sábado, 21 de julho de 2012

O Medalhista Olímpico



Aproximava-se a data dos jogos universitários e um dilema formara-se na delegação da UFAL: quem poderia defender com garra e entusiasmo a bandeira da natação? Havia de tudo na Universidade, menos, bons nadadores. Conversa daqui, briga dali, acusações mútuas de “porco chauvinista”, o jargão da época, quando uma luz milagrosa se acendeu:

- Por que não escolhemos o Juvenal? Ele nasceu e se criou comendo sururu na beira da Lagoa Mundaú, em Fernão Velho, deve ser um exímio nadador, um verdadeiro campeão.
- Isso, isso, isso! – pela primeira vez havia unanimidade nas diversas correntes ideológicas estudantis.

Juvenal topou a parada. Prometeu ser medalhista em Belo Horizonte, capital-sede dos jogos. No dia e hora da prova, a torcida da UFAL era toda do Juvenal. Era medalha de ouro na certa. Acostumado a atravessar a nado os mais de mil metros que separam o bairro de Fernão Velho da cidade de Coqueiro Seco, na outra margem da Lagoa Mundaú, não ia esfarrapar justamente quando mais se necessitava de suas braçadas.

Dado o tiro de largada, Juvenal pulou de cabeça na raia da piscina, afundou, emergiu, ficou em pé e retornou apavorado para a beirada. Uma vaia estrondosa ecoou no parque aquático. A mãe de Juvenal não saía da boca dos seus colegas. Enfiou a cabeça dentro d'água, achando que podia se esconder, mas faltou ar. Deu uma pirueta no ar, saiu da água e desapareceu no meio da multidão. Alguns alagoanos correram atrás, para tirar satisfação, mas só voltaram a encontrar o campeão na semana seguinte, na Universidade.  

Isolado dos colegas como se portador de doença contagiosa, acusado pelo Tribunal da Contra-Revolução de porco chauvinista traidor da pátria estudantil e entreguista militante da Direita a serviço do imperialismo americano, Juvenal ainda viveu um inferno astral para não ser jubilado a menos de um ano para colar grau: a UNE queria a sua cabeça numa bandeja, tal qual Salomé quis a de João Batista.

Muito tempo depois, já formado em Educação Física e fazendo bico como instrutor de natação, tomou um porre e desabafou a um colega que também fez parte daquela delegação:

- Naquele fatídico dia achei de vestir um short novo que havia comprado na Mesbla de Belo Horizonte, pois o meu estava com um buraco bem naquele lugar. Caí na besteira de vestir o short sem uma sunga por baixo e na hora que mergulhei ele foi arrastado pela água e, quando tentei dar a primeira braçada, senti que estava nu. Se eu continuasse, minha bunda ia aparecer e o short ia ficar pra trás. Por isso que saí daquele jeito, arrastando o short entre as pernas até a beira da piscina.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Cineas Santos - Em nome do pai


         Tenho um amigo humorista que, se necessário, abre mão da amizade, mas não perde a piada. Certa feita, afirmou: “Ou o Cineas não tem pai, ou não passa de um bom filho da mãe”. A tirada humorística tem sua razão de ser: ao longo da vida, escrevi dezenas de textos sobre dona Purcina e poucos, muito poucos, sobre seu Liberato. Mais que minha mãe, dona Purcina foi minha bússola por muito tempo. Mesmo quando saí da influência do seu raio de ação, procurei pautar minha conduta tendo como chão o que aprendi com ela. Não bastasse isso, minha velha era meio “espaçosa”, autoritária e exigente. Uma autêntica matriarca do sertão.

         Já seu Liberato era um sertanejo simples, ordeiro, contido. Se tivesse de defini-lo usando um único adjetivo, eu nem pestanejaria: exato. Nunca o vi eufórico nem colérico. Não caçava, não pescava, não maltratava os animais. Não fazia versos, não tocava viola, não contava vantagens. Em matéria de música, conhecia duas, mas raramente cantava. Quando o fazia, não desafinava. Um homem perfeitamente integrado ao seu hábitat. Suas aspirações não iam além dos limites de suas roçadas. Ao longo da vida, fez apenas três viagens: Juazeiro (BA), Brasília e São Paulo. Em nenhuma delas fez boa colheita. Fincou raízes fundas no Campo Formoso de onde só saiu quando perdeu  a visão.

         Nascido no povoado São Braz (hoje, município de São Braz do Piauí), estudou apenas três meses. A despeito disso, sabia ler, escrever e contar. Da terra, sabia quase tudo, tanto que trabalhou a vida inteira numa gleba de 100 hectares sem exauri-la. Ao contrário dos lavradores vizinhos, nunca fazia queimadas. Limpava a terra e a preparava para o plantio com o mesmo cuidado que dedicava aos animais. Sabia ler os sinais da chuva em tudo: na floração dos mandacarus, na agitação das formigas ou na posição da boca do ninho do João-bobo. Dormia cedo e acordava muito cedo: precisava fazer a “leitura” da barra do dia, um indicador da presença ou da ausência das chuvas.

         Tinha apenas duas mudas de roupa, ambas azuis. Quando estava entre os seus, contava causos engraçados, com aqueles volteios que caracterizam a prosa sertaneja, tão bem recriada por Guimarães Rosa.

         Não seria exagero afirmar que era um sertanejo atípico: não gritava, não corria, não tinha receio de se mostrar terno e delicado. No final do dia, ao regressar do roçado, sempre nos trazia alguma coisa: uma melancia temporã, um favo de enxu, uma flor de rabo-de-raposa, uma simples pedrinha lisa... Com ele, aprendi a campear nuvens, tomar café forte, honrar a palavra empenhada, apreciar chuvas brandas e gostar de mulheres formosas. Um pai melhor do que ele eu não fiz por merecer.