca me viu acabrunhado com apreensões temporais; não porque eu viva no mundo da Lua, sem preocupações aparentes nem dívidas a pagar, mas pelo simples e único motivo dos nossos caminhos nunca terem se cruzado. Mas nem de longe essa Amélia é uma figura de linguagem ou uma retórica sentimental.

A existência de Amélia é tão certa quanto o amanhecer do dia a cada manhã. Ela entrou na minha vida pela dedicatória de um livro de poesias de um autor amazonense, cujo nome me dou o direito de não declinar para não ser motivo de crime passional, vez que, pelo escrito na noite de autógrafo, a paixão era forte e o “tesão” mais ainda, porém, pelo andar da carruagem, tudo leva a crer que o romance foi desfeito e a tal musa inspiradora colocou sua preciosa prenda à venda em um balaio na porta de um sebo em Manaus. 

Já li tantos livros depois que deixei de ser analfabeto que às vezes confundo as obras do Mestre Picasso com outra coisa e, por esse motivo, meus cinco leitores haverão de perdoar o meu lapso de memória momentâneo: um cronista das minhas preferências juvenis uma vez escreveu sobre o achado nas prateleiras de um sebo. Ele era daqueles que tinham a mania de vasculhar os sebos da sua cidade e em um deles encontrou um livro seu com a dedicatória a alguém de suas relações pessoais. Comprou o dito cujo e reenviou ao amigo com um bilhetinho preso à capa dizendo compreender a necessidade financeira que o mesmo passou a ponto de precisar vender seu presente e que, por causa disso, arrematava o livro e devolvia ao seu legítimo dono. Ou coisa mais ou menos assim e que já faz tantos anos que li essa crônica que me admiro de ainda me lembrar da história.

Edna, a minha cara-metade que jamais venderia um livro a um sebo, com ou sem dedicatória, foi quem trouxe o livro de Manaus e a especulação devida sobre os motivos da Amélia ter se desfeito de tão preciosa prenda. Será que ela se zangou pelo “tesão” explícito da dedicatória porque ela era uma mulher comprometida e não podia se expor numa vitrine qualquer ou simplesmente o tal tesão dispersou-se nas águas escuras do Rio Negro?

Pelo sim, pelo não, Amélia deve ter gostado da dedicatória, mesmo sendo ela uma convicta evangélica, dessas que não depilam as pernas e só fazem sexo apenas para procriar, tal qual escrito nas Sagradas Escrituras. Mas, cutucando a vaidade feminina com vara curta, qual mulher não gosta de se achar um tesão ante o olhar masculino, ainda mais na terra em que o boto impera e reina nas mil e umas noites? 

Por outro lado, como o autor escreveu “tesão” com “z”, e somente Tânia, Tereza, Tiana, Tainá ou qualquer outra principiada com “tê” poderão ser “Tezão”, Amélia pode ter se desgostado com o erro crasso de Português logo na única página em branco dedicada a ela e temeu encarar o que estava por vir entre as páginas mal traçadas daquele livro. Como toda mulher de caráter, decidiu que não leu e não gostou daquele livro e deu uma destinação nada honrosa àquele que não soube discernir entre um “tê” grande e os tais desejos sexuais.

O livro, tecendo loas às frutas amazonenses, não frutificou no relacionamento amoroso entre o poeta e a musa que não tem nome de fruta e que, talvez por esse motivo, deixou de ser desfrutável. 

Apesar do imenso rio margeando a cidade de Manaus, já dizia a minha avó: quem nasce para lagartixa nunca chega a jacaré.