sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Cineas Santos - Chuvas Amorosas

“Nas mãos do vento as chuvas amorosas
vinham cair nos campos de dezembro,
e de repente a vida rebentava
na força muda que as sementes guardam.” 

Tivesse escrito apenas estes quatro versos, Dobal já teria deixado, entre nós, a marca da sua presença luminosa. Para um habitante das regiões sul ou sudeste do Brasil, este punhado de versos talvez não diga nada; para quem vive, padece e morre no sertão nordestino, é pouco menos que o anúncio de uma epifania. Com alguma frequência, surpreendo-me recitando esses versos como se fossem um mantra. Tenho minhas razões. Onde nasci – sertão do Caracol – chovia bem menos que o necessário. Menino, eu gastava parte do tempo disponível à caça de alguma nuvem tresmalhada na vastidão do céu. Sobrou dessa experiência inútil o gosto pelo azul que me encharca a alma. Como dependíamos da chuva para sobreviver, aprendíamos, muito cedo, a buscar os seus sinais em todas as coisas: na agitação das formigas e dos cupins; na floração dos mandacarus; na posição do ninho do João-de-barro. Mas, de todos os sinais, o que efetivamente nos enchia de certezas e de alegria era uma chuva, chuvisco que fosse, no Dia de Finados. À época, sobreviver no semiárido exigia alguma sabença.

            Ler os sinais da chuva era uma das habilidades do meu pai, um sertanejo perfeitamente integrado ao seu chão. Seu Liberato sabia tirar da terra o que a terra lhe podia dar, sem exauri-la. Era um homem sem transbordamentos: nunca o vi eufórico nem colérico. Ainda assim, quando chovia, notadamente à noite, era bom vê-lo sentado num velho banco de madeira, pitando seu cigarro de palha, esfregando as mãos e balançando a cabeça afirmativamente. Se a chuva se fazia mais intensa, levantava-se, ia até a porta e afirmava categórico: “É geral!”. Para nós, a sentença era inquestionável: estava chovendo no mundo inteiro. E, efetivamente, estava, uma vez que o nosso mundo não ia além dos limites das nossas roças. Um mundo pequeno onde só cabiam pequenas alegrias.

            Um dia, transplantaram-me para uma cidade hostil onde passei a me sentir um estranho entre estranhos. Com o tempo, percebi que jamais me tornaria um citadino. Hoje, o sertão que ainda me habita se manifesta, às vezes, com tamanha intensidade que mal consigo resistir à tentação de abrir mão do que (não) tenho na cidade para reaver a gleba onde nasci. O problema é que Campo Formoso já não existe; não passa de uma metáfora boiando na memória. Tivesse menos idade, eu voltaria para reinventá-lo e gastaria o que me restasse de vida lidando com a terra e os bichos miúdos... Infelizmente, trata-se de uma empreitada grande demais para as minhas forças. Talvez eu ainda retorne ao Campo Formoso, mas como adubo, o que seria muito natural: afinal de contas, homem e húmus provêm da mesma raiz.
             

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Luís Pimentel - Wilson Batista - Samba e malandragem

Nota do blog: em 1935 Noel Rosa e Wilson Batista se digladiaram musicalmente, enriquecendo a nossa MPB. Em 1956 a Odeon registrou essa polêmica na voz de Roberto Paiva (Wilson Batista) e Francisco Egydio (Noel Rosa). Em 1999, em show dedicado a Noel Rosa, Henrique Cazes e Cristina Buarque de Holanda colocaram no repertório essa polêmica. Se você gosta da MPB, eis a grande oportunidade de conhecer um pouco dos bastidores na criação da nossa Música Popular Brasileira. O show de Cazes e Cristina foi registrado em disco com o nome Sem tostão 2... a crise continua - Canções de Noel Rosa. Em 2001 foi lançado em cd.



O Rio de Janeiro já hospedou, em tempos idos, alguns malandros de renome, a maioria com livre trânsito no mundo da música. Basta citar Valdemar da Babilônia, João Cobra, Mané da Carretilha, Nina do Estácio, Brancura, Gaguinho Bicheiro e Madame Satã. Este último, tão próximo viveu de artistas, compositores e cantores, que veio a ser mais tarde acusado de provocar a morte do sambista Geraldo Pereira (1918-1955), após uma briga de bar na Lapa. Madame Satã não negava o imbróglio, pelo contrário. Gabava-se da façanha, por pura malandragem.

Mas entre os compositores, praticamente não havia malandro. Neguinho ralava (como rala até hoje), e muito. A honrosa exceção deve ser feita a Wilson Batista. Apesar de carioca por adoção, Wilson nasceu em Campos, em 1913. Adolescente, desembarcou no Rio de Janeiro para morar com um tio, no subúrbio. Pressionado pelos parentes, que queriam a todo custo empregá-lo numa oficina mecânica, saiu de casa e foi morar sozinho nas proximidades da Lapa, onde logo começou a frequentar a vida noturna, fazendo amizade com figuras conhecidas e respeitadas na “área”, como Madame Satã, Jorge Goulart, Boi (um misto de porteiro e leão-de-chácara dos cabarés), Ataulfo Alves e Miguelzinho Camisa Preta, entre outros mais ou menos votados.

Autor de sambas geniais como Nega Luzia (“Lá vem a Nega Luzia/No meio da cavalaria/Vai correr lista lá na vizinhança/Pra pagar mais uma fiança/Foi calibrina demais/Lá no xadrez ninguém vai dormir em paz”), Mundo de zinco, Chico Brito (“Lá vem o Chico Brito/Descendo o morro na mão do Peçanha”), Samba rubro-negro (“Flamengo joga amanhã/Eu vou pra lá/Vai haver mais um baile/No Maracanã/O mais querido tem Rubens, Dequinha e Pavão/Eu já rezei pra São Jorge/Pro Mengo ser campeão”) e tantos, tantos outros, Wilson Batista encarnou como ninguém o espírito malandro carioca, passando a vida a complementar os minguados trocados dos direitos autorais com os chamados “pequenos expedientes”: venda de samba, cafetinagem, empréstimos jamais honrados, trambiques e aprontos de toda espécie. Vivia literalmente na malandragem, de corpo e alma. Seu espírito, sua linguagem e brincadeiras procuravam reproduzir as gírias e as emoções dos grandes malandros de sua época, a quem ele tanto admirava.

Wilson viveu várias polêmicas em sua vida atribulada: com “comprositores” que lhe compraram sambas e não quiseram pagar, com mulheres e com traficantes de quem, no fim da vida, comprava drogas na ilusão de aliviar a angústia provocada pelo esquecimento profissional. A mais importante foi a polêmica com Noel Rosa, já registrada em disco. Wilson compôs um samba chamado Meu chapéu de lado (“Meu chapéu de lado/Tamanco arrastando/Lenço no pescoço/navalha no bolso”), Noel rebateu com Rapaz folgado (“Deixa de arrastar o teu tamanco/ Pois tamanco nunca foi sandália/.../E guarda essa navalha/Que só te atrapalha”) e o zunzunzum começou, com a produção de belas canções como Feitiço da Vila, Conversa fiada, Palpite infeliz e Terra de cego.

Como a grande maioria dos malandros, e boa parte dos artistas que fizeram o prestígio da MPB, Wilson Batista morreu na miséria. Consumido pela droga, o álcool e a depressão, lesado pelas sociedades arrecadadoras de direitos autorais e abandonado pela maioria dos amigos. A chama se apagou no dia 7 de julho de 1968, numa enfermaria coletiva do Hospital Souza Aguiar, no Rio de Janeiro. Mas está por aí, pois qualquer malandrinho de porta de tinturaria sabe: quem samba fica.




segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Altamir Tojal - A USP e a isonomia na impunidade

Não bastassem o espetáculo grotesco do ministro Carlos Lupi peitando a presidente da república e o STF ter empurrado com a barriga a Lei da Ficha Limpa, a crônica da corrupção no Brasil surpreende mais uma vez, agora com o princípio da isonomia na impunidade, evocado por pais de alunos da USP que invadiram a reitoria. A lógica é a seguinte: se políticos corruptos não são punidos, porque os estudantes têm de ter punição?

Este é o ponto em que estamos. Quando a gente imagina que não vai se surpreender com mais nada, tem de ouvir um argumento desses, uma espécie de direito adquirido à impunidade, mais um tributo à generalização da corrupção e à vergonhosa complacência, omissão, conivência e aplauso de governantes, parlamentares, juízes e poderosos em geral.

Como não param de roubar, a gente também não vai parar de protestar. Estão anunciadas manifestações anticorrupção em dezenas de cidades nesta terça-feira, 15 de novembro, Dia da Proclamação da República. No Rio estão programados três atos: 10h – na Favela de Mandela, Complexo de Manguinhos; 15h – na Cinelândia; e 15h – em Copacabana, Posto 4.

As manifestações são pela aplicação imediata da Lei da Ficha Limpa, cujo julgamento está em curso no STF, pelo voto aberto no Congresso Nacional, pelo limite à imunidade parlamentar e pelo aumento das penas e agilização dos processos de corrupção na justiça.

Um tema específico para o Rio de Janeiro é o apoio à aprovação da Lei da Ficha Limpa estadual, que entra na pauta de votação na Alerj nesta quarta, dia 16. Trata-se da PEC 5/2011. É preciso, portanto, por pressão nos nobres deputados. Há também o Projeto de Lei 902/2011, que ficou engavetado um tempão e parece que recomeçou a andar agora.

Antes que zoem de mais atos anticorrupção num feriado, vale lembrar que a maioria dos manifestantes tem de ralar nos dias úteis. É gente que não tem ponto abonado para protestar nem subvenção do governo, nem boquinha em ong fajuta. Aliás, zoar das manifestações contra a corrupção é coisa de quem não tem o que fazer ou de quem tem rabo preso.

Segue o convite do Movimento 31 de Julho:

ATO ANTICORRUPÇÃO: 15 DE NOVEMBRO, 15 HORAS, COPACABANA

Será realizada nesta terça-feira, 15 de novembro, Dia da Proclamação da República, manifestação contra a corrupção e a impunidade em Copacabana, Rio de Janeiro. O ato, organizado pelo Movimento 31 de Julho, está programado para as 15 horas, no Posto 4, Avenida Atlântica, em frente à Rua Constante Ramos.

A manifestação será pela aplicação imediata e integral da Lei da Ficha Limpa, cujo julgamento está em curso no STF, pelo voto aberto no Congresso Nacional, pelo limite à imunidade parlamentar e pelo aumento das penas e agilização dos processos de corrupção na justiça.

O ato contará com a presença de representantes de movimentos anticorrupção e pela valorização da cidadania e terá apresentações de hip hop e de uma coreografia, que foram criados especialmente para a manifestação.
Caso chova, a manifestação será transferida automaticamente para domingo, 20 de novembro, no mesmo local e horário.

O Movimento 31 de Julho apoia as demais manifestações anticorrupção programadas na cidade no dia 15 de novembro, como os atos em Manguinhos às 10h e na Cinelândia, às 15h.

Outras informações:
Marcelo Medeiros:
21-8165-4444
movimento31dejulho@gmail.com
www.movimento31dejulho.blogspot.com