quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A bola

No sertão arcaico era assim: quem escrevia e não lia, era analfabeto.

O garoto ouviu gemidos na cozinha. Soluços de choro. Gritos de torturado. Era a sua irmã sendo castigada pela mãe. Quanto mais pedia clemência, maior se fazia a ira materna. E o castigo redobrava misturado com palavras ásperas.

- Você é alguma rapariga pra ficar na rua dando bola pra homem, sua sem-vergonha!  - e o relho comia na pele fina da filha.

O garoto se assustou quando viu o corpo lanhado da irmã. Saiu feito um furacão, entrou sem pedir licença na casa do primo, pegou a bola que ganhara de presente no Natal, correu de volta para casa, adentrou a cozinha feito um furacão, parou e falou ofegante para a mãe:

- Para, maínha!   Não bate na Ritinha mais não! A bola está aqui! Ritinha não deu a bola a ninguém não. Eu é que emprestei para o primo Pedro!



segunda-feira, 30 de julho de 2012

Cineas Santos - Encanto em dois tempos


                                              
         Decididamente, não gosto de viajar. Ainda assim, vez que outra, me surpreendo realizando viagens improváveis rumo ao nada. Foi o que aconteceu, por exemplo, no final da década de 80, em Boa Vista (RO), onde eu participava de um (como direi?) convescote literário. Se bem me lembro, um escritor da região gastou uns 40 minutos para provar que a pronúncia correta era Roraíma e não Roraima, mas isso já é outra história. O certo é que, à noite, um dos malucos presentes sugeriu um passeio a Santa Helena, na Venezuela, que fica a pouco mais de 100 km de Boa Vista. Como não havia coisa melhor a fazer, o grupo aceitou.

         Na manhã seguinte, sacolejávamos, numa caminhonete desconjuntada, um poeta encharcado de álcool e nicotina, um pintor surrealista, um vendedor de ilusões (palestras motivacionais) e eu. Estrada esburacada, lama, mosquitos e descampados a perder de vista. A paisagem de Roraima lembra Campo Maior, com uma diferença: em vez de carnaubais, são os buritizais que bordejam os igarapés. De repente, no meio do nada, o poeta, que sofria de enfisema pulmonar, começou a passar mal. Por sorte, encontramos um povoado onde o tempo se enroscara para dormir. Uma pasmaceira só. Paramos em frente a uma palhoça onde se vendiam coisinhas e comida. Ao ver o poeta arquejando, o dono da birosca foi taxativo: “O remédio está aqui“, e brandiu um frasco de Aguardente Alemã.

         Enquanto o “médico” cuidava do poeta, fomos cuidar do estômago. O vendedor de ilusões, com sua eloquência pegajosa, pediu “um café reforçado”. E põe reforçado nisso! Nunca vi nada parecido: cuscuz, beiju, paçoca, assado de paca, ovos estrelados, banana, café e leite... Como sou mais estética do que gula, esqueci a comilança e lancei os olhos na garçonete, uma indiazinha macuxi, linda como a claridade da hora. Sem levantar a vista, sem dizer uma palavra, a mocinha nos serviu e, a um olhar do patrão, desapareceu na manhã cinzenta. Com alguma indiscrição, pesquei-lhe o nome: Gardênia. Prometi a mim mesmo que, numa noite enluarada de setembro, voltaria àquele fim de mundo para raptá-la. Ainda não o fiz, mas o projeto permanece vivo em minha mente...

         Melhor seria: permanecia. Na semana passada, voltando de Coelho Neto, parei na beira da estrada para comprar frutas e apreciar umas redes multicoloridas que fisgam os passantes pelos olhos. A vendedora era uma indiazinha tão bonita quanto à outra, com algo mais: um sorriso Via Láctea. Falava o mínimo necessário, mas sorria fartamente. Pedi-lhe que me sugerisse uma rede. Sem hesitar, alargando o sorriso, indicou-me uma tangerina com varandas verdes-alga. Naturalmente, eu teria escolhido uma azul, mas como recusar a indicação? Por mais que eu insistisse, não me disse o nome. Chamei-a Smile. Como já não tenho idade para fazer projetos de raptar donzelas, acho que me contentarei com a rede. Assim, quando estiver acometido de banzo, doença comum aos da minha raça, armarei minha rede amanhecente e me deixarei embalar no sorriso luminoso da  moça anônima. Assim seja.