sábado, 10 de agosto de 2013

Short story com final feliz

Todos os dias, cedo da manhã, acordava o mar em chutes delicados nas brumas que insistiam atirar-se aos seus pés. Olhava o horizonte num vagar triste, melancólico, desejoso de desvanecer-se nas águas tal qual o sal da terra. Um dia descobriu um rochedo. Nele sentou-se e continuou a olhar o horizonte por noites e dias a fio. Um itinerante rotineiro indagou:

- Por quem tanto espera, resignada criatura?

- Pelo meu amor. Um dia ele entrou num barquinho dizendo que ia voltar, seguiu em direção do nascer do sol até ser tragado pela linha do horizonte. Desde então eu fico aqui, à espera que em algum momento o horizonte devolva as cores da minha vida ou que o mar me entregue uma garrafa de náufrago.  


- Ó, minha triste menina, é fácil cumprir sua sina: crie um perfil no Facebook que logo-logo você o acha ou ele acha você.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

A musa desconhecida

Após longos anos ausente, voltei. Não como voltam os heróis, garbosos e festejados, ruidosos e donos de si. Voltei porque a saudade era grande; imensa era a vontade de rever os amigos que um dia abandonei entregues à solidão das noites interioranas.

Era a volta às origens. Depois de ser corrompido nos bacanais soturnos da metrópole, o meu coração atendeu ao chamado selvagem das minhas carências afetivas e me conduziu pelas ruas um tanto agitadas da cidade que abrigou os meus sonhos juvenis. Era quase meio-dia e o sol estava a pino. Sentei-me à sombra de uma árvore, na Praça do Coreto, e fiquei a observar o movimento dos passantes, tentando identificar, dentre eles, algum companheiro dos tempos da inocência. Não consegui reconhecer ninguém entre os transeuntes ou entre aqueles que, assim como eu, cingiam utopias inconsúteis sentados nos bancos da Praça. Que é dos meus amigos?! Ou todos seguiram os meus passos e foram viver em terras alhures, ou a cidade se tornara maior do que meus anseios.

Atravessei a Praça e parei em um bar em frente. Dentro, reinava um silêncio cúmplice com a música ambiente. Casais namoravam aos cochichos, temerosos de revelarem suas intimidades. Havia um jardim de inverno e procurei uma mesa mais próxima da claridade natural e nela me instalei, de modo que poderia observar todo o movimento interno. Nunca se sabe quando pode aparecer um velho companheiro de farra.

Uma solícita garçonete risonha, olhos de azeviche brilhantes, parou à minha frente. Fiquei ofuscado pelo seu olhar, apesar de ter um sorriso tentador. No terceiro chope, pedi uns guardanapos e uma caneta emprestada. Senti uma inspiração repentina e aquele instante mágico não poderia passar em vão. Meia hora depois entreguei à garçonete minha obra-prima, caprichosamente rabiscada em um guardanapo de papel: um poema aos seus faiscantes olhos.

PARADOXOS

Teus olhos são adversidades perfeitas:
Possuem a negritude profunda
Do breu noturno sem lua e sem estrelas;
Mas têm o lume de uma noite enluarada,
Salpicada de estrelas cadentes.

Irradiam o calor do astro-rei
Quando brilha no seu apogeu.
Têm o esplendor de todos os sóis
Que o Universo produziu;
A explosão de mil astros
No vácuo inexplorado.

São silentes como o esfumaçar diáfano
Das ressacas matutinas
E ruidosos como o canto do passaredo
Ao saudar o novo amanhecer.

Teus olhos possuem a singeleza
De uma virgem beijando uma flor.
São profanos, tristes, desumanos,
E cortam, pungentes, o meu coração
Como a fria lâmina de dois sabres.


Surpresa, guardou o guardanapo no avental e disse que iria ler com calma, no banheiro, único lugar onde poderia ler sem ser interrompida. Compreensível, vez que era um bar e restaurante e pessoas chegavam com cara de fome. Ela retornou, tempos depois, olhos marejando, embevecida, agradecida. Nunca alguém havia lhe feito uma poesia. Nem mesmo copiado de um poeta qualquer, disse-me. E eu, um desconhecido, interrompi minhas divagações para lhe mostrar que sempre há uma primeira vez.

Por volta das duas horas da tarde ela largou o batente. Seu horário havia acabado e iria para casa. Guardaria a poesia com a mesma emoção e zelo de um atleta a guardar seu troféu. Desejou-me sorte e desapareceu na claridade da rua. Continuei comemorando o meu regresso, degustando saudades. Ao sentir que o álcool ultrapassava meu limite de lucidez, pedi a conta à nova garçonete. Ela foi ao caixa e voltou sorridente. Disse que a conta estava paga.

–   Quem pagou? – perguntei, pois não havia nenhum conhecido no bar.
–   A minha colega que saiu. O senhor tem direito a mais dois chopes que ela deixou pagos. 

          Dispensei  os dois chopes extras, paguei a conta e mandei devolver o dinheiro da garçonete e saí cambaleante no rumo de casa, emocionado por reler parte de minha biografia escrita nas paredes daquelas ruas desbotadas pelo tempo. Feliz por ter meus direitos autorais pagos com um sorriso singelo, sincero, emocionado, a ponto de a musa querer empenhar seu dia de trabalho para custear as minhas reminiscências etílicas e sublimativas tais quais as efervescentes paixões platônicas, incisivas e transitórias.

 

  


quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Passando a chuva num fusca

 A enxurrada balançava o fusquinha feito ondas marinhas em canoas desprevenidas. Trânsito travado, corações paralisados. De repente um clarão no céu e em instantes um trovão ensurdecedor. Ela se jogou no pescoço do namorado em busca de proteção ou talvez para proteger com seu corpo frágil aquele que ela dizia ser a razão do seu viver.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Cineas Santos - A falta que ele nos faz



         Todos os anos, num ritual de há tempos, em meados de agosto, paro no cruzamento das ruas Coelho Rodrigues com 1º de Maio para contemplar, ou melhor, para reverenciar o Imperador da Chapada. Assim se inicia uma das muitas crônicas que dediquei ao mais belo ipê de Teresina. Este ano, tentarei passar o mais longe possível do local para que os passantes não me vejam chorando. Do imponente ipê sobrou  apenas um pedaço de caule, despido de majestade e  beleza. Na manhã do dia 25 de julho, justamente quando quem o plantou - prof. Carlos Pires Rabelo, de saudosa memória - estaria completando 90 anos de idade, metade da árvore desabou. Por precaução, a família do prof. Carlos decidiu cortar a outra metade, que ameaçava cair. Decididamente, Teresina ficou mais pobre.

         Sob a chuva de pétalas que o Imperador generosamente derramava sobre as cabeças dos passantes, presenciei algumas cenas curiosas. A última delas me deixou bastante preocupado. Um casal de meia idade, acompanhado de dois filhos, dirigia-se à Frei Serafim apressadamente. O homem seguia à frente, seguido pela mulher e por um garoto de uns dez anos. Um pouco mais atrás, uma garotinha de uns cinco anos, se muito. A menininha, ao passar sobre o tapete de flores amarelas, não se conteve: agachou-se, pegou um punhado de flores e correu em direção à mãe para ofertar-lhe as pepitas amarelas. A senhora, sem pestanejar, bateu nas mãos da criança, derrubando as flores. Não satisfeita, perguntou com rispidez: “Quantas vezes já te disse para não pegar porcaria no chão?”.  A menina, envergonhada, me olhou como se pedisse socorro. Limitei-me a acenar com a cabeça num gesto afirmativo. Ela ensaiou um sorriso e seguiu em frente. Comentei comigo mesmo: já não se fazem mães como antigamente.

         Outra vez, eu e o cinegrafista Ezequiel filmávamos a florada do imperador quando, das proximidades do 25º BC, despontou um cidadão de meia idade, camisa aberta ao peito, berrando como um desesperado. Protestava contra o governo, contra o exército, contra Deus. Apreensivo, pedi ao cinegrafista que se afastasse da calçada com receio de que o cidadão o agredisse. Ao passar por nós, o moço parou e, educadamente, declarou: “Professor Cineas, meus respeitos e meus cumprimentos”. Avançou uns dois passos e continuou sua catilinária contra tudo.

         No belo poema “Tempo de Ipê”, Carlos Drummond de  Andrade afirma: “Sou um homem dissolvido na natureza. / Estou florescendo em todos os ipês. / Estou bêbado de cores de ipê, / estou alcançando a mais alta copa do mais alto ipê do Corcovado”.  Como me faltam engenho e arte para cantar a beleza do Imperador destronado pelo tempo, recorro ao gauche de Itabira para afirmar: “Mas as coisas findas, / muito mais que linda, / essas ficarão”. Em mim, permanecerá sempre viva a esplendente beleza do Imperador da Chapada.