sábado, 25 de fevereiro de 2012

Com quantas coivaras se queima um cristão?


Deu nos noticiários de ontem que um iraniano recebeu pena capital porque trocou o islamismo pelo cristianismo. Não se sabia se ele já havia sido executado ou não, mas disseram que lhe foi dada a chance de viver em paz caso trocasse a Bíblia pelo Alcorão. O Vaticano, às voltas com o ateísmo crescente e a dispersão de católicos para os seguidores de Lutero e outras seitas, não vai poder transformar o iraniano em santo e sair no lucro perante o mundo dos infiéis porque, dizem, Edir Macedo chegou na frente: o mártir religioso em questão é (ou era) evangélico.

Nessa intolerância religiosa, sorte assim só foi dada a Galileu Galilei que, diante da fogueira santa, teve a chance de salvar o seu lindo pescoço: bastava tão-somente negar e renegar a sua invenção que comprovaria a teoria heliocêntrica de Copérnico. No mais, faltou lenha para se queimar judeus, ciganos e gentios. Até o início dos anos setenta do século passado os padres mandavam e desmandavam na política partidária do sertão nordestino e ai de quem não votasse no candidato apresentado por eles.

Uma das principais avenidas de Maceió chama-se Fernandes Lima. Quem visitou Maceió, alguma vez na vida, transitou por ela, pois faz ligação do aeroporto ao Centro.  Fernandes Lima vem a ser o político que liderou o mais violento movimento de intolerância religiosa em Alagoas e que é considerado, por alguns historiadores, um dos maiores do Brasil em matéria de intolerância, arrogância e preconceito. Ele chefiava a Liga dos Republicanos Combatentes, algo assim como uma liga de skin heads e neonazistas, composta por políticos e militares, e na noite de 1º de fevereiro de 1912 invadiu os terreiros de candomblé, umbanda e outras religiões de matrizes africanas no estado, promovendo uma longa noite de agonia e terror: os terreiros foram destruídos e os que neles se encontravam foram presos e espancados até o amanhecer do dia. Essa data foi escolhida a propósito porque era véspera do culto e oferendas a Iemanjá, a mãe dos orixás. Essa negra noite ficou conhecida como “Quebra de Xangô” ou “quebra-quebra dos terreiros”.

Mas alguém haverá de dizer que exatamente a um século atrás a nossa compreensão religiosa estava além das trevas medievais. Mas não é bem assim quando se trata dos deuses negros. Até meados do século vinte a intolerância religiosa era clara e explícita por parte dos governantes, que mandava a polícia baixar o sarrafo no lombo dos seguidores dos orixás. Três anos atrás o prefeito de Salvador, evangélico militante e praticante, mandou derrubar os terreiros da cidade, e só não logrou êxito porque, quando caiu o primeiro terreiro, a sociedade civil organizada resolveu dar um basta nas pretensões arrogantes e preconceituosas do prefeito.  

No dia 8 de dezembro do ano passado, dia também dedicado a Iemanjá por alguns terreiros, o prefeito de Maceió, que nos últimos anos se diz representante de Deus, limitou as manifestações das afro-religiões na praia da Pajuçara, local onde os pais e mães de santo fazem oferendas à rainha do mar. Com a desculpa esfarrapada de não perturbar os moradores no outro lado da avenida, batuques e danças foram proibidos e a alagoanidade nagô só poderia circular na praia até as dezoito horas. Na semana seguinte a avenida foi liberada para trios elétricos, baterias de escola de samba e outras bandas desafinadas, varando a madrugada e que só acabou na quarta-feira de cinzas. 

Mas, o estranho de tudo, é que, além duma pequena manchete na televisão local, foi silêncio total, quase sepulcral. O atuante movimento negro, composto de líderes falantes e algumas vezes berrantes, ensaiou uns protestos isolados contra a intolerância explícita do prefeito. Nenhuma nota de repúdio nos jornais, nenhuma entrevista em rádio, nenhuma ameaça de processo por discriminação religiosa do alcaide. Os terreiros silenciaram ante a opressão oficial e os seus seguidores esvaíram-se nos seus guetos ante o poder de fogo do Deus branco, porque aqueles que tinham a voz para fazer barulho de trovoada, apenas choveram no molhado das conveniências, uma garoazinha que não faz marola, e tudo continuou como dantes no quartel de Abrantes, porque navegar é preciso, mas sobreviver politicamente é uma questão fundamental.

Saravá, meu pai!

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Homenagem a Antonio Rezk no Memorial da Resistência - SP


Lançamento de livro e vídeo marcará o evento, no dia 3 de março.    

Será lançado no próximo dia 3 (sábado), a partir da 14 horas, no Memorial da Resistência (Largo General Osório, edifício do antigo Dops), o livro Ruptura – Onomia na civilização do trabalho, de Antonio Rezk.

Além do lançamento do livro, uma edição póstuma, seu autor, falecido em 2005, será homenageado por sua importante atuação política na luta de resistência  contra a ditadura militar. Participarão de um debate ex-colegas parlamentares que com ele atuaram na resistência democrática. Em seguida será exibido um vídeo sobre a trajetória de Rezk, que se destacou não apenas pelas atividades políticas e sociais, mas como pensador e autor de vários livros e fundador, juntamente com outros intelectuais, de importantes entidades de estudo e pesquisa, como o MHD – Movimento Humanismo e Democracia, e o Ipso – Instituto  de Pesquisas e Projetos Sociais e Tecnológicos, do qual foi presidente. Foi também vice-presidente da UBE – União Brasileira de Escritores.

A trajetória de Rezk

Formado em Estudos Sociais, Antonio Rezk desenvolveu um intenso trabalho de organização comunitária no início dos anos 1970, fundando dezenas de associações de bairro em São Paulo, as quais reuniria, depois, em conselhos municipal e estadual. Foi eleito vereador para a Câmara Municipal de São Paulo em 1975, pelo MDB (Movimento Democrático Brasileiro) e depois, em 1978, deputado estadual por dois mandatos consecutivos. Com a redemocratização do país, participou ativamente da reorganização do PCB (Partido Comunista Brasileiro), cuja Comissão Executiva Nacional passaria a integrar. Ocupou, de 1987 a 1989, a presidência do Diretório Estadual do Partido em São Paulo.  
    
As grandes transformações que ocorreram no mundo, principalmente com o advento da globalização da economia e suas implicações no mundo do trabalho, levaram-no a se dedicar ao estudo e ao debate da questão, sobretudo o desemprego causado, entre outras razões, pela intensificação da aplicação da tecnologia na produção.

O sociólogo Levi Bucalem Ferrari registra, no prefácio do livro Ruptura: “Num primeiro momento (Rezk), pesquisa intensamente tudo que diz respeito a: o impacto da tecnologia no mundo do trabalho; o aumento da produtividade individual e consequentemente da mais-valia relativa; o desemprego estrutural; suas consequências sociais e individuais; a previsível crise da “civilização do trabalho”; e a resultante anomia provocada pela ausência de normas e valores mais consentâneos com as novas realidades”.

O deputado Adriano Diogo, um dos organizadores do evento, acrescenta na apresentação do livro, que seu fio condutor “é a história do trabalho no mundo e no Brasil”.

Mais informações:

Audálio Dantas/Vanira Kunc – comunicacao@audaliodantas.com.br
Tels. (11) 9628-7443 e 3865-2502

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Manolo Ramires - Big Ben Brasil


Outro dia recebi a visita de um inglês com aquela mania de pontualidade. Porque os ingleses são assim: gostam de tudo girando no horário deles. É o café da manhã, o almoço e o jantar, sem se esquecer do chá das cinco, passando pelo rigor do início e fim da reunião. É o jeitão que muita gente tenta imitar enquanto que os chineses levam a grana. Afinal, aos suíços, do relógio, a fama, e aos chineses, da produção, a réplica.

Comércio de bugigangas à parte, descobri com esse inglês que o brasileiro também gosta de pontualidade. Essa revelação surgiu durante um almoço de domingo. Quando perguntaram a hora, houve três respostas diferentes:

- Doze horas e trinta e cinco minutos exatos – disse um.
- No meu são doze e trinta e sete.
- Aqui tá marcando doze horas e trinta e nove minutos, mas eu sempre adianto cinco minutos do soninho. 

A diferença nos números levou à necessidade de checar qual o horário correto. O objetivo era não decepcionar o amigo britânico. Olhamos os relógios eletrônicos da cozinha - parede e fogão – que divergiam nos minutos. Em seguida, os aparelhos de TV e DVD. Estes apresentavam horários sincronizados, porém diferentes dos relógios das pessoas presentes. Por isso, para tentar acabar com a divergência, pois o almoço já estava atrasado, olhou-se no contador de horas do canal da BBC, tomando o cuidado para acertar o fuso horário. Big Ben. 

Tirada a dúvida, os relógios dos aparelhos eletrônicos da sala e da cozinha foram sincronizados, mas os dos pulsos e dos celulares seguiram com a sua cronometragem habitual, seguidas das devidas justificativas.

- Lembrei que o meu relógio está um minuto adiantado da folha de ponto digital da empresa. Como não posso alterar lá, vou deixar assim mesmo – argumento um.
- O meu também não vou mudar. Tá certinho, até nos segundos, com o motorista do ônibus. E ele nunca se adianta ou atrasa. Eu é que não vou correr esse risco – emendou dois.
- Pois eu vou corrigir o meu. Ao invés de cinco, vou deixar seis minutos adiantados e dormir um pouco mais – disse o terceiro, enquanto se espreguiçava.

Compreendi que o brasileiro está fadado a preocupar-se apenas com o seu próprio relógio, mesmo que isso acarrete na galera entrando na sala de cinema com o trailer já rolando ou com a família ainda procurando por um banco na igreja enquanto a segunda leitura está no meio. Enfim, quem entende bem dessa relação cultural é o meu amigo inglês, que é um belo de um brasileiro, sempre pontual em se atrasar meia hora.

- Cheguei um pouco atrasado, sir?
- Sim. Exatos trinta e um minutos. No meu relógio, é claro.
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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Notícias do front carnavalesco


Seu nome era Lourenço da Fonseca Barbosa, porém, dito assim, quase ninguém associa o nome ao homem. Trata-se de Capiba, personagem mais famoso de Surubim, em Pernambuco, conhecido nacionalmente como o Poeta do Frevo, o ritmo alucinante do carnaval pernambucano.

Contou-me a minha amiga Clara Suassuna, que privou da amizade do poeta e compositor pernambucano, que uma vez Capiba foi se apresentar na Europa. Uns amigos de Recife o incumbiram de trazer uma encomenda do velho continente, coisa pequena e leve. No retorno, entregaram-lhe a tal encomenda, um pacotinho do tamanho de uma caixa de chocolate. Quando desceu do navio, no porto de Recife, uma roda de amigos enlutados o aguardava. Um deles perguntou a Capiba:

– Trouxe a encomenda?
– Trouxe, mas na viagem deu muita formiga no doce e eu tive que jogar a caixa fora.
– Doce? Que doce?! Eram as cinzas do nosso avô que antes de morrer pediu pra ser cremado e depois a gente espalhar as cinzas no mar de Pernambuco!

Não sei se Capiba foi cremado quando morreu em 1977, sei que, com ele, foi enterrado o carnaval de Pernambuco que, tal qual o carnaval  de Salvador, hoje faz carnaval para inglês ver. Em Olinda, berço do frevo, o Harmonia do Samba com o bumbum do marido da Carla Perez fez muito sucesso. Em Recife, o bloco puxado pela Banda (Apo)Calypso, aquela que a moça se engasga quando canta, só perdeu em público para o Galo da Madrugada. Lulu Santos, que nunca cantou um frevo na vida, foi quem abriu o carnaval no Marco Zero.

Em Salvador o último dos moicanos foi enterrado: o irreverente bloco Mudança do Garcia. O ponto alto desse bloco eram os cartazes colados em carroças atacando os políticos incompetentes. Não proibiram os cartazes, mas proibiram o andar da carruagem. É a velha Bahia, nunca dantes tão dessemelhante e triste. Um prefeito incompetente e um governador bêbado. Como não se bastassem tantas invenções para se restringir o acesso do cidadão ao carnaval, privatizando a maior parte do espaço público, inventaram agora um tal de “Pop Corn Experience”, nome exótico para acachapar o cidadão: simplesmente isolam as calçadas, com corda, e cobra-se certa quantia para o folião ficar dentro. Como se não bastassem as cordas dos blocos; agora também se amarra o cidadão pagador de suas obrigações tributáveis na máquina da ganância de alguns privilegiados.

Em Maceió, que tem uns garotos fazendo barulho na Pajuçara, não se cobra nada, em compensação, nada se vê. É que no espaço reservado ao carnaval, se esqueceram de colocar iluminação. E no meio do breu, o locutor oficial, pago pelos contribuintes, agradeceu aos guardas da Secretaria Municipal de Trânsito pelo “livre arbítrio dos automóveis”.

Não estranhem que isso é coisa corriqueira nos meio de comunicação aqui e acolá. Um dos mais badalados jornais on line de Alagoas deu em letras garrafais: “Cabo atira em major e mata filho”. Já lá dentro, na notícia, diz que “o sargento foi preso em flagrante”. Como não há espaço para comentário, fiquei sem saber como foi que o cabo foi promovido a sargento depois dos tiros.


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Cineas Santos - O admirável mundo vitual


De Mudando o status no Facebook

Em 2002, publiquei um arremedo de crônica com o título Crônica da cidade desconhecida. Ano do sesquicentenário de Teresina, a cidade estava em festa. Foi nesse clima de comemoração que uma professora de redação pediu aos alunos da sexta série, de uma escola de ricos, que escrevessem um texto, em prosa, tendo como tema um recanto aprazível da “cidade amada”. Os alunos entreolharam-se abismados como se a tarefa fosse algo absolutamente irrealizável. Desconfiada de que boa parte da turma talvez desconhecesse o sentido do adjetivo aprazível, a professora repropôs: façam a descrição de um local agradável em nossa cidade. Ao contrário do que ela poderia supor, a descrição de um lugar (parque, praça, rua) agradável na capital parecia um desafio extraordinário. Uma meia dúzia, aos tropicões, descreveu as praças de alimentação dos shoppings da cidade. A maioria, nem isso.

Visivelmente preocupada, a professora me procurou para ouvir minha opinião. Expliquei-lhe que o resultado talvez não fosse diferente se se tratasse de adolescentes gaúchos ou acrianos. Na vã tentativa de animá-la, expliquei-lhe que a moçada hoje vive num mundo virtual, governado pelo deus-consumo, povoado de bocas que falam e cantam sandices e de bundas que geram fortunas. Esses rapazes e moças não são instigados a pensar e, como ninguém lhes impõe limites, crescem felizes e viçosos como repolhos em terra adubada. Convidei-a a refletir sobre o dia a dia desses meninos e meninas bem-nascidos: arrancados da cama muito cedo, engolem qualquer coisa (suco de caixinha, refrigerante,iogurte colorido), entram no automóvel, põem um walkman no ouvido ou teclam um daqueles celulares de última geração que, entre as 1001 utilidades, às vezes, até servem para fazer uma ligação. Confinados numa escola de muros altos (em nome da segurança), estudam as disciplinas que interessam aos exames vestibulares e fazem o mesmo percurso de volta até a casa. Nos finais de semana, shopping, festinhas de aniversário, um “fica” e o mais é torpedo, e-mail, Facebook, Twitter, MSN e toda essa parafernália eletrônica disponível na praça. Não há lugar para Teresina na vida deles.

Lembrei-me da velha crônica ao ver o comercial de um automóvel de luxo que, entre os acessórios, possui monitor acoplado aos bancos dianteiros. Segundo o anúncio, “assim, a viagem torna-se mais agradável e proveitosa”. O frêmito da vida não interessa; a paisagem não importa. A criança não pode e nem deve desconectar-se do seu mundinho virtual onde efetivamente vive. Posso estar enganado, mas Aldous Huxley não previu isso no seu Admirável Mundo Novo.

Impossível não dar razão ao professor Jaime Pinsky: “Talvez a grande tragédia da cultura brasileira tenha sido passar, diretamente, da cultura oral para a digital. Quando, finalmente, o Estado passou a considerar essencial a alfabetização de toda a população (com qualidade muito, mas muito discutível mesmo, diga-se de passagem) já era tarde. A internet, com todos os seus produtos (e-mails, redes sociais, Twitter, Facebook), assim como a cultura dos torpedos em celulares, promoveu não apenas uma nova linguagem (até aí, tudo bem), mas um discurso sugestivo em vez de um outro argumentativo, portanto sem coesão ou coerência, sem fluxo narrativo, sem começo, meio e fim”. 

Pobres meninos ricos...