segunda-feira, 2 de abril de 2012

Genivaldo do Nascimento - O sertão amaldiçoado

No universo da magia, geralmente o feitiço só dá certo se for acompanhado por palavras. Elas funcionam como a ponte entre o mágico e a ação a ser realizada por ele. Não raro são termos estranhos ao nosso cotidiano, como se servissem para simbolizar a superioridade de quem as profere. Na construção dos enunciados, pode acontecer também esse jogo de feitiço entre os interlocutores. Vejamos, mesmo que brevemente, o caso da invenção do Sertão brasileiro nos últimos 100 anos a partir do “feitiço” de Euclides da Cunha.

É consenso no meio acadêmico que o ponto de partida para a construção imagético-discursiva do Sertão foi o livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Nessa obra, como se estivesse a fazer um feitiço, esse escritor do Sudeste, o qual passou menos de dois meses na Bahia, sentenciou: “Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil. E fazemo-lo porque a sua instabilidade de complexos, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem, as tornam talvez destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização” (grifo nosso). Essa obra, que faz 110 anos agora em 2012, enfeitiçou quase tudo que se escreveu depois sobre o Sertão e o sertanejo, jogando uma “maldição” sobre essa terra e esse povo. Falamos maldição porque, numa perspectiva racional, fica difícil compreender como o Sertão caminhou/avançou e ainda existem muitas pessoas que só conseguem vê-lo como se estivessem em 1900.
Vejamos alguns exemplos que comprovam o feitiço exercido por Euclides da Cunha sobre diversas gerações de escritores, pensadores, artistas e cidadãos comuns. Exemplo 1: “Você é um bicho, Fabiano [...] Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos” (trechos do livro Vidas Secas, de 1938, do nordestino Graciliano Ramos). Exemplo 2: “O principal meio de transporte no Sertão é o jegue”; o sertanejo é “de aparência indolente e tostado pelo sol, com pele esturricada como as próprias plantas espinhentas e retorcidas que o cercam”; “Como não possui automóvel, o sertanejo leva um dia inteiro transportando, sobre a cabeça ou no lombo do jegue, uma lata de água que mal dá para saciar a sede da família” (trechos do livro A Caatinga: a paisagem e o homem sertanejo, de 1994, de Samuel Murgel Branco, premiado professor da USP morto em 2003). Exemplo III: “No Sertão encontramos o silêncio. Lá falta tudo. É um limite imposto por Deus aos sertanejos, mas, ao mesmo tempo é um lugar amado por eles” (trecho da fala de Maria Bethânia publicada pelo Jornal do Commercio no dia 29 de março de 2012. Repetimos: 2012, ou seja, 110 anos depois de Euclides da Cunha! A propósito, o título da matéria é “O Sertão fértil de Maria Bethânia”-grifo nosso).

Como, do ponto de vista racional, entender a afirmação de Bethânia, nordestina e intelectual, de que no Sertão “falta tudo” e que há “um limite imposto por Deus aos sertanejos”. Como assim “limite imposto por Deus”? O que os sertanejos fizeram a Deus para terem um “limite/castigo”. Falta tudo no Sertão, Bethânia? E o vinho, a uva e a manga do Vale do São Francisco que você consome no camarim antes e depois dos seus shows? 
Portanto, é preciso destruir o feitiço que Euclides da Cunha, há 110 anos, jogou sobre o Sertão. Obviamente não podemos ignorar os fabianos ainda existentes nessa região. Porém, é necessário, sim, uma atualização discursiva para quebrar essa maldição. Se isso não acontecer, dificilmente impediremos certas pessoas de dizerem coisas do tipo: "Nordestino não é gente. Faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado" (Mayara Petruso, enfeitiçada em 2010).

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Genival do Nascimento é mestre em Educação. Assessor Pedagógico do Geo Petrolina. Professor da UPE e FACAPE.

domingo, 1 de abril de 2012

A Paixão de Cristo em Nova Jerusalém

Fazenda Nova, Pernambuco, a um passo de Caruaru e a quatro horas de Maceió. É lá que fica Nova Jerusalém, o maior teatro ao ar livre do mundo, onde é encenada a concorridíssima peça “Paixão de Cristo”. Até certo tempo atrás o elenco era formado por atores locais, amadores, que ganharam prestígio e fama Brasil afora. E, como tudo que é bom e faz sucesso a Globo compra para poder estragar, o que se vê, hoje, é um desfile de estrelas globais ofuscando o brilho da encenação.

No ano passado eu estava lá, andando de um lado para o outro, acompanhando o calvário de Cristo, torcendo e sofrendo com a sorte ingrata do filho do Todo-Poderoso. Entra ano e sai ano, a mesma cena, os mesmos argumentos, o mesmo roteiro, e o povo sofrendo na expectativa de um novo final. O julgamento, Pilatos lavando as mãos, o povo gritando Barrabás, Cristo cabisbaixo, sem entender sua sina, e a choradeira sincera dos mais sensíveis, incompreendidos com a falta de ação do Salvador. Se nem a si próprio Ele salva, como pode salvar a humanidade? E os judeus, como puderam entregar um inocente ao carrasco só por questão de birra religiosa? Pilatos não queria assumir o ônus da condenação ou de se comprometer com a História e por isso deu-lhes a chance de salvar a pele do seu Messias, mas não quiseram.

- Solto Jesus de Nazaré ou o ladrão Barrabás? – perguntou o Pilatos de Nova Jerusalém, um ator global cujo nome me foge à memória. Os figurantes do espetáculo uniram a voz aos espectadores e um coro retumbou forte e uníssono, se espalhando pela imensidão da caatinga, feito trovão em raras noites de tempestade:

- Solta os dois e prende o Tom! Solta os dois e prende o Tom!