quinta-feira, 14 de março de 2013

Luís Pimentel - A volta do Velho Graça



     Na verdade, é a volta de quem jamais esteve ausente. No 60º aniversário de sua morte, Graciliano Ramos – um dos maiores escritores brasileiros (em minha modesta opinião, o maior), para quem escrever era, antes de tudo, cortar palavras – volta a ser tema de seminários em universidades, tem volumes de sua obra reeditados e, glória das glórias midiáticas, daqui a pouco será o homenageado da Flip 2013. Não é pouco.

     Quer dizer, ainda é pouco. Mas é bom. É sempre bom constatar que o Velho Graça não está esquecido. Num país onde se esbarra com um escritor em cada esquina, quando a fogueira das vaidades vive a incendiar corações e mentes,  vale sempre a pena a gente recorrer ao mestre, que passou a vida a desconfiar de tudo e de todos, sobretudo dele mesmo.

          Graciliano Ramos interrompeu e retomou inúmeras vezes o ótimo Angústia (1936), imaginem, por não enxergar ali qualquer valor literário (como também não enxergava nos anteriores, Caetés, 1933, e São Bernardo, 1934, que o projetou no cenário literário, mereceu adaptação histórica para o cinema, com Othon Bastos e Isabel Ribeiro nos principais papéis, e direção de Leon Hirsman (Vidas secas também foi adaptado e filmado pelo hoje imortal da ABL Nelson Pereira dos Santos). Ali desponta o narrador rigoroso, de períodos curtos e contundentes, linguagem crua, magra e fria, contando a história do fazendeiro Paulo Honório:

     “Aqui nos dias santos surgem viagens, doenças e outros pretextos para o trabalhador gazear. O domingo é perdido, o sábado também se perde, por causa da feira, a semana tem apenas cindo dias e a Igreja ainda reduz. O resultado é a paga encolher e essa cambada viver com a barriga tinindo”.

     Não há uma palavra fora de lugar.

     Graciliano Ramos correu atrás de bode, trabalhou em balcão de armazém, vendeu tecidos, foi professor, instrutor de ensino, prefeito em Palmeiras dos Índios (AL), preso pelo Estado Novo sob acusação de comunismo (a experiência de cadeia mais valiosa do mundo, pois ao mundo legou Memórias do cárcere, publicado no ano de sua morte) e mais tarde até comunista. Mas jamais precisou de coerência partidária para exibir, ao longo da vida, coerência e apego ao povo mais necessitado do seu sertão ou encontrado por ele nas inúmeras pensões por onde viveu no Rio de Janeiro.

     Viveu da palavra. E para ela. Usem todas as palavras possíveis para homenageá-lo.


terça-feira, 12 de março de 2013

Marcelo Torres - De osso e papel

 O senhor Joaquim Maria Machado de Assis nos apresenta Miss Dollar e Quincas Borba. Este é belo, malhado, negro - amado órfão de um filósofo homônimo. Ela é uma violeta graciosa, rosa mimosa, enfim, uma miss - olhos castanhos e aveludados. Já Graciliano Ramos, desencantado com a humanidade, nos traz um ser diferente dos meninos de vidas secas, que nem nome têm - são apenas ‘o mais novo’ e ‘o mais velho’, ambos desgraçados, humilhados e destroçados, também sem sonho, entregues que estão ao destino

No início de seus Contos Fluminenses, Machado faz suspense. Diz que se o leitor é dado ao gênio melancólico, pode imaginar que a sua miss é uma inglesa sem carne e sem sangue, de olhos azuis, tranças louras, que sabe poetas de cor e salteado. Por outro lado, se o leitor não é chegado a tais devaneios, a personagem em questão pode ser uma americana robusta, sangue na face, olhos vivos e ardentes, mulher fecunda e ignorante, amiga de copo e mesa, mas que não compreende a beleza da literatura e prefere comer muito a se ver com leituras.

Na verdade, devaneios à parte, tanto os dois personagens de Machado como o de Graciliano Ramos (Baleia) são nada mais nada menos que cães. Cães amáveis por sinal, transformados em gente, talvez até com mais amor, sentimentos e paixão que o próprio homem – o homem que é reduzido a objeto de si mesmo (coisificação, reificação). “Cheio de profundo desgosto pelos homens, achou que era de boa guerra adorar os cães [...] No espírito dele, o cão pesava tanto como o amor, segundo uma expressão célebre: tirai do mundo o cão, e o mundo será um ermo...”

Se na publicidade os cães aparecem num significativo número de peças e filmes, na literatura há também presença marcante de cachorros nas tramas, enredos e títulos. O baiano Antônio Torres, por exemplo, tem romances intitulados Um cão uivando para a lua e O cachorro e o lobo – embora o cachorro aí tenha uma conotação metafórica para definir o narrador-personagem, em sentido alegórico, figurado. O cachorro é o filho sumido, que depois de 20 anos, volta para rever o pai (o lobo).

A morte de uma cadela foi o mote d’O auto da compadecida, do mestre paraibano Ariano Suassuna. Na definição de auto, no Aurélio, o próprio espelho da peça: “3. composição dramática originária da Idade Média, com personagens geralmente alegóricas, e que se caracteriza pela simplicidade da construção e caracterizações exacerbadas, podendo, também, comportar elementos cômicos e jocosos”.

Em O melhor amigo, de Fernando Sabino, uma criança acha um cão na rua e o toma pra si, mas logo se depara com a rejeição da mãe, que não quer saber de animal em casa. “Vamos, leve esse cachorro embora”, ela ordenou. Depois de choramingar, o menino saiu para dar um destino ao cão.  Meia hora depois, ele volta, radiante. “Pronto, mãe”, disse, mostrando uma nota de vinte e uma de dez. Vendeu o ‘melhor amigo’ por trinta dinheiros. E ainda pensou: “Eu devia ter pedido cinqüenta, tenho certeza de que ele dava”. 

Tão ou mais irônico que Sabino, Stanislaw Ponte Preta descreve o seu cão na divertida crônica Prova falsa: “Era um chato, desses cachorrinhos de raça, cheios de nhém-nhém-nhém, que comem comidinha especial, precisam de muitos cuidados, enfim, um chato de galocha. Vivia de rabo abanando para todo mundo, mas, quando eu entrava na casa, vinha logo com aquele latido fininho e antipático de cachorro de francesa. Num rápido balanço: o cão comeu oito meias suas, roeu a manga de um paletó, rasgara diversos livros, não podia ver um pé de sapato que arrastava...”  

Em dois autores paranaenses, Dalton Trevisan e Domingos Pellegrini, os cães figuram envoltos em ternura e crueldade. Trevisan, que tem contos dramáticos e sombrios, surpreende com a cadela Fifi – que é personagem de duas histórias: ora ela recebe ternura, ora é vítima de crueldade. Em Pellegrini, o cão é atropelado na estrada, depois é sacrificado com dois tiros de revólver: “O homem arrasta o filhote pela pata até um pé de erva-cidreira. Afasta e, de costas, tapa a visão do menino – aí dá dois tiros”. Título do conto: Herói.

Se em Sabino era a mãe do menino que rejeitava a idéia de o filho ter um cão, em Corisco, (que não era o amigo de Lampião, mas uma cria do mineiro Luiz Vilela), era o pai que “não gostava de cachorro porque cachorro é bicho velhaco, só serve para dar amolação e pra comer a comida da gente, e enquanto ele fosse dono da fazenda, ali nunca haveria de entrar cachorro, e se entrasse um, ele pegava a espingarda e sapecava fogo sem um tiquinho de dó”.    

O tempo passou, o cachorro já havia morrido, a mãe do menino na vida de cozinhar, o pai na plantação e ‘era como se Corisco nunca tivesse existido’. Numa noite em que se descobriu que mais uma galinha tinha sido roubada na fazenda, a mãe falou que se o cão tivesse vivo... Então, o pai disse zangado que não era para se falar mais em cão naquela casa, ‘pois cachorro é bicho velhaco...` e foi lá para a janela olhar o céu.  O desfecho do conto: “Mamãe me cutucou a perna e eu olhei pra ele e vi ele enxugando uma lágrima”.

Com tantos cães em casa e na rua, uivando para o céu e para a lua, a verdade é uma, nua e crua: o cachorro é o melhor amigo de muitos contistas, cronistas e romancistas. Tirai do mundo o cão, e o mundo será um ermo. É mesmo: eles são heróis poéticos, agentes da vida e da morte sofrida. Ladram para o azar e farejam a sorte, são ‘bons moços’, uivam para o céu, ‘gente’ de carne e osso. De osso e papel.


Texto publicado no Correio Braziliense, em 21.03.2003, e no Jornal Rascunho, em junho de 2003.



domingo, 10 de março de 2013

Até mais ver, Sumpalo!




Amiga Rosicreide, você é minha e o boi não lambe. Aliás, a seca aqui está tão de morte que boi entrou para a lista de animais em extinção. Até o bumba-meu-boi andou morrendo de sede, só não me pergunte como, porque isso é coisa de política safada. Somente o senador continua com seus bois gordos e vistosos, por obra e graça do Divino Espírito Congresso Nacional.

Cá nas praieiras do Nordeste sinto saudades de nossos rastros desfeitos pelas brumas marinhas nas caminhadas matinais. Sei que você anda muito atribulada com seus afazeres profissionais, e que estava de viagem marcada ao Vaticano, em visita de cortesia ao papa Bento XVI. Saiu no jornal daqui. E deu na televisão. Agora entendo o porquê do Papa ter renunciado bruscamente e ter se escondido não-sei-onde. Ele sabia que não iria resistir à tentação. Mas, com tantos escândalos abalando as sacristias, um a mais ou um a menos não faria diferença. Pelo menos lavava a honra da Igreja com esse negócio de pedofilia e viadagem. Perdeu a oportunidade de entrar para a história como um papa macho, disse um vizinho meu, ateu de marca maior, quando lhe relatei o provável motivo da renúncia de Sua Santidade.

Estive assuntando uma visita a você, e cheguei até a selar a jeguinha, mas a mulher implicou: “Vai de avião, mané!” e eu disse: “Num vou!” Quem nasceu para voar foi passarinho, aí ela me convenceu que a comida de avião era muito gostosa, tinha uma bolacha cream-cracker maravilhosa, mas isso aí era se eu fosse pela Tam. “Pela Gol”, disse-me, “só se for de primeira classe. Passagem promocional só tem direito a copo de água de torneira”, concluiu. E quando eu estava de malas prontas e fazia planos de voo, um repórter disse na televisão que em São Paulo a polícia estava matando mais gente do que a volante dos tempos de Lampião, e que os bandidos estavam matando mais gente do que os cangaceiros do bando de Lampião, e outro repórter gritou admirado: “Duzentos por dia!” e apareceu o tal do secretário de segurança despreocupado e falante: “E isso é motivo de espanto?! Estatisticamente está dentro da normalidade.” E aí fiquei por cá matutando debaixo da sombra do coqueiro: se aqui morre um ou outro e as manchetes dizem que é o estado mais violento do mundo, por que duzentos está dentro da normalidade?

Como baiano burro nasce morto, sentei-me à beira da praia e um tubarão simpático e sorridente, vendo o meu dilema do ir e não-ir, me chamou para dois dedos de prosa dentro do mar. Olhei para ele e gritei: “Vou não!” e corri para casa e fui pesquisar na internet. Estatisticamente falando, não há registro de nenhum baiano engolido por tubarão e eu não seria o primeiro.  Depois eu me lembrei de que na praia aqui em frente não tem tubarão, então procurei um macumbeiro e ele desvendou o mistério sem cobrar um centavo pela consulta: “Esse tubarão é presságio para você não viajar”. E me deu uns passes mediúnicos à base de óleo de tubarão e pediu para que eu deixasse as passagens aéreas com ele, pois necessitavam de uns trabalhos de descarrego.

Assim, enquanto perdurar essa violência estatisticamente dentro da normalidade, continuo aqui com a minha jeguinha amarrada no mourão da tranquilidade praiana, soltando baforadas do meu cachimbo virtual esperando que você faça o inverso da arribação nordestina. Aqui as pessoas pacatas só morrem de morte natural ou por overdose de cocaína. E, como disse acima, você é minha e o boi não lambe. Nem mesmo o boi do senador.