sexta-feira, 15 de abril de 2016

No princípio era o Verbo - Luís Pimentel

     No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Mas logo, logo muitos deuses foram inventados, e a bagunça começou. Deus fez todas as coisas. Fez o céu, a terra, e até a Câmara dos Deputados. Por ali passaram homens bons e ruins, até o dia em que o comando da Casa caiu no colo de um vendilhão dos templos.
     Aí Deus lavou as mãos, porque ninguém é de ferro. 
***
     No princípio era o Verbo. O Verbo se fez carne, mas ainda não valia comer o outro vivo (a não ser no sentido bíblico), nem xingar a mãe, e podíamos livremente defender qualquer ponto de vista; até mesmo a permanência do Dunga. Mas tudo foi pro espaço quando o Verbo foi confundido com verborragia.
***
No princípio era o verbo, doar-se absoluto, o eterno enigma, fazer e desfazer e refazer as criaturas.
No princípio o amor, os cães sem dono, a terra tida e prometida de silêncios e quereres acreditar em todas as coisas.
Então, o filho foi levado ao alto mais alto do monte e ouviu do pai, ouro nos dentes, a profecia infame e infamante:
     – Um dia, tudo isto será teu!
***
     No princípio era o Verbo, e com ele a exigência da concordância (adjetivos pomposos e substantivos cretinos só vieram mais tarde). A concordância exigia respeito ao jogo e às suas regras. Mas não deu certo porque, infelizmente, desde o início dos tempos há indivíduos que não sabem perder.
***
“Visitante – A senhora está cansada?
Professora – Muito.
Visitante – A senhora já é muito velha?
Professora – Muito. Muito velha.
Visitante – A senhora era nova quando a escola era nova?
Professora – A escola já era muito velha quando eu ainda era nova.
Visitante – E agora?
Professora – Agora chega. Eu preciso morrer.
Visitante – E a escola? Vai morrer junto?
Professora – Não. Vai continuar envelhecendo. Vá para o seu lugar, meu filho.”
     Da peça “Aurora da minha vida”, de Naum Alves de Souza, o grande dramaturgo que perdemos esta semana.

De gregos e Troianos



     Cheguei a Salvador, na casa do meu irmão Décio - José Décio Guedes - professor pós-doutor (foi assim que ele me ensinou a dizer quando citasse seu santo nome em vão ou para alguma valia desvalida) e o encontrei estudando Grego. Ele estuda apenas pela necessidade de cumprir os vaticínios de nossa mãe: "Estude!", era o que ela dizia a ele nos primórdios dos tempos. Ele, obediente, obedeceu. Já a mim, ela dizia em seu imperativo vaticinal que toda boa mãe deve ter quando cuida da posteridade filial: "Vagabundo! Você não quer nada com a vida!" E se valia da autoridade de um chinelo para que não houvesse segundas interpretações.

     Pois bem: estudando alto e em bom som, o meu irmão fez de mim um atento troiano ouvindo Homero imitar o cego Aderaldo na feira de Caruaru. Só faltou a viola. Perguntei o porquê de ele fazer aquilo comigo, um irmão desatento dos pronomes verbais e veniais, um excluído da Gramática Normativa Brasileira, um douto da malandragem, vivente sem eira nem beira, então ele me respondeu desfilando seus conhecimentos Greco-históricos: "Fi-lo porque qui-lo. Você deixará de ser um bárbaro errante navegante das estrelas! E me obedeça porque senão eu ligo pra mamãe e conto tudo da sua vida pregressa!".

     Chantagem. Só chantagem. Foi e sempre será assim. Desde o dia que ele ouviu a expressão “vida pregressa” dita por alguém de vida pregressa duvidosa, acho que um bêbado do bar de Costinha, uma visgueira que enchia de cachaceiro aos sábados, domingos e véspera de feriado. Qualquer dá cá aquela palha, ameaçava ir às vias de fato: “Vou contar pra mamãe a sua vida pregressa”. E como eu não sabia o que significava vida pregressa, obedecia com a hombridade e altivez dos ignorantes condenados. 

     Capitulei. “Vida pregressa” tornou-se meu Cavalo de Tróia. Senti o gosto da espada de Aquiles trespassando as vísceras de Heitor. Ó, Homero, venha a mim numa manhã de sol cantar meus feitos heroicos! 

     Depois de mais de duas horas ouvindo que as raízes gregas são iguais às raízes brasileiras, diferindo apenas no tipo do solo e na estação do plantio, conforme dizia nosso pai nos estertores do Tempo, saí do apartamento do meu irmão acreditando que poderia operar um milagre em mim sem precisar frequentar igreja evangélica ou fazer promessa a Padim Ciço Romão Batista: aprender Grego por osmose. E dessa minha curta aprendizagem como ouvinte do mais castiço Grego, cheguei à incrível conclusão que em momento algum, nem por imperiosa necessidade, a expressão greco-romana "Atecubanos roma" deverá ser lida de trás pra frente em presença de moças castas ou mulheres pudendas, sob o risco de se ressuscitar Páris, Menelau, Heitor, Ulisses - e todos aqueles guerreiros que se esconderam dentro de um cavalo - , e transformar a sua vida em uma odisseia nada heroica.  

     Assim, como os meus cinco leitores podem observar, de expressão em expressão, estou me desbarbarizando lenta e gradualmente, apesar de ainda usar o palavrão ultra bárbaro “pudendas”. Mas foi por emergência lexical.