sábado, 19 de maio de 2012

Cineas Santos - O sagrado direito de espernear

Bochicho na Chapada: um grupo de artistas vem protestando, com estridência, contra a composição do atual Conselho Estadual de Cultura do Piauí. Para facilitar o entendimento da questão, o Conselho compõe-se de nove membros: três indicados pelo Executivo; três pelo Legislativo e três pelas instituições que representam os produtores culturais. Os artistas não concordam com a “pouca representatividade” da classe no CEC e menos ainda com o processo de escolha dos conselheiros. Para mudar esse quadro, é necessário dar nova redação ao Artigo 230 da Constituição do Estado do Piauí, o que só poderá ser feito pela Assembleia Legislativa. O Caminho está aberto. Se bem entendi, alguns dos insatisfeitos desconhecem completamente o Regimento Interno do Conselho de Cultura que, no seu Artigo 1º, afirma: “O Conselho Estadual de Cultura tem a incumbência de planejar e orientar as atividades culturais do Estado, promovendo: a) o estudo e proposição de programas culturais; b) a defesa do patrimônio cultural do Estado; c)a difusão da cultura”. Trata-se, portanto, de órgão consultivo e normativo e não executivo. Há quem advogue que o Conselho deva ser mais atuante, ou seja, que se comporte como um sindicato de artistas. Não é esta a sua função 

Protestar é uma atitude legítima e deve ser levada a sério. O problema é quando a coisa degringola e derrapa para a incivilidade. Um dos artistas, irritado por não ter sido preterido, afirma que o prof. Paulo Nunes “está há 600 anos no conselho e que 70% das pessoas nem sabem quem ele é”. Um pouco de informação não faz mal a ninguém. Quando esse moço ainda estava no “ventre das expectativas”, M. Paulo Nunes já estava fazendo cultura no Piauí. Na década de 40, em parceria com O. G. Rego de Carvalho e H. Dobal, lançou a revista Cadernos Meridiano, um divisor de águas na literatura piauiense. Ao longo desses anos, nunca deixou de militar em defesa da cultura do nosso estado. Professor, crítico literário e ensaísta, exerceu os mais diversos cargos públicos, deixando por onde passou a marca de sua atuação: independência intelectual, competência e honradez. Trata-se de um cidadão que honra e dignifica a cultura piauiense. Como presidente do CEC, deu maior visibilidade ao órgão e dotou-o de uma sede própria – o Centro Cultural da Vermelha – com auditório, biblioteca e sala de informática. Por oportuno, posso testemunhar: Paulo Nunes não pediu para permanecer no Conselho; foi convidado pelo governador. 

O direito de espernear é legítimo e deve ser exercido na sua plenitude, mas a incivilidade e a grosseria são inaceitáveis. Além disso, qual é o critério de que se servem os detratores do Conselho para definir um artista? Qualquer dicionário de bolso ensina: “Artista: aquele que tem habilidade artística ou que produz arte”. M. Paulo Nunes, para citar apenas um exemplo, é autor de um punhado de livros sobre os mais diversos temas: educação, literatura, cultura, filosofia, etc. Pelo entendimento dos insatisfeitos, a atividade de escritor não o credencia a ser tratado como artista. Querem-no batendo tambor? Bem, M. Paulo Nunes já não tem idade para vestir o figurino de “artista” desenhado pelos inconformados da hora. Paciência. 


quinta-feira, 17 de maio de 2012

Carlos Pronzato - O Bandeirante Iluminado*

Adorno descarregou sua mochila de bandeirante na beira de Pikuí-upá (Lagoa das Pombas). Depois de dois meses de viagem sufocante através das paisagens desconhecidas de um Brasil apenas revelado, seus olhos ainda mantinham viva a imagem do Araberí, o indiozinho paiaiá, que volta e meia retornava num sonho persistente colado em sua alma como um carrapato. Adorno já quase nem comia nem bebia. Estava no limite das suas forças, uma caricatura daquele que numa noite quente no sertão da Bahia afastou-se do grupo de bandeirantes que desbravava o mato à procura de índios e embrenhou-se solitário atrás do resplendor fosforescente do pequeno paiaiá e nunca mais voltou a ver seus companheiros de rapina. 

 
Obsessionado pelo resplendor intermitente avançou durante dias e dias até Pikuí-upá, sem saber por que nem para que. Afinal, nunca na sua vida tinha visto um paiaiá, menos ainda do tamanho do Araberí. Era sua primeira bandeira, sua estréia no tenebroso e rotineiro mundo da caça ao índio. Mas Adorno era uma exceção nessa época em que um índio era apenas um multiplicador gratuito da fortuna do seu dono. 

 Adorno resistiu em participar dessa expedição, talvez num átimo visionário de humanidade considerava a escravidão a pior das heranças da sua época. E essa recusa era o que há alguns dias, na “kaapuera” perto de Inhambupe, começou a vir à sua memória cada vez que escutava uma voz que lhe dizia: Tur! (venha), e logo a seguir a imagem esplendorosa do paiaiazinho perguntava: Marápe nde rera? (Qual é o teu nome?). 

 Adorno, que nunca tinha ouvido falar nas incursões lingüísticas do Padre Anchieta no mundo tupi, inexplicavelmente entendia perfeitamente as mensagens e seguia em frente como hipnotizado atrás da luzinha do Araberí repetindo ofegante o seu próprio nome: Adorno... Adorno... A bandeira retornou com um satisfatório carregamento de índios escravizados, condenados a preencher as últimas páginas da inexorável extinção da sua nação. 

Mas Adorno nunca retornou. Perdido na imensidão do céu das caatingas aferrou-se com suas últimas forças à mochila, de onde extraiu o mesmo crucifixo que beijou antes de partir. Colocou os lábios em forma de um último beijo e aproximando seu rosto do crucifixo, adormeceu moribundo. O vento acariciou o “pirityba” (juncal) e a noite cresceu como uma assombração gigantesca por cima do corpo do bandeirante imóvel. Ereîúpe? (Você chegou!)... Enekoema! (Bom dia!). O Araberí, encandeceu o bandeirante que sobressaltado acordou falando em tupi: Aîu (eu vim, eu cheguei!) no meio de uma roda de índios paiaiás anciãos que, pegando ele pelo braço, dançaram durante dias e dias em silêncio e felizes pelo encontro com alguém que tentou torcer o rumo que o seu povo lhe impunha. Em seguida percorreram com Adorno os corpos infinitos da sua nação extinta espalhados no vento frio da noite da caatinga. Adorno chorou como nunca tinha chorado e desapareceu no horizonte com os anciãos paiaiás. A Araberí, lentamente, diminuiu sua luz até a escuridão total. 

*Carlos Pronzato é escritor e cineasta argentino radicado em Salvador, Bahia. 


segunda-feira, 14 de maio de 2012

Luís Pimentel - Informação desinformada

Informação é caso sério. Quando correta e precisa, proporciona uma vitória na guerra. Errada, leva o cavaleiro a dar com os burros n´água. Umas podem desencadear o horror; gosto daquelas que despertam o humor, desinformadas, nebulosas, parecem conversa de malucos, mas não são. E deixam o solicitante mais perdido ainda: 

– Essa rua aqui vai dar na praça? 
– Depende. 

 Depende da praça ou da rua? Não me esqueço de uma conversa que ouvi, na infância interiorana e nordestina, entre minha mãe e um vizinho. Ela queixava-se dos preços dos alimentos, da carestia generalizada. E ele, querendo corroborar com os seus argumentos: 

– Pois é, Dona Anisia. Ainda há pouco mesmo, alguém falou ali que não sei onde um tantinho assim de feijão está custando não sei quanto... 

E ela:

 – Pois é, isto é pro senhor ver. 

 Não tinha um dado, um número ou elementos precisos. Mas os dois entenderam e se entenderam. Às vezes o desentendimento é que dá o tom da prosa, como esse diálogo entre dois colegas de trabalho. Um cochilava, o outro ouvia rádio. Diante da notícia bombástica do assassinato do beatle John Lennon, acordou o dorminhoco e disparou: 

– Cara, mataram Paul Macáqui! 
– Paulo Macaco? Em que morro? 
– Morro nenhum, ignorante. Foi na Inglaterra. 

Ouviu uma notícia e passou outra, não tinha uma informação correta. Mas nem por isso deixaram de se entender. E ficaram mais de meia hora falando sobre o assunto.