quarta-feira, 6 de junho de 2012

Cineas Santos - Da arte de amar lembranças

                                      
            Em mais de uma oportunidade, já afirmei que não tenho comércio com a morte. Nunca deixei de dormir pensando nela. A bem da verdade, a simples ideia de uma vida eterna me assusta mais que a “indesejada das gentes”. Às vezes me surpreendo repetindo Bandeira: “Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres”. Como não acredito na ressurreição, vivo o que me é dado viver sem maiores ilusões. Para meu uso (não sei se funciona com os outros), inventei um estratagema para jamais perder as pessoas que amo. Eu, simplesmente, nunca as imagino mortas. Guardo dos meus amigos e amigas que partiram as lembranças mais vívidas. Creio ser a maior homenagem que lhes posso prestar.

            Agora, por exemplo, estou pensando no poeta H. Dobal, que nos deixou há quatro anos. Impossível não sorrir das bobagens que conversávamos quando saíamos a passear pela periferia de Teresina nos finais de tarde. De repente, o poeta disparava: “Se não me falha a memória, esse panteísmo está muito bonito”. Uma frase absolutamente  surrealista. Ríamos como se aquilo fosse algo extraordinário. Nas manhãs de domingo, M. Paulo Nunes, Halan Silva, Douglas Machado, Paulo José (às vezes) e eu visitávamos o poeta. Paulo Nunes adentrava o apartamento recitando: “Poeta fui e do áspero destino...” Dobal  emendava de bate-pronto: “Até pensavam que isso fosse meu”, e ríamos da velha e surrada história do poeta medíocre que declamava o famoso soneto de José Albano, não se esquecendo de afirmar que acreditavam ser o soneto composição dele. Comigo, a senha era outro:O senhor é poeta Hildeburgo Dobal Teixeira? Sério, como se estivesse aborrecido, Dobal me recriminava: “Acho que o senhor se olvidou. O funcionário público é Hindemburgo Dobal Teixeira e não Hildemburgo; o poeta é H. Dobal”. Mais risadas. Tomávamos café com o famoso bolo frito da dona Gonçala e falávamos bobagens como adolescentes desocupados. O poeta era um excelente contador de causos, com um incrível senso de humor.

            Das muitas histórias que contava, a mais interessante, para o meu gosto, é esta:  fiscal do tesouro, Dobal chegou a um povoado no sertão do Piauí e procurou um local onde pudesse comer alguma coisa. De repente, viu uma palhoça ostentando uma placa vistosa: “Restaurante Oriental”.  O poeta comeu o único prato disponível: maxixe com carne de bode e farinha. Terminada a refeição, não se conteve. Perguntou ao dono da birosca: “O senhor serve  algum prato oriental?”.  “Não, senhor”, respondeu o cidadão. “Seus antepassados eram orientais?”. “Não, senhor”. “Como surgiu a ideia do nome do seu estabelecimento?”. Sem se fazer de rogado, o sertanejo explicou: “Foi promessa, seu moço”. Diante do espanto do poeta, prosseguiu: “Eu estava passando necessidade, fome mesmo. Aí fiz uma promessa com Nossa Senhora pra ela me orientar. Ela me orientou pra eu abrir este restaurante. Vou escapando, com a graça de Deus”. Impossível lembrar, com tristeza, de uma figura capaz de tiradas como esta. Além dos causos, Dobal deixou sua imensa poesia, alimento de que me sirvo com frequência. Está mais vivo do que nunca.

NOTA DO BLOG:
H. Dobal publicou as seguintes obras:
  • O Tempo Conseqüente (1966)
  • O Dia Sem Presságios (1970)
  • A Viagem Imperfeita (1973)
  • A Província Deserta (1974)
  • A Serra Das Confusões (1978)
  • A Cidade Substituída (1978)
  • Os Signos E As Siglas (1986)
  • Uma Antologia Provisória (1988)
  • Um Homem Particular (1987)
  • Cantiga De Folhas (1989)
  • Roteiro Sentimental E Pitoresco De Teresina (1992)
  • Ephemera (1995)
  • Grandeza E Glória Nos Letreiros De Teresina (1997)
  • Lírica (2000)
  • Gleba dos Ausentes * Uma Antologia Provisória (2002)