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domingo, 15 de outubro de 2023

O cabaré da Tininha

 

Tom Torres e Cristiana Alves

 

Nunca pergunte ao seu pai aonde ele vai, principalmente se você não pode ir junto. Lá no Junco, para perguntas sem respostas, se diz que a curiosidade matou o gato.

- Que gato, pai? Nós nem temos gatos!

- Você está querendo saber demais!

- Mas só perguntei aonde o senhor vai desse jeito.

- Desse jeito, como?

- Mais enfatiotado do que prateleira de mulher suspeita!

- Acertou! Vou justamente para um lugar de mulher suspeita: o brega de Tininha.

Esse era um diálogo entre pai e filho: José e Matheus. Este, passava horas imaginando como seria o brega da Tininha. Menor de idade, não o deixavam entrar. E a sua imaginação corria solta, pensando em cada detalhe do ambiente: as mulheres, as luzes, os homens que frequentavam, as músicas, os quartos... Imaginava Tininha do jeito que veio ao mundo, peladona, uma linda mulher e fazendo sexo com ele.

Um dia Matheus sofreu um baque que o tirou bruscamente dos devaneios eróticos com Tininha:  ficou sabendo que ela não era ela, mas ele! Tininha era um homem! Fez cara de nojo e lavou a boca com sabão.

Um dia, uma prima minha, muito amiga da falecida esposa de José, resolveu fazer uma visita a ele. Conversa vai, conversa vem, deu a hora de José ir para sua partida de futebol e ela permaneceu na casa dele, a pedido do mesmo. Matheus estava na casa da namorada. Aproveitou para tomar banho, fez café e sentou-se à mesa para tomar um cafezinho fresco. Ouviu o barulho de alguém abrindo o portão, pensou que era Matheus retornando da casa da namorada e continuou tomando seu café na mais cândida moral. 

- Matheus?!

Não era Matheus. Era uma garota, aparentando ter dezenove anos, morena, cabelos pretos e longos, olhos castanhos e faiscando fúria.

- Quem é você? – gritou a visitante, se dirigindo ameaçadoramente para a minha prima – O que você é de José? O que você faz aqui?

- Pergunta para José!

- Já perguntei! Já perguntei! – disse à beira do histerismo.

- E o que ele disse?

- Nada! Aquele safado não disse nada! Nada! Nada! Sua quenga, o que você faz aqui? Sua puta rampeira, o que você quer aqui? Sua cachorra, você some e depois de quinze dias aparece, sua... sua... sua... despinguelada!

- Se desafaste de mim!

Ela partiu para agressão física. A minha prima se esquivou e ligou para José.

- Me acuda, José, que tem uma doida aqui tentando me agredir!

            - Saia de casa e chame Matheus.

            Matheus não atendeu. A garota vomitava palavrões e a minha prima, desesperada, correu porta afora e procurou refúgio na casa vizinha, de um primo de Matheus. A garota foi atrás e parou na frente da casa, continuando os insultos:

            - Essa quenga despinguelada é a nova puta do José! Essa tabaca ensebada é a cueira daquele safado, que de dia é José e de noite é Tininha! E todo mundo aqui pensando que ele é um santo! Só se for santo do cu oco!

 

 

quarta-feira, 19 de abril de 2023

O HOMEM MAIS BRABO DE ALAGOAS

 - Eu pensei que o alagoano mais brabo fosse Pedro Matador, de Quebrangulo, mas me enganei.

- E quem é o mais brabo?

- O meu médico.

- Por que você diz isso?

- Imagina, ele teve a coragem de proibir um baiano de comer farinha. Eu apelei, usei todos os recursos da linguagem, implorei, me humilhei até: Doutor, faça isso comigo não. Dê-me uma história de amor trágico, onde os dois se suicidam no final! Dê-me um copo e meio da cicuta mais mortal que as usadas por Agatha Christie em suas histórias policiais! Dê-me uma corda de enforcado e o seu respectivo cadafalso com selo do INMETRO! Dê-me uma vida sem sentido e de total ignorância política, tal qual o QI dos bolsominions! Dê-me a beira do abismo e a palavra "siga em frente" ecoando nos meus tímpanos! Dê-me um tsunami e apenas uma boia de pneu de caminhão para flutuar! Dê-me qualquer coisa de ruim, meia hora de BBB, dez minutos de Mais Você, cinco minutos do Domingão do Faustão, mas, por favor, não me tire a farinha. Tirar a farinha de um baiano é pior do que lhe tirar a vida.

- E ele não se condoeu depois dessa choradeira? Até eu fiquei emocionado.

- Que nada! A reação dele foi chamar a atendente e dizer friamente “Conduza o paciente até a saída e se ele pedir recibo da consulta, aumente em mais cinquenta por cento”. É corajoso ou não é?

 

quarta-feira, 22 de julho de 2020

O analista que não é de Bagé

♪ ♫ Aí um analista amigo meu / disse que desse jeito não vou viver satisfeito... ♫ ♪ 

No meu eterno conflito existencial, indicaram-me um analista. Analista de madame, afiançaram-me. 

- Você já teve uma calça Lee legítima? - me perguntou o tal analista. 
- Não. Tive a Faroeste. Legítima. Comprada no camelô da Feira do Pau, em Alagoinhas. 
- E Kichute. Já teve um Kichute? 
- Não. Só usava Conga. 
- E cueca Zorba? Já usou uma Zorba, a que deixa o passarinho solto? 
- Que nada! Só samba-canção da feira da Sulanca, em Caruaru. 
- E o relógio Citizen, automático e 21 rubis, já teve um? 
- Não. Só um Seikuzinho de camelô. 
- E cigarro? Fumava Carlton, Marlboro ou Camel king size, filter? 
- Não. Só escora-carroça. Os famosos arromba-peito: Astória e Continental sem filtro, que me deixaram sem pulmão. 
- Como assim? 
- Enfisema, doutor, enfisema... nos dois pulmões. 
- E você ainda não morreu? 
- Já. Só que se esqueceram de me avisar. 
- Ah! Então faça o favor de ir embora. Seu caso não tem solução. Peça à atendente pra devolver seu dinheiro da consulta. E não apareça mais aqui que não sou pastor pra fazer milagres.


domingo, 28 de junho de 2015

A Missa


Diante das circunstâncias, eu confesso essa minha agonia que, antes de ser dilema, se transformou em paradoxo: o meu irmão Dimas não gostava de missa, de padre ou de qualquer religião. Não era ateu, porém ficava à toa na escolha do ser ou não um cético ou um crente. Antes de se casar, cumpria suas obrigações de católico, apostólico, romano todo santo dia; depois que se casou, sua cara-metade, dizendo-se agnóstica, proibiu a palavra “religião” dentro de seus domínios.

Ao contrário dele, eu vivia na sacristia, ajudando a celebrar missa e a entornar o vinho canônico nos descuidos do padre. Era um temente a Deus e me confessava toda semana para poder ter direito a degustar uma hóstia consagrada inteira e sentir a leveza do corpo diáfano flutuando no espaço, conforme o que se garantia nas aulas de catequese. Toda comunhão, uma decepção. Nunca conseguia sentir essa sensação. Era dominado por um sentimento de culpa e me sentia o mais vil pecador, ignorado ou castigado por Deus na hora de gozar do nirvana cristão. Uma vez criei coragem e confessei ao padre esse meu desapontamento. Ele creditou ao meu confessar sem estar devidamente arrependido. “Arrependei, cretino!”, esbravejou, apontando a minha culpa para uma sacristia cheia de coroinhas e beatas. Em vez de baixar a cabeça sentindo a culpa do pecado pelo não arrependimento, joguei uma praga de urubu no padre e nunca mais ele pôde ouvir confissão de alguém: na semana seguinte fugiu com uma beata que vivia, dia e noite, enchendo o saco de Santo Antônio, pedindo casamento em troca de flores e velas. Ambos foram proibidos de frequentar a sacristia e tiveram que mudar de cidade.

O paradoxo se deve ao fato dos papéis se inverterem trinta anos depois: eu perdi a fé em padre e em missa e o meu irmão Dimas se tornou um carola de carteirinha, daqueles que são convocados para ler as epístolas e está a ponto de virar diácono, com direito a fazer sermão e de ler a Bíblia quando o padre estiver com preguiça de cumprir sua obrigação canônica. Dimas reviu seus conceitos no dia que sua mulher virou discípula do seu melhor amigo, um ateu legítimo, um radical do pancosmismo, materialista convicto, discípulo de Holbach e seguidor do marxismo. Dimas tinha o maior apreço por esse seu amigo e, ao ler o bilhete deixado pela mulher, dizendo que partia com Raimundão Poeta em busca de sua afirmação interior, odiou todas as formas de ateísmo e tomou o fato como um castigo exemplar de Deus por sua pretensa heresia.

 O dilema era que, estando eu em Alagoinhas, cidade no litoral norte da Bahia, às vésperas das festas juninas, Dimas me chamou para ir à missa de Santo Antônio, que é celebrada toda terça-feira, na igreja de São Francisco de Assis, para fazer uma avaliação de sua atuação como pré-diácono.

Desde o dia que um padre se negou a rezar missa de corpo presente no enterro do meu pai, por pura preguiça, passei da indiferença para a rejeição aos padres, mesmo sabendo que algum justo – se é que existe algum – pagaria pelos pecadores. Mas também não podia fazer uma descortesia ao meu irmão. Eu era seu hóspede. Vesti a minha domingueira – apesar de ser uma terça-feira – e o acompanhei até a igreja.   

Entrar no Convento dos Frades, ou Igreja dos Capuchinhos, ou ainda Convento de São Francisco de Assis, foi como caminhar no túnel do tempo em viagem de retorno ao passado. Nada havia mudado na pintura e na decoração interna. A maioria dos fiéis presentes era de amigos ou colegas, ex-militantes do Clube São Domingos Sávio, a escola de coroinhas mantida por Frei Fidélis. A novidade era o meu irmão que nessa época só ia à missa se a mulher lhe desse a devida permissão. Como ela não dava, ele nunca ia e ainda pousava de ateu, esconjurando os padres e seus adeptos.

Os santos, os mesmos, continuavam em seus nichos laterais sob a luz de vela. Velas estas que só são apagadas na Sexta-Feira da Paixão, quando os santos são cobertos por mortalhas roxas. Apesar de ser um convento franciscano, abriga outros santos cristãos: São José, Santo Antônio, Nossa Senhora das Dores e São Domingos Sávio. São Francisco abençoa os seus fiéis na nave-mãe, no altar-mor, onde fica a sua estátua de mais ou menos um metro de altura, com o braço direito estendido em sermão aos pássaros. Acima dele, dois anjos carregam Cristo ressuscitado para o Seu trono, ao lado de Deus, o seu pai.

Atrás do altar existe uma ala em que os outros frades assistem à missa e ficam rezando o terço. É um ambiente sombrio, iluminado apenas por um refletor de um Cristo crucificado em tamanho natural, de um realismo fantástico, incomum, assustador, e Ele parece nos cobrar a culpa pelas chagas no Seu corpo, pelo Seu martírio mortal.

Se não houvesse um hiato de 30 anos e as pessoas ao meu redor não tivessem pintados os cabelos de branco – inclusive eu –, diria que o tempo transcorrido seria apenas de um sermão a outro, ou então que o convento e eu envelhecemos juntos, tricotando nosso cotidiano com a linha invisível do Tempo. 

O envelhecer junto é parar a ação do Tempo sobre o nosso corpo, é banhar-se diariamente na fonte da juventude, à luz de nossa compreensão da decadência corporal. É ficar imune à corrosão ácida da sucessão das eras ante nossos olhos. Por isso que os filhos são vistos como eternas crianças pelos pais, que se assustam quando eles dizem que já são donos do próprio nariz e jogam a realidade tal qual como ela é, sem meneio nem pinceladas floridas de aquarela. Nessa hora, teme-se olhar para o espelho e ver desnudar sua imagem real, descobrindo-se andando de mãos dadas com o implacável Senhor dos Séculos: o Tempo.

Iniciada a missa, todos de pé, o padre (ou frei, como são chamados os capuchinhos) disse o introito “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo” e, no “amém”, desapareceu atrás do altar. O coral abafou o ruído da queda. Em vez de antífonas, uma súplica desesperada do meu irmão, dublê de diácono: “Há algum médico aqui que possa socorrer o padre?” Não havia. Mas surgiu uma multidão de curiosos querendo sacudir o badalo do padre, que se levantou pálido, zonzo, aéreo. Fora só um desmaio provocado pelo intenso abafamento.

Enquanto se providenciava um substituto para continuar a missa, lembrei-me de uma outra cena, trinta e cinco anos antes. O padre, na hora da consagração do vinho, suspendeu o cálice e falou: “Do mesmo modo, ao fim da ceia, tomou o cálice em suas mãos, abençoou, e deu aos seus discípulo dizendo...” nesse exato instante ele ergueu os olhos para a janela aberta na parede lateral do altar, com vista para o imenso pomar do convento, e viu uns moleques roubando laranjas, as suas laranjas. Não se conteve e emendou a fala de Jesus com a sua indignação: “Ladrões! Canalhas! Moleques sem vergonha!”. A plateia, também chamada de assembléia, tomou um susto. Quando Jesus Cristo dissera isso? Pensou-se que o padre havia enlouquecido. Generalizou-se o tumulto. O padre quis se explicar, mas não deixaram e ele saiu do altar direto para uma casa de repouso.  Depois foi transferido para outra paróquia e dele não se soube mais notícias.

Lembranças indeléveis que teimam em aflorar nostálgicas. Lembrei-me da última missa, trinta anos atrás, e da cara de espanto de Luciene quando lhe comuniquei a minha decisão de ir embora da cidade, partir no primeiro trem no dia seguinte, com destino a Salvador. Ela chorou no meu ombro. Um choro sincero, honesto, inconformado pela perda iminente. Ela sabia que seria uma viagem só de ida, sem retorno, um adeus definitivo, sem a esperança do “até a volta”. Seria inútil qualquer apelo para ficar. A cidade já tinha chegado ao meu limite.

Por onde andará Luciene? São trinta anos sem saber notícias e, pela primeira vez nesse ínterim, pensei em seus olhos azuis marejados e escurecidos pela tristeza. E me dei conta de que nunca me preocupei com o seu destino ou de ao menos saber de seu estado físico-emocional. Ela representava o meu último elo de ligação ao passado e eu queria esquecer completamente e quase teria conseguido se não estivesse ali, no templo das últimas lembranças. Por onde andará Luciene?

O padre foi substituído e a missa reiniciada. O meu irmão leu as epístolas de São Paulo aos Coríntios e ainda teceu outros comentários. Como ele é político, sabe dominar a platéia, envolver o povo. Em outras palavras, sabe enganar a torcida.

Antes do rito da comunhão, o celebrante pediu para que saudássemos uns aos outros em nome de Cristo. Primeiro, saudei os que estavam sentados no mesmo banco que eu; depois parti para os do banco da frente; ato contínuo, me virei para saudar o povo do banco de trás e não consegui abafar um grito de surpresa:

– Luciene! 

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Vida de gado



Era Maria das Dores de batismo, porém a vida encampou Das Dores em abreviado epíteto de padecimento. Era Maria de nascer; Das Dores do viver. Maria de chorar; Das Dores por degradar. Maria de descrer; Das Dores por sofrer. Maria por esmola; Das Dores por escola. Maria da abnegação, Das Dores por devoção.

Nascera na pobreza tirana da caatinga sertaneja, sob o auspicioso canto da acauã em agouros de boas vindas. Crescera sentindo o hálito quente da fome e do desespero causado pela ausência do exercício dos músculos da boca quando os dentes esbarram em um obstáculo alimentar e o estômago regurgita em festa.

Ficou órfã aos dez anos de idade. Lembrava-se vagamente do pai. Ele não era muito de festejar os filhos e passava a maior parte do dia fora de casa em labuta de trabalho braçal nas empreitadas dos outros. Morrera de uma queda de cavalo quando apartava o gado do patrão. Não havia muita gente no velório. Só o capataz e alguns vaqueiros. E uns parentes da mãe, chorando em desespero, abraçada ao caixão. O patrão nunca procurou a família do infausto empregado para saber se ela necessitava de alguma providência.

Depois do enterro se mudaram para a casa da avó, na vila do Saem, um lugarejo mais parecido com o fim do mundo do que com um aglomerado urbano. A miséria era a mesma, porém a casa era caiada, o chão de cimento varrido e o fogão a gás. Não havia crianças na sua idade para brincar, só na escola, quando as das roças apareciam para a aula. Eram crianças assim como ela: raquíticas e tristes.

Aos doze anos um acontecimento que iria marcar toda a sua vida: a menstruação. Aconteceu assim: estavam todos na igreja para o casamento da sua mãe com um pequeno agricultor, também viúvo. O padre era da paróquia de Riachão, cidade vizinha, um moço bonito e bem falante, que deixou as mocinhas do Saem com vontade de pecar. As beatas se desmanchavam em obséquios e orações, lamentando ser um desperdício rapaz tão garboso não estar à disposição das moças casadoiras.

Iniciada a cerimônia, dito todos os ritos e discursos, na hora do “diga agora ou então se cale para sempre”, o silêncio comum desse instante fora interrompido por um grito:

– Socorro, mãe! Estou sagrando! Eu vou morrer!

Era Maria das Dores, desesperada com o sangue que jorrava entre suas pernas. Correu e abraçou a mãe, interrompendo a cerimônia, impregnando de sangue o vestido da noiva.

Durante anos não se falava outra coisa no vilarejo. Ela levou uma monumental surra do padrasto, o que serviu de motivos para outras e outras, até perder a conta e a dignidade de uma mocinha em desabrochamento.

A sua mãe foi morar com o marido na propriedade deste, e ela foi obrigada a ir junto. Nas primeiras semanas não aconteceu nada, afora a surra que levou no dia do casamento da mãe. Um mês depois veio uma notícia arrepiante: teria que deixar a escola, por ordem do padrasto. Ele alegou que a escola era o caminho para a perdição e que moça de família não podia se misturar com menino. Protestou junto à mãe e por causa disso levou uma surra de relho que a deixou com o corpo cheio de hematomas e cicatrizes.

Os meses seguintes foram o seu inferno astral. Além de apanhar de relho por motivo nenhum, era obrigada a dar conta das tarefas diárias e, à noite, tinha que fazer cafuné no pestilento do padrasto, senão dormiria com fome. O carinho era a paga da comida, o objeto de barganha para forrar o estômago. Era o assédio moral escancarado em seu lado mais cruel, contando com a cumplicidade de sua mãe.

Um dia soube que o filho de uma amiga da mãe estava em idade de casar e ela, furtivamente, lhe escreveu um bilhete propondo casamento. Não sabia o que significava casamento, mas era a sua tábua da salvação. Também não conhecia o futuro consorte, o que só veio acontecer no dia em que ele esteve em sua casa para conversar com sua mãe.

Casamento aceito, marcado, vieram as ameaças veladas do seu padrasto em cometer assassinato na igreja caso ela não desistisse do intento. Morreriam ela e o noivo. Que se cuidasse. No dia da cerimônia sua alegria só não foi maior do que seu medo por que o casamento lhe era uma incógnita. Mesmo assim disfarçou sua aflição e o seu olhar se dividia entre o padre e as atitudes do seu padrasto, que, no último momento, resolvera lhe deixar em paz e seguir o seu novo rumo. 

A noite de núpcias não foi bem uma noite de núpcias. Foi uma noite de terror. Seu marido, com hálito quente de cachaça, insistia para ela abrir as pernas e se deixar penetrar por um membro duro e viril. Ora, aquilo era o cúmulo da profanação. Seu sexo era sagrado e ser nenhum a penetraria, mesmo sendo marido. Então casamento era aquilo?

No dia seguinte ele saiu de casa e a amarrou em um esteio. Era a vingança pela noite frustrante. Ela não entendia tanta raiva e os impropérios proferidos. Ninguém havia lhe dito que seria obrigada a fazer sexo, cujo nome e proceder desconhecia. De vez em quando via os animais fazendo aquilo, mas achava que era coisa somente dos animais, que não temiam a Deus.

Quando ele chegou, na boquinha da noite, desamarrou-a, deu-lhe água e a mandou preparar a janta. Ela foi com o coração na mão, tropeçando pelos cantos, de cansaço e de letargia espiritual. Sentiu uma tontura provocada pela imobilidade das amarras.

Na cama, nova investida, nova luta, nova recusa. Mais um dia amarrada ao esteio central da casa. Era uma verdadeira tortura. No quinto dia suas forças lhe faltaram e ele a amarrou na cama e a penetrou com violência, arrancando um lancinante grito de dor e de vergonha. Era o suprassumo da humilhação, a dor moral muito mais doída do que a dor física. O hímen rompido não jorrava sangue de seus vasos sanguíneos interrompidos, mas um fluido ectoplásmico, materializando o seu espírito covardemente violentado.

Passou a noite encolhida na cama, soluçando de vergonha e de dor. Ele dormia com a felicidade estampada na cara, roncando feito porco no chiqueiro, com a consciência enterrada na lama. Quando o dia amanheceu, ele amarrou-a novamente na cama e mais uma sessão de estupro aconteceu. De nada adiantou implorar piedade e pedir misericórdia. O instinto animal falava mais alto. Ela desconjurou o dia que nasceu e amaldiçoou o marido pela humilhação daquele momento. Olhou para uma fenda no telhado, olhos aterrorizados, vendo uma réstia de luz da manhã clarear o quarto.

Pela primeira vez, desde o casamento, passou o dia desamarrada, zanzando de um lado para outro, sentindo o peso da vergonha e do rebaixamento moral. Ele só voltaria à noite, como das outras vezes. Escondeu-se em um quartinho de guardar ferramentas para poder chorar sua desdita. Horas depois se acalmou, enxugou as lágrimas, e divisou uma caixa ainda lacrada de formicida. Uma idéia macabra se formou em sua mente. Foi à cozinha, pegou o açucareiro, jogou metade do açúcar fora e completou com o veneno. Misturou bem e colocou na mesa, ao lado do bule de café. Ele costumava tomar várias xícaras de café, antes de ir para a cama, e essa noite não haveria de ser diferente. Se fosse, haveria o dia seguinte. E nada melhor do que um dia seguinte com uma noite no meio.

Depois de ouvir o réquiem encomendando a alma para a eternidade e abraçar um rosário de pessoas lamentando o suicídio, fez questão de ser a primeira a jogar a pá de terra sobre o caixão. Após certificar-se de que ele estava bem enterrado, virou as costas para o túmulo e dirigiu-se à saída do cemitério. Pela primeira vez na vida o seu rosto se expandiu em um largo sorriso de gosto e satisfação e sonhou com um possível mundo feito especialmente para as Marias das Graças, dos Risos e dos Prazeres.

sábado, 10 de maio de 2014

CINQUENTA ANOS DE SOLIDÃO


“O sul acaba no Paraguai"
 Antonio Torres, in: Essa Terra

Não me lembro o mês nem o dia. Devia ser janeiro porque era mês de férias. Podia ser qualquer dia da semana, menos domingo ou segunda-feira: não havia missa nem feira. Domingo era dia de descanso e reza. Muita reza para Nossa Senhora do Amparo e todos os santos; segunda-feira acontecia os ajustes de contas entre patrões e empregados, credores e devedores, donos de bodegas e bebedores do “pindura”. Só os feirantes partiam em seus paus-de-arara ruidosos em busca de novos mercados e retornavam na segunda-feira seguinte, abastecidos de novas mercadorias.

Acordamos na hora dos pássaros, mas nesse dia não houve reza da Ladainha de Nossa Senhora, conforme o costume da casa. Em vez de kyrie eleison, discussões, apelos e uma sentença definitiva de nossa mãe: “Não pari filhos para morrer na ignorância do cabo da enxada.” No calor da contenda, ficamos sabendo o que nos esconderam durante a agitação da semana: estávamos de partida para Alagoinhas, cidade a menos de cem quilômetros do Junco, e que era uma ida sem volta, definitiva, e somente a passeio veríamos novamente a cidade fundada por nossos tataravôs.

Não me lembro se fiquei contente ou se chorei. Lembro-me que uma vez, em romaria para a cidade de Candeias, passamos por Alagoinhas e me assustei com o tamanho da cidade. Havia um movimento intenso de automóveis pelas ruas e o povo andava apressado, como se levasse fogo a alguém. Guedes, meu irmão mais novo, quando inquirido por mim, disse não se lembrar da cidade. Na época ele era muito pequeno, quase um bebê, e não devia se lembrar mesmo.

Na pequena cidade havia apenas três carros: o Jeep dos Mandioca, a Rural Willis da Prefeitura e o caminhão de seu Dema. Era, o caminhão, o transportador de ilusões, o realizador de sonhos, o objeto do desejo quando subia a Ladeira Grande rumo ao desconhecido.

O dia não amanhecera de todo e o caminhão roncou em nossa porta da casa da rua. A agitação aumentou com a chegada de nossos vizinhos, primos, amigos e tios; até nosso avô materno resolveu aparecer para a despedida. Rostos sonolentos e tristes perambulavam dentro de casa ajudando no bota-fora. Mudança de sertanejo não há muito que se carregar: uma rede, uma caneca de café e um papagaio. Algumas vezes, um cachorro com nome de peixe.  Mas nós tínhamos algo além: três camas de mola com colchões de palha de junco, colchas de retalhos, um jogo de sofá, presente do genro Arnaldo, um amontoado de panelas de alumínio e cerâmica, e uma cristaleira, a menina dos olhos de nossa mãe. Era tudo que se tinha e parecia ser muita coisa, porém não encheu meio caminhão. O Junco era um ponto no mapa da miséria, não comportava certos luxos.

O crepúsculo matutino se dissipava no horizonte quando seu Dema buzinou em chamada de embarque. Tinha pressa em partir por causa do calor na estrada. Mais ainda para se livrar do chororô dos que partiam e dos que ficavam. A nossa mãe, embora de coração partido, não arredou um milímetro em sua decisão: apenas beijou o nosso irmão Guidório, que ficaria com o nosso pai até o fim do ano letivo; concluiria o 5º ano primário e nas férias iria para Alagoinhas prestar os “Exames de Admissão ao Ginásio”.

Ainda me lembro da cara de choro de Guidório, antevendo uma saudade que nos uniria para sempre tal qual irmãos siameses. Até aquele momento o nosso choro havia sido apenas das surras da nossa mãe quando nos flagrava em traquinagem. As lágrimas daquele instante tinham uma dor mais profunda, aguda, dilacerante. Arranhava as entranhas e sufocava a alma. Foram as primeiras de tantas outras; era o mundo cobrando o seu preço por nos ter parido.

No pé da Ladeira Grande o caminhão acelerou para pegar embalo na subida. O motor roncou medonho, perturbando a sinfonia e harmonia da Natureza, fazendo voar assustados os bem-te-vis, canários-da-terra, pintassilgos e arapongas em confabulação na beira da estrada. Além da ladeira, uma revolução se fazia. Homens e ideais se digladiavam em embate de morte. Aquém, um homem lutava bravamente para não marejar os olhos. Em sua alma havia uma revolução maior do que todas as revoluções: a de ver seus sonhos, desejos e afetos se dissiparem na poeira da estrada. Depois que o caminhão fosse tragado pela linha do horizonte nada mais seria como antes.

A pinga de outrora na bodega de Nelo para molhar a garganta antes de ganhar o caminho da roça com os alforjes cheios de mantimentos para a prole que o aguardava, agora servia para desmanchar o nó que lhe sufocava. O nó da amargura. O intrincado nó da solidão. Mal desconfiava que um dia um filho seu escreveria contando aquela sua angústia e colocaria palavras não proferidas, não que não quisesse, mas por sentir vergonha da vontade de gritar ao mundo logo cedo da manhã: “Benditas são as mulheres. Elas sabem chorar”¹.

Ao subir a Ladeira Grande, pela primeira vez pude ver o Junco lá embaixo: minúsculo, quieto, triste. Os primeiros raios de sol iluminaram a torre da igreja desafiando o espaço: imponente, impávida, querendo chegar até Deus. Uma rajada fria de vento sudeste bateu em nosso corpo em cima da carroceria do caminhão, deixando os pelos da pele eriçados. A torre da igreja sumiu entre os galhos de calumbi e olhamos para frente. O horizonte se descortinou em um azul infinito, assim como infinitas se fizeram a nossa saudade, as necessidades e humilhações no novo mundo, que nos recebeu com o mesmo sentimento de desconfiança com o qual se recebe os estrangeiros.  

¹TORRES, Antonio. Essa Terra. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.67.