Mostrando postagens com marcador Antonio Torres - Sobre Pessoas. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Antonio Torres - Sobre Pessoas. Mostrar todas as postagens

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Antonio Torres - Convidada a continuar

Continuando a republicação do livro de crônicas Sobre Pessoas, de Antonio Torres.



Um dia uma beldade paulistana baixou no Rio com um único propósito: conhecer pessoalmente o célebre senhor Carlos Drummond de Andrade. A moça bonita não era nenhuma estudante universitária em busca de ajuda para uma tese. Já vinha sendo festejada como uma esplêndida ficcionista, dona de um estilo de toque sutil e fascinante. O poeta naturalmente conhecia-lhe os dotes artísticos, pois a recebeu em sua casa, cortesmente. Mas perturbou-se diante daquela beleza que só devia nascer a cada cem anos. Saudou-a com uma frase lapidar: "Com estas lindas pernas, você não precisa escrever."

Lygia Fagundes Telles nunca mais iria se esquecer disso. Anos e anos depois daquele encontro com Drummond, e já tendo atingido o grau máximo na literatura nacional, ela iria refletir sobre as condições do escritor brasileiro, chegando a uma conclusão desoladora: "Todos os dias somos convidados a nos retirar."

Agora Lygia adentra a sala Vip da Bienal do Livro iluminando-a com o brilho de seus olhos, de seu sorriso, de seu belo rosto. O francês Jean-Christophe Rufin, o angolano José Eduardo Agualusa e este velho índio das letras abrem a roda, para lhe dar passagem, sob aplausos. Logo atrás dela chegam a Lúcia e o Luís Fernando Veríssimo. A doce Lúcia a abraça, ternamente, fortemente, dizendo: "Você é a mais bonita, a mais... a mais... a mais tudo!"

Então voltei a olhar para a Lygia. E o que vi foi o rosto de uma mulher feliz. Não só por ter ganhado o Prêmio Camões, o de maior peso da língua portuguesa, em nome, e o mais expressivo em números (100 mil euros), mas pela repercussão que lhe foi extremamente favorável. Um convite definitivo para continuar. Já havia recebido outros, é verdade. As incontáveis reedições dos seus livros; traduções around the world; o seu ingresso na Academia Brasileira de Letras; premiações variadas, inclusive da Biblioteca Nacional; o carinho dos seus leitores em toda parte. Sim, querida, não se retire. Ainda existe justiça neste mundo, por mais que tudo leve a crer no contrário. Agora só falta a Academia Sueca me dar total razão. E com os tardios pedidos de desculpas por nunca ter se lembrado de Jorge Amado, Érico Veríssimo, Guimarães Rosa e tantos outros brasileiros nobilizáveis que já se foram. Salve, rainha!



sábado, 7 de agosto de 2010

A concessão do evangélico - Antonio Torres

Crônica do livro "Sobre Pessoas", de Antonio Torres


De E a vida continua


Naquele dia, um passageiro das linhas urbanas Copacabana-Centro estava cheio de pressa. Decidiu que o melhor a fazer era pegar um táxi. Entrou num conduzido por um motorista jovem, mulato, impecavelmente vestido com uma camisa branca de mangas compridas, e que ouvia uma música, bem baixinho. Deu-lhe o destino: Paço Imperial, na Primeiro de Março. "É aquele prédio onde ficam os deputados?" Respondeu que era logo ao lado. E brincou: "Você compraria um carro usado daqueles homens?" Ao que o taxista replicou: "Há gente honesta lá. Nem todos são corruptos."

Por razões que não vêm ao caso, o passageiro levava um CD dentro de uma pasta. E nele havia uma voz de mulher, que poderia ser consoladora para as tensões do tráfego e da vida, com suas inexoráveis urgências. Perguntou ao seu condutor se se incomodaria de trocar o que estava ouvindo por aquele outro. Ele quis saber qual era o conteúdo do disco. O gênero musical - falou assim. Bem falante. Os esclarecimentos foram dados, com ênfase na beleza das canções, escritas por Vinícius de Moraes. O moço ao volante sabia vagamente de quem se tratava. Ainda assim, sentenciou:

- Só ouço música evangélica.

Imposição da sua igreja? Não, o que ia no banco traseiro não se atreveu a indagar isso ao da frente, que já acedia:

- Mas vou fazer uma concessão - disse, pondo o disco em movimento.

O passageiro agradeceu-lhe e calou-se. Passou a pensar nas suas dificuldades de lidar com religiosos fervorosos que fazem de suas crenças as únicas verdades terrestres. E cósmicas. Historicamente, as religiões levam à intolerância, que leva às guerras. No entanto tinha de respeitar a fé alheia, tábua de salvação neste mundo pós-utópico, sem nenhum projeto coletivo em que crentes e descrentes possam se agarrar. E também precisava reconhecer que o evangélico ali estava sendo tolerante.

Conheceria ele os princípios filosóficos de Lutero e Calvino, que fundamentaram o protestantismo? Mas não seria exigir demais de quem vivia em trânsito permanente?

Ao final da corrida, o motorista confessou que havia gostado do disco. "Quem canta aí?"

Era Elizete Cardoso, da qual nunca tinha ouvido falar.

Ao saltar nas barbas do Palácio Tiradentes, pensei: será que ele estava se referindo aos deputados evangélicos, quando disse que nem todos eram desonestos? Vai ver admitindo que alguns fazem suas concessões. Ao demônio.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

A mãe, as professoras e os dias de um escritor - Antonio Torres

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", de Antonio Torres

De Aprendendo o ABC



O primeiro foi aquele em que sua mãe lhe mostrou um ABC, passando em seguida a dizer os nomes das letras. Jamais esqueceria o encantamento que o desenho delas lhe provocaram logo à primeira vista. Arrumadas em filas no abecedário, formavam um conjunto enigmático. Cada uma, porém, tinha sua própria identidade e personalidade, como as coisas e as pessoas. E eram elas que davam registro a tudo o que há na Terra e no céu, compreenderia depois, quando aquela senhora chamada Durvalice começou a juntá-las em sílabas - bê-a-bá, bê-e-bé... - e, nos dias seguintes, em vocábulos que passariam ao reino das frases. Ivo-viu-a-uva...

Aquele menino nunca tinha visto uma uva. Agora sabia que se tratava de uma fruta. Mas como é, mãe? Ela também não a conhecia. Seu mundo era o das jabuticabas, murtas, graviolas, muricis, cajás, umbus.

Quando foi para a escola, num mês de março, já sabia ler a cartilha, o que deixou a professora Serafina muito feliz. Então chegou o dia 7 de Setembro. Escolhido para recitar um poema patriótico em cima de um palanque, viu a praça antes empoeirada e deserta apinhar-se de gente. Pensou que ia cair, tal era a tremedeira nas pernas. Ainda assim, soltou a sua voz gasgita: "Auriverde pendão da minha terra/ que a brisa do Brasil beija e balança/ estandarte que a luz do sol encerra/ as divinas promessas da esperança."

O público reagiu com lágrimas, num emocionado preito a uma criança capaz de memorizar todas aquelas palavras bonitas. Dali por diante, se lhe perguntassem o que queria ser quando crescesse, já tinha a resposta: Castro Alves.

Aí chegou outra professora. "Leve os meninos," disse-lhe dona Serafina. Triste notícia. Que graça teria uma escola sem meninas? A recém-chegada chamava-se Teresa, que trazia uma novidade: um livro para ser lido em voz alta, tão encardido e pobrezinho quanto aquele lugar de lavradores. Vinha a ser uma antologia de contos, crônicas e poesias. Para começar, ao personagem desta história coube um texto de José de Alencar, que nunca esqueceria: "Verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia na fronde da carnaúba." Imagine o efeito disso. Ele não fazia a menor idéia de como era o mar.

Também não tinha familiaridade com a chuva, o tema de uma redação, dificílimo, para quem vivia no polígono das secas. Asas à imaginação. Seu desempenho na escrita ganhou fama, levando-o a ser solicitado à realização de serviços mais desafiadores, por exemplo, as cartas dos apaixonados do lugar - e suas respostas. E as das chorosas mulheres dos migrantes. Estas eram de cortar o coração.

E assim iria se fazendo um escritor nascido na roça. As leituras o levaram a trocar a enxada pela caneta, com a qual viria a cavar o seu sustento, pela vida afora. E sempre a olhar as letras com o mesmo encanto com que as viu pela primeira vez.

domingo, 18 de julho de 2010

Tributo a um comunista - Antonio Torres

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres






Não, ele não espetava padres nem comia criancinhas, conforme a lenda apregoada pelos párocos em seus sermões dominicais, que transformavam os da sua classe em bichos-papões, sangüinários arautos do medo e do terror, todos condenáveis hereges. Cruz credo!

As exéquias a Apolônio de Carvalho me fizeram lembrar do comunista que conheci longe dos fervores religiosos. E em nada ele se assemelhava a um monstro. A bem dizer, foi o meu anjo da guarda. Descobri isso no meio de uma conversa que tivemos num banco de uma praça, na cidade de Alagoinhas, Bahia. Ano: 1959. Eu estava lá pensando na vida, sem saber o que fazer dela. Havia terminado o curso ginasial e o serviço militar. E estava sobrevivendo com o salário-mínimo de vendedor-pracista de uma indústria de bebidas.

Cansado de rodar o dia inteiro em cima de uma bicicleta com uma pasta na garupa, recheada de mostruários, um talão de pedidos e um maço de promissórias vencidas, sentei-me naquele banco para fazer um balanço. Estava preocupado com as vendas que fizera para bodegueiros endividados, aos quais já me afeiçoara, a ponto de me render aos seus desesperados apelos: se ficassem sem mercadorias, aí é que não iam poder pagar as contas atrasadas. Essa, porém, não iria ser a lógica do patrão, que naturalmente me poria a correr em busca de outra ocupação, já que como vendedor não passava de uma nulidade.

Foi então que chegou o comunista, com um pacote do jornal Novos Rumos, que lhe era enviado daqui do Rio para distribuição naquelas bandas. Chamava-se Mário, figura de utilidade reconhecida por se tratar do dono de uma mecânica e borracharia, tão socialmente aceitável quanto os espíritas, os crentes e os maçons. Ele sentou-se ao meu lado. Acendeu um cigarro, deu uma baforada nele, pigarreou e puxou assunto.

Depois de dizer que havia lido uns artigos que eu vinha escrevendo para uma gazetinha da cidade, perguntou-me se tinha algum plano para o futuro. ''Escrever.'' Não se mostrou surpreso com a minha resposta. ''Quer ser jornalista?'' Não foi a sua pergunta o que me surpreendeu, mas a sua garantia de que, se era isso o que eu queria, ele poderia me abrir uma porta. Na capital!

No dia seguinte, às 9 horas da manhã, aquele borracheiro que vivia todo sujo de graxa, estava à minha espera na estação ferroviária, de acordo com o combinado. De banho tomado e vestido num impecável terno branco. E já com dois bilhetes para o trem mais caro e mais bonito, tanto que era chamado de Marta Rocha, em alusão à beldade baiana que por duas polegadas a mais ou a menos (já não me lembro) não conquistou o cetro de rainha da beleza universal.

Ao chegar a Salvador, logo nos vimos diante de uma recepcionista. ''Quem deseja falar com o doutor João Falcão?'' Não foi preciso anunciar o nome. Uma voz veio lá de dentro: ''É você, Mário?''. Em questão de minutos atravessamos uma rua. E chegamos ao prédio do Jornal da Bahia, na companhia do seu dono.

Lá fiquei. Mário se foi. Deixando-me um forte motivo para querer bem aos comunistas.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Sobre Pessoas - 16 - Antonio Torres

Oficialmente a Copa do Mundo de Futebol começa hoje, com o jogo África do Sul e México. Brindo os leitores do blog com esta belíssima e emocionante crônica de Antonio Torres sobre João Saldanha.

Foi um prazer te ouvir, João

“As pessoas não morrem. Ficam encantadas”.
Guimarães Rosa – outro João

De João Saldanha



As tevês não mostraram as fotos em que ele aparecia abraçado a Ho Chi Min e Mao Tse Tung. Nem poderiam. Foram queimadas por sua filha Rutinha, em 1972. É preciso dizer quais eram as paranóias de 1972?


E se a imprensa não lhe poupou encômios, não chegou a contar muito de sua história – uma rica, atribulada e longa história, intrinsecamente ligada à própria História do nosso tempo.

João Saldanha era um arquivo vivo de acontecimentos. E adorava relembrá-los, em narrações que dariam para entreter os seus ouvintes por mil e uma noites.

Foi assim que o conheci um pouco mais, em Maricá, no litoral fluminense, sempre que passávamos um fim de semana na casa da sua filha Rutinha (a Kika), e do Rogério, que ficava perto da dele, onde o almoço era sagrado. E ai se não lhe obedecêssemos! E que chegássemos cedo. Impunha tal condição com uma desculpa: “Para os meninos aproveitarem bem a piscina”. (Os meninos eram os meus filhos, Gabriel e Tiago, que a Kika e o Rogério cuidavam como se deles fossem). E ali, numa mesa à sombra de um avarandado, meio que tomando conta das crianças, dávamos os trabalhos por iniciados, significando isto o destampar da primeira garrafa de cerveja, para destravar o seu baú de memórias.

“Põe isto no papel, João, antes que tudo se perca na espuma dos dias” – eu me dizia, sem conseguir interromper aquele senhor de uma energia impressionante que, quando desatava a falar, não parava mais. Às vezes, lá pelas tantas, ele se lembrava de que precisava escrever uma crônica, para deixar na portaria do Jornal do Brasil, a caminho do Maracanã, onde dali a pouco iria cumprir a sua tarefa de comentarista radiofônico do jogo daquele domingo. Então pegava uma máquina de escrever portátil e papel e, numa velocidade de metralhadora, batia as suas trinta linhas. “Vê aí” – dizia, me passando a página escrita, e uma caneta, para que eu corrigisse os seus erros. Mas que erros? Aqui e ali um tropeço datilográfico. E nada mais.

No embalo, ele enfiava outro papel na máquina. E aí engatava uma segunda crônica, depois outra e mais outra, e isso num tempo mais rápido do que o que levávamos para beber um copo de cerveja. E eram linhas soltas, espontâneas, escritas por alguém que jamais se submetera a ditadura alguma, muito menos à da gramática.

João Saldanha escrevia como falava. Daí o charme, a força, a extraordinária expressividade do seu texto. Ele tinha a voz da galera em seus ouvidos. E batia firme e fundo contra os que a traíam. Temperamental por natureza, não conseguia evitar os rompantes violentos, quando contrariado, como no dia em que deu um tiro à porta de uma farmácia do Leblon, na qual uma sua empregada doméstica fora destratada. A sangue frio, era uma doce figura. De uma simpatia inacreditável.

Legou-nos uma verdadeira epopéia – Os subterrâneos do futebol -, em que relata uma excursão caça-níqueis do Botafogo por países das Américas, sob o seu comando. Treinou a seleção de feras que deu o tricampeonato mundial ao Brasil, mas não recebeu os louros, por não aceitar a intervenção de um ditador de plantão - o general Emílio Garrastazu Médici -, que teria tentado meter o bedelho em seu trabalho. (Seria injusto empanar aqui os inegáveis méritos do Zagallo, o técnico que o substituiu, e teve um desempenho brilhante nos gramados do México, em 1970. Tanto quanto esquecer que João Saldanha lhe entregou um selecionado praticamente pronto para a conquista daquela Copa do Mundo, na qual nos apoderamos, definitivamente, da Taça Jules Rimet).

Meus amigos...

Engrossei a multidão que foi dizer adeus ao “João Sem Medo”. O que não se curvava ao despotismo. Nunca poupou os cartolas corruptos ou simplesmente estúpidos do futebol. Nem os jabazeiros da crônica esportiva. Naturalmente, isso lhe rendeu alguns desafetos. Porém irrisórios, se comparados aos que compareceram na hora em que ele finalmente acabava de dar todos os seus combates por encerrados, todas as suas histórias por contadas – e para a nossa desolação. Acompanhando o cortejo que o conduzia à sua última morada, vi artistas, políticos, jornalistas, publicitários, dirigentes (uns poucos), e torcedores (muitos) de futebol. Mas o mais emocionante foi quando reconheci os pescadores de Maricá, aquela gente anônima com a qual ele proseava nas noites de junho, entre as barracas da festiva pracinha da Divinéia, e que viera de longe certamente para agradecer-lhe pela graça da sua fala. E ali, com minha mulher, a Sonia,
ao lado de Ruth Viotti, a mãe da Rutinha, digo, a Kika, eu fazia minhas as palavras de Scott Fitzgerald – devidas ou indevidamente adaptadas para aquele momento -, escritas como um epitáfio a um amigo dele, chamado Ring Lardner, que também fora um cronista esportivo:


“Um grande e bom homem morreu. Não o escondamos sob flores, pelo contrário, contemplemos aquele belo rosto todo sulcado de mágoas e tribulações que talvez não estejamos equipados para compreender. Foram muitos os que dele receberam os melhores momentos de evasão e inesquecível recreio de suas vidas”.

- Vidas que seguem – como diria João Saldanha.
(23.07.90)

domingo, 16 de maio de 2010

Sobre Pessoas - 15 - Antonio Torres

Tirando o Pai de Letras


Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres

De Ricardo Ramos



“Nunca vi meu pai de camisa esporte.” Assim Ricardo Ramos começou um conto intitulado Herança. Está no seu livro Circuito fechado, publicado nos anos 70. Aplaudido pela crítica àquela época, nunca mais o vi nas livrarias. Digamos logo: esse deus (ou diabo) chamado mercado não permite que você hoje possa oferecê-lo (ou recebê-lo) como um presente, com toda certeza não tão vistoso quanto uma gravata, e menos palatável do que uma garrafa de uísque, porém de valor incomensurável.

Já na primeira frase da sua história, o filho de Graciliano Ramos nos leva a confirmar a fama de que o seu pai era um homem pouco chegado a informalidades.

A trama envolve um encontro com a sua mãe viúva, a fazer-lhe comparações com o marido, que sempre fora mais firme nas respostas às suas dúvidas. Já adulto e bem-sucedido no mundo dos negócios, e com algum reconhecimento também no meio literário, Ricardo Ramos fez neste conto o que se pode considerar uma superação de traumas da infância, graças a um processo de elaboração da poderosa memória paterna. Um caso exemplar. Sobretudo para quem teve (ou tem) um pai famoso.

Nos meus anos mais vulneráveis e juvenis, vi o Ricardo Ramos de longe. Ele havia acabado de adentrar a redação do jornal Última Hora, em São Paulo, no qual escrevia uma coluna literária semanal. Parou diante de uma mesa para pegar a correspondência que lhe era endereçada pelos leitores. E lá ficou, de pé, abrindo os envelopes. Aí alguém me disse (deve ter sido o até hoje meu amigo Ignácio de Loyola Brandão):

– Aquele ali é filho do Graciliano! – Não me lembro se o invejei pela paternidade ou pela elegância. De estatura acima da mediana, ele tinha um corpo esbelto e vestia-se como que saído de uma loja da Rua Augusta. O Loyola, então um escritor em processo, levou-me para perto dele, que me cumprimentou com amabilidade. Tempos depois, em outras circunstâncias, nos reencontramos. Saí do Rio para um evento naquela mesma São Paulo onde eu o havia visto de raspão um dia, e lá fui recebido por ele no saguão do Hotel Hilton, na Avenida Ipiranga, beirando a esquina da Consolação. Eram oito horas da noite.

Conversamos até as três da manhã. Mas não tive coragem de perguntar nada sobre as suas relações com o seu pai. Coisas assim: se o velho Graça era tão rígido quanto demonstrava em seus textos, a ponto de quando um filho o chateava, bater-lhe na cabeça com um facão, conforme se contava. E se sentia as mãos do mestre agarrando as suas, quando escrevia. Ou se o fato de ser filho de quem era atrapalhava-lhe a carreira literária, sempre sujeita a uma comparação incômoda. Nada disso. Falamos de outras coisas.

Ricardo Ramos encerrou aquela memorável noite dizendo-me que Graciliano, mesmo tendo tido em vida o seu valor reconhecido, enquanto viveu não viu nenhum dos livros que escreveu vender sequer 3 mil exemplares. Nem o Vidas secas, imagine, que hoje vende horrores. Se o seu tempo lhe foi padrasto, em compensação a posteridade lhe tem sido uma boa mãe.

domingo, 18 de abril de 2010

Rubem Fonseca aos 80 - Antonio Torres



Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres


De Rubem Fonseca 1



Meninos, consegui realizar uma proeza, certamente almejada por muitos de vocês: entrevistar Rubem Fonseca. Foi uma entrevista-relâmpago, é verdade. E o pior, digo, o melhor, é que demos muitas risadas e acabei esquecendo o que era mesmo que eu queria lhe perguntar. Coisas assim: "Sabeis vós que sois o escritor que mais influência exerce sobre os jovens que estão se iniciando na literatura? Isso vos causa algum incômodo ou é um presente para os vossos oitenta anos? Tendes algum conselho para a rapeize? Como vedes o mundo, depois da queda do Muro de Berlim, o que aliás presenciastes, in loco?"

Não dá para ser pomposo, ou grave, ou pedante com o Rubem Nosso Bem, como o chamamos aqui em casa. Ele não faz o gênero sabichão, sempre a tirar da cartola uma declaração prêt-à-porter, que vá influir nos destinos da humanidade. Quem quiser saber qual é a sua visão desse nosso tempo que leia os seus livros e pronto. A mim, o que mais impressiona em Rubem Fonseca é a poda que ele faz na "última flor do Lácio," extirpando-lhe os caules vocabulares de seus barrocos galhos lusitanos que impregnaram a retórica dos escribas-comendadores. Mas, se um dia me pedirem para apontar apenas uma de suas virtudes, diria, na bucha: "É um homem que sabe rir." Quando lhe perguntei como estava se sentindo ao fazer 80 anos, ele respondeu, ágil como sempre foi: "O segredo é não ligar para isso. Dane-se a idade. Veja o exemplo do Oscar Niemeyer, que já passou dos 90, e está aí, inteirão." Ele também.

Só o vi fora de forma uma vez. Foi em Santiago de Cuba, quando participamos do júri do Prêmio Casa de las Américas, em 1983. Zé Rubem apareceu à mesa do café da manhã de farol baixo, e cheio de olheiras. "Que aconteceu, homem?"

Então soubemos. Um casal, em sua noite de núpcias, hospedara-se numa cabana parede a parede com a dele, fazendo-o perder o sono.

Imaginem o constrangimento de quem teve que ouvir, pela madrugada afora, uma nubente a uivar, sem surdina: "No, no, papito... Si, si, papito... No, no, papito..."

Ele contou isso transformando o seu drama em comédia. Impagável Rubem Fonseca: saúde, sucesso e... risadas! Rir não é o melhor remédio?



segunda-feira, 5 de abril de 2010

Sobre Pessoas - 13



A BELA TONIA E O VELHO BRAGA

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres

De Tonia Carrero e Rubem Braga



Primeiro, recordo uma noite na Fiorentina, ali no Leme, aqui no Rio, quando a senhora diretora da Casa Laura Alvim, Eliana Caruso, me pôs a uma mesa, ao lado da não menos amável Tônia Carrero, que sempre associei a duas figuras tão ilustres quanto ela: Paulo Autran e Rubem Braga. Associação, aliás, que deriva de sua própria história – de vida e afetos. Mas não foi sobre o sabiá da crônica que conversamos então. Consumimos o tempo numa única rememoração, em torno da vez em que Tônia Carrero e Paulo Autran estiveram na cidade (portuguesa, com certeza) do Porto, para levar à cena a peça Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello, num cinemão completamente lotado. O público portuense, contido por natureza, não lhes poupou aplausos.

No dia seguinte, criei coragem e fui procurá-la no hotel em que se hospedara, com uma única fala decorada: “Sou brasileiro e seu fã”. E perdi a respiração ao me ver a poucos passos de distância de uma beleza que só devia nascer a cada cem anos. “Você mora aqui?”, ela me perguntou, com um sorriso piedoso. “Tadinho! Como está agüentando todo esse frio?” Sim, o inverno do Porto é muito longo, sombrio, sujeito a chuvas de granizo, um castigo para quem nasceu nos trópicos. O papo foi rápido porque ela já estava de malas prontas. Paulo Autran ficou. E voltou a subir no mesmo palco, para um recital de poesias, o que sempre fez, magistralmente. Naquela outra noite, porém, sem dividi-lo com a Tônia, ele ficou parecendo um verso de pé quebrado.

Desde aquele encontro com lady Carrero na Fiorentina, venho pensando em contar umas histórias do seu outro amigo. Afinal, também recentemente, ela foi a primeira celebridade convocada para a inauguração de um memorial a Rubem Braga, em Cachoeiro do Itapemirim, a cidade do Espírito Santo onde o célebre cronista nasceu.

A primeira delas se tornou lendária no meio jornalístico carioca. É do seu tempo na revista Manchete, onde escrevia toda semana, assim como Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Henrique Pongetti. Um dia, Rubem Braga decidiu ir à sede da empresa, para reivindicar aumento de salário. “O quê? Cinqüenta contos por uma crônica?” – perguntou-lhe o patrão, que se chamava Adolfo Bloch, à beira da apoplexia. Calmamente, Rubem respondeu: “Sim. Por uma crônica e cinqüenta anos de vida”.

Outra: o poeta português Alexandre O’Neill — já devidamente apresentado neste livro — estava num café de Paris, com uma amiga brasileira. Ao olhar em volta, viu um homem sozinho, que tinha a cara de Rubem Braga. “É o próprio”, ela garantiu-lhe. “Mas não vá puxar conversa. Deixe-o na paz da sua solidão”. O’Neill ficou um tempo a observá-lo. Achou-o com um rosto triste. E pensou: “Vai ver é por nunca ter escrito um romance”. Uma conclusão meio doida, de quem, provavelmente, já tinha bebido além da conta.

Há mais uma que entrou para o anedotário como um clássico do gênero. Caribé, o artista argentino que virou baiano, estava de passagem marcada para o Rio. “Rubem Braga vai hospedar você”, disse-lhe Jorge Amado, passando-lhe o endereço da famosa cobertura da Barão da Torre. E assim ele veio, com garantia de casa e comida. Na hora de voltar à Bahia, dirigiu-se ao seu anfitrião, para despedir-se dele e lhe agradecer pela hospitalidade. E acrescentou: “Rubem, durante esses dias aqui, observei todos os seus movimentos. Por isso vou lhe dizer uma coisa: perto de você, Dorival Caymmi é um operário-padrão”.

Na verdade, ele dava duro para viver, como escritor e editor, ao seu tempo de sócio de Fernando Sabino, na Sabiá. Fui levado a conhecê-lo, sem aviso prévio, pelas mãos da pintora Regina Vater. Ela era amiga do velho Braga, a ponto de tocar-lhe na porta, sem telefonar antes.

“Peguem uísque e gelo e se sirvam”, ele disse. Depois, a passos lentos, caminhou para uma rede. E nela, continuou a ler um livro, apanhado no chão. Era o Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, que iria publicar, com o sucesso que se sabe. Saí de perto, para não incomodá-lo mais. Aquele que tinha fama de preguiçoso estava trabalhando, enquanto parecia descansar. Vida de artista.




domingo, 28 de março de 2010

Sobre Pessoas - 12


Blues para Cortázar

(E para o saxofonista Rodolfo Novaes)

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres



Ele não foi um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Pertencia a outra geração. Adorava mesmo era Duke Ellington, Louis Armstrong, os velhos cantores de blues. E podia ficar horas a fio falando de Thelonious Monk. Isso desde que ouviu no rádio, pela primeira vez, uma estranha música ainda desconhecida nas suas bandas.

Não custou a perceber que o que o encantava nessa música era o fenômeno maravilhoso que constitui a sua essência: a improvisação. Mas, no começo desta história, o garoto tornou-se apenas um chato, aos ouvidos da família. Porque ele só sintonizava o rádio num programa que tocava a tal música. O que dava sempre em briga. Seus pais detestavam aquela coisa de negros. Queriam ouvir mesmo era um tango, música de brancos. Afinal, estavam na Argentina.

O garoto cresceu, foi embora e se tornou um dos escritores mais importantes do mundo. E nunca perdeu a sua paixão pelo jazz. Sorte dos seus leitores. Uma de suas melhores histórias é uma viagem em torno do coração e mente, corpo e alma de um saxofonista drogado – e genial. Que soprava o seu instrumento como se quisesse querendo arrebentar o mundo, a música – toda a música havida antes dele – e a si mesmo.

O conto se chama O perseguidor. Nele, Júlio Cortázar mergulha em águas pouco navegadas até o fundo da esquizofrenia de um artista de gênio, a apostar corrida com a loucura e a morte. Era mais um daqueles negros fantásticos que enchiam de calor as noites de Paris. Só que este tinha toda a pinta de um Charlie Parker, a quem a história é dedicada. Logo, não era apenas mais um.

Tudo isto vem a propósito de um livro publicado no Brasil pela Editora José Olympio, em tradução de Eric Nepomuceno. Trata-se de O fascínio das palavras, que reúne entrevistas de Júlio Cortázar ao uruguaio Omar Prego. Para este leitor, o livro se torna ainda mais fascinante quando ele fala de jazz, da sua relação com a literatura, aquela coisa da escrita automática, de improvisação da escrita, do jazz como o equivalente ao surrealismo nas letras, do swing que pode dar ritmo a uma frase capaz de entrar no leitor por via subliminar, atingindo sua inteligência sem que ele perceba. E mais: um conto tem que chegar ao fim como chega ao fim uma grande improvisação de jazz ou uma sinfonia de Mozart. E assim o contista vencerá o leitor por nocaute.

Por essas e outras é que achei que havia qualquer coisa de O perseguidor no filme Round midnight (Por volta da meia noite), do franco-suíço Bertrand Tavernier. Tanto quanto senti a falta desse conto no filme Bird, de Clint Eastwood, que conta a história de Charlie Parker.

Júlio Cortázar não chegou a vê-los. Ele morreu em 1984. E perdeu dois bons momentos de jazz no cinema. Mas muitos de seus leitores ainda continuam por aqui. Nem que seja para ouvir um blues em sua homenagem.




sábado, 20 de março de 2010

A Hospitalidade Curitibana: Sobre Pessoas 11




A minha companheira Edna foi a Curitiba, a trabalho. No fim da jornada ela teve que estender sua estadia por mais uns dias. Desta feita, a convite dos amigos Rita e Andrioli, ambos colaboradores deste blog, os quais se esmeraram em gentilezas. Edna virou hóspede de Rita, sua irmã Ana Silvia e D. Lili, mãe de ambas. Infelizmente a Ana virou a fotógrafa oficial e não pôde ser fotografada.

Edna voltou impressionada com a hospitalidade curitibana, principalmente desses amigos virtuais e que agora se tornaram reais. E, em homenagem a eles, o escritor Antonio Torres me pediu para pular a sequência das crônicas do livro Sobre Pessoas e publicar, hoje, uma que também faz parte do livro e que homenageia Curitiba.

Seu pedido é uma ordem, mestre. E o carinho alabahiano ao povo curitibano.



Na cidade do invisível Dalton Trevisan
Por Antonio Torres

Para Elisângela Alves

Tudo que sabia dela era de ouvir dizer. Coisas assim: que no fundo de cada filho de família dorme um vampiro, como o Nelsinho, o Delicado, ou o Dalton, o Contista, suplicantes de beijos das virgens - e de suas carótidas. Mesmo sendo refratários à luz do dia, tornam-se invisíveis, só para contrariar os bisbilhoteiros que a visitam na vã esperança de identificá-los. Quais seriam eles, entre aqueles encostados num balcão, de olho nas meninas que passam, sem lhes prestar atenção? Se é isto o que você quer saber, pode ter certeza de que perdeu a viagem. No entanto, acredite: bem diante dos seus olhos, um deles estará às raias do êxtase, ante a esplêndida visão de uma viúva que acaba de sair de um carro: ''Ela está de preto... Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!''.

Impossível não associar Curitiba ao ritual de seus pequenos vampiros, súditos de Onã, priápicos inofensivos a enxugar conhaques, para afogar os dissabores de uma adolescência espinhenta. Ou a um humorístico jogo de palavras que certamente lhe soa tão espirituoso quanto incômodo: ''Ritiba quer dizer 'do mundo'''. E ainda à definição que lhe cunhou a roqueira Rita Lee: ''Uma cidade arrumadinha, bonitinha, com uma gente educadinha''. Só que esta cidade, justa ou injustamente reduzida a diminutivos, é uma das que mais crescem no país.

Fiz um bordejo por lá, a convite da Confraria da Palavra. Palestras. Na PUC-PR e numa simpática Feira de Livros na Praça Osório. Quando cheguei, Carlos Heitor Cony já tinha pegado o avião de volta. Logo outro carioca talentoso, o Fernando Molica, deu o ar da sua graça para um reforço à programação cultural do evento e, a bem dizer, preencher um pouco a lacuna deixada pelo experiente Cony.

Para mim, foi como ir a Roma e não ver o papa, pois Dalton Trevisan, o sumo pontífice das letras paranaenses, ficou famoso também pela invisibilidade. Recluso sistemático, não se sabe se o ermitão Dalton existe ou é ficção. Modo de dizer. Miguel Sanches Neto, um novo valor que se alevanta no Sul, uma vez me garantiu que costuma bater em seus umbrais, e que ele lhe abre a porta, numa prova inequívoca de que sua existência é real, embora escondida a sete chaves da curiosidade pública.

Esse ourives de palavras - um gênio minimalista - foge do assédio como o diabo da cruz. E nisso faz lembrar o finado Scott Fitzgerald, quando dizia que não podia suportar a visita de celtas, ingleses, políticos, estrangeiros, virginianos, lojistas, intermediários em geral, todos os escritores (evitava os escritores com o maior cuidado, porque eles podem perpetuar a agitação e o desassossego melhor do que ninguém) - e todas as classes como classes, a maioria delas pelos seus membros...

Seja lá qual tenha sido o motivo, o certo é que o criador de O vampiro de Curitiba não foi à feira. Ainda assim, a praça atraiu de poetas a loucos. Nenhum dos autores convidados conseguiu causar mais impacto do que uma mendiga. Esta roubou a cena diante de uma mesa de autógrafos, ao bradar, insistentemente: ''Senhor vereador, eu quero uma saia nova!''. Acabou sendo tratada respeitosamente. Aí dei razão a Rita Lee: em Curitiba há uma gente bem educada, sim senhora!

domingo, 7 de março de 2010

Sobre Pessoas - 10

Pequeno perfil de um grande homem


Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres



De Barão do Rio Branco


José Maria da Silva Paranhos Júnior não deve ser um nome familiar a toda esta nação. Mas se lembrarmos que se trata do Barão do Rio Branco, aí a sua figura cresce e adquire a dimensão de maior brasileiro do seu tempo, tido e havido como “exemplo da inteligência e da cultura, em simultaneidade com o esforço intelectual meticuloso, a serviço das boas causas do Estado”.

E mais:

“Todo êxito de sua vida resultou do estudo e do trabalho, da meditação e da experiência nas atividades a que se devotou”.

Ele nasceu em 1845, no Rio de Janeiro, onde faleceu em 1912, ano em que a Avenida Central, no centro da cidade, passou a se chamar Rio Branco, em sua homenagem, como aconteceu com a hoje capital do Acre. Foi aluno do Colégio Pedro II – e mais tarde seu professor. Estudou na Faculdade de São Paulo e formou-se em Recife. Historiador e geógrafo, elegeu-se deputado por Mato Grosso, em duas legislaturas. Em 1869, participou da fundação do jornal A Nação. Ministro das Relações Exteriores em três governos republicanos sucessivos, deu o contorno definitivo ao mapa do Brasil, dilatando as nossas fronteiras de forma pacífica.

Graças às suas gestões diplomáticas, a política externa do país no último decênio do século 19 e no primeiro do século 20 alcançou um grande sucesso. E o território nacional ganhou cerca de um milhão de quilômetros quadrados, sem derramamento de sangue em disputas com a Argentina, Peru e Bolívia, ou com a França, em função da nossa divisa com a Guiana Francesa.

Este erudito que se tornou membro da ABL e queria ser tão somente um estudioso, teve um currículo impressionante. Viveu vinte e seis anos no exterior. Cônsul em Liverpool, Comissário do Governo Imperial em São Petersburgo, Ministro em Berlim, além de outros envolvimentos em trabalhos de representação (Suíça, EUA), leu, pesquisou, aprendeu idiomas estrangeiros e escreveu muito. Quando surgiu o Jornal do Brasil, em 1891, fundado pelo seu amigo Rodolfo Dantas, deu início às suas Efemérides brasileiras, publicadas em livro no ano seguinte. Suas conferências e publicações na Europa deram-lhe fama mundial.

Rui Barbosa chegou a apresentá-lo como candidato à presidência da República – por ser “um nome universal, uma reputação imaculada, uma glória brasileira de popularidade sem rival” etc. O Barão não se curvou a tão glorificante louvação. Recusou a candidatura. Mas, diplomaticamente, convidou o Conselheiro para beber uma cervejinha no Bico Doce, que ainda existe, no Beco das Cancelas, uma passagem da Rua do Rosário para a Buenos Aires, no Centro do Rio. No histórico daquele bar centenário, consta que os dois costumavam freqüentá-lo. Só que Rui Barbosa era um mau bebedor, diz a lenda, por ser fraco para a bebida. Quanto ao fígado do Barão, suportava os teores alcoólicos sem maiores problemas. Ainda assim ele pegava leve.

Pois é. O “maior assunto do Brasil” deu nome a um território (o atual estado de Roraima), a uma Copa de futebol que já foi disputada entre a nossa seleção e a do Uruguai, a um município de Mato Grosso, a um forte em São Luís (Ma), ao instituto que forma os nossos diplomatas e à condecoração máxima com a qual um brasileiro pode ser distinguido, a Ordem de Rio Branco, minimizada até ao rés do chão pela diplomacia contemporânea, ao conferi-la a um deputado de baixa estatura política, de quem alguém que conheça a sua folha corrida jamais lhe compraria um carro usado.

Se na tumba do grande homem ainda resta ossos, imaginemos o quanto não devem ter chacoalhado, em retumbante horror.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Sobre Pessoas - 9

A bela Susana do vice-rei

Crônica do livro "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres


De Luís Vasconcelos de Sousa


Devo-a a outra bela, Vera Barroso, a apresentadora dos Cadernos de cinema, da TVE, com quem partilho o fascínio pelas estórias da história do Rio. Esta aqui, contada por ela nos bastidores do seu programa, encantou o maestro João Guilherme Ripper, a ponto de ele prometer transformá-la numa ópera. Trata-se de uma lenda romântica, que pode ser conferida à página 97 do livro Rio de Janeiro em seus quatrocentos anos, publicado pela Record em 1965, no capítulo Século XVIII, escrito por Cláudio Bardy.

Começa com a chegada aqui – vindo de Lisboa -, do vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza, no ano de 1779, para dar início ao governo mais celebrado pelos historiadores, antes de D. João VI elevar a capital da colônia à do reino unido do Brasil, Portugal e Algarves, tornando-a o centro do poder imperial lusitano. Logo de cara, ele se deslumbrou com o quadro maravilhoso da natureza, a lhe oferecer um painel de sonho.

Mas se horrorizou com “a mancha brutal na paisagem radiosa”, no dizer de outro Luís, o Edmundo. As casas eram feias. As ruas, sujas. As águas, fétidas. O conjunto exasperava. Para piorar, Luís de Vasconcelos constatou que os colonos portugueses não tinham vindo para fazer um país, mas para se enriquecerem rapidamente, nem que para isso tivessem de arrasar a terra.

A situação deplorável do Rio não o levou a tapar o nariz e dar-lhe as costas. Pôs-se a andar, já com planos de embelezamento do espaço urbano, abertura de avenidas e saneamento de suas condições insalubres. Jovem, galante, dinâmico e humanitário, condoeu-se com a sorte dos escravos, que eram castigados pelos seus senhores, com exagerado rigor. Ele proibiu a aplicação da justiça a domicílio, passando-a à alçada do Estado.

Suas andanças o levaram à pestilenta lagoa do Boqueirão da Ajuda, uma verdadeira chaga encravada na cidade, tendo nas cercanias apenas casebres miseráveis. Para espanto geral, o vice-rei era freqüentemente visto caminhando a pé pelas margens infectas da lagoa, acompanhado de Valentim da Fonseca e Silva, o Mestre Valentim.

No imaginário popular, a assiduidade de Luís de Vasconcelos e Souza àquelas bandas tinha razões que só o seu coração podia explicar. Ele estava perdido de amor por uma moça bonita chamada Susana, que vivia na mais pobre choupana à beira do Boqueirão, com um coqueiro solitário à porta.

Escondendo-se por trás de uma moita, o vice-rei a contemplava à distância, adorando-a platonicamente. Esse amor secreto o teria levado à decisão de aterrar a lagoa.

O aterro foi confiado ao Mestre Valentim, que arborizou toda a área. Também fez um jardim, no qual colocou pavilhões fechados, com murais e muitas obras de arte, entre elas a Fonte dos Amores. Para esta, ele fundiu dois jacarés de bronze entrelaçados. Por ordens do apaixonado vice-rei, Valentim pôs nessa fonte um coqueiro de ferro. Era uma reprodução daquele que havia à porta da bela Susana, a musa inspiradora da construção do Passeio Público, que em tempos menos perigosos deve ter sido um lugar tranqüilo para os namorados.

Resta-nos imaginar se a história da beldade plebéia teve ou não um final de um conto de fadas.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Sobre Pessoas - 8

Quando o Rio teve um governador chamado Vaca

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres

De René Duguay-Trouin


Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1711. A cidade amanheceu encoberta. Ajudada pelo nevoeiro e fortes ventos, uma esquadra de 18 navios, 700 canhões e cerca de 6 mil homens, comandada pelo general René Duguay-Trouin, corsário do rei Luís XIV, iria forçar a barra e escapar do poder de fogo das fortalezas de Santa Cruz e de São João. Em poucas horas, fundeava cara a cara com o seu alvo, mandando-lhe bala, para desespero da população. Não suportando a superioridade bélica dos franceses, e a destreza de suas manobras, o Rio se rendeu. O governador Francisco de Castro Morais fugiu. A sua fuga foi seguida pelas milícias e a população.

Duguay-Trouin tomou e assaltou uma cidade vazia, então a mais rica do império colonial português, graças à sua condição de entreposto do ouro das Minas Gerias, que aqui era embarcado para Lisboa. Ele a fez de refém durante os 50 dias em que aguardou o pagamento do resgate, para devolvê-la a seus habitantes, ameaçando reduzi-la a cinzas, caso não fosse atendido. Houve de tudo nesse dramático episódio: tergiversações, pusilanimidade, heroísmo e covardia. Não faltou quem tirasse proveito da situação, em negociações particulares com os invasores. Do seu esconderijo, o governador mimava-os com presentes. E deles recebia, em agradecimento, preciosas garrafas de vinho. Um padre os regalava com carruagens de mulheres.

Quando foram embora, com os seus navios abarrotados de ouro e prata, deixaram a cidade bombardeada, destruída, dilapidada. E de moral no chinelo. Logo instaurou-se uma revolta popular sem precedentes. Apelidado de Vaca, Francisco de Castro Morais por pouco não foi trucidado. Acusado de traição, e de entregar covardemente os bens públicos e privados aos invasores, sem lhes oferecer resistência, não escapou da condenação ao degredo na Índia, nem do confisco de seus bens. E ele era mesmo muito rico, pois era pago a peso de ouro pelo seu cargo, fora as malversações imagináveis.

A invasão francesa teve como conseqüência uma outra: a dos juizes togados de Lisboa, enviados por D. João V. Em meio à agitação dos militares, do Senado da Câmara, da nobreza e dos súditos em geral do reino, instalou-se o Tribunal da Devassa, com uma alçada de 7 ministros. Os trabalhos se arrastaram infinitamente. Mas não acabaram em pizza ou seus equivalentes à época. As sentenças daqueles 7 homens não pouparam nenhum dos acusados. De nada adiantaram os argumentos do governador. Em sua própria defesa, alegou ter sido abandonado por todos. E que havia entregado o ouro aos bandidos para evitar a destruição de tudo que estava sob a mira dos canhões deles.

Todas as punições foram severas. Do desterro à pena de morte. E assim conseguiu-se aplacar a indignação de um povo em estado de descrença total em relação às autoridades.

Enquanto o mundo girou e a Lusitana rodou, Devassa virou marca de cerveja e as vacas voltaram a pastar numa boa.

domingo, 31 de janeiro de 2010

São Sebastião, o rei e o Rio

Do livro de Crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres

De São Sebastião



Não é sem motivo que o nome dele está associado ao do Rio de Janeiro. Antes de contá-lo aqui, recordemos a noite em que o padre Anchieta sonhou com São Sebastião, enquanto dormia atrás das barricadas de Mem de Sá, o comandante da conquista definitiva do Rio para os portugueses, então súditos de um rei homônimo do santo perpetuado pelas estampas religiosas, em reproduções imaginárias de seu corpo crivado de flechas.

Tal imagem tornou-se emblemática da intolerância, a simbolizar o martírio dos cristãos no Império Romano, e não só na era de Pilatos. Basta lembrar que Diocleciano (Caius Aurelius Velerius Diocles Diocletianus), proclamado imperador em 284 depois de Cristo, viria a declarar o cristianismo incompatível com o poder do Estado, desencadeando a “grande perseguição” que fez mártires na Itália, na África e no Oriente, até o reinado de Constantino I - de 306 a 337 -, o convertedor de Roma à cristandade.

A história do padroeiro do Rio de Janeiro começa pelo fim. Oficial romano do século III, ao ser denunciado como cristão foi condenado às flechadas, das quais sobreviveu. Mas não resistiu a outras torturas. Morreu flagelado no fogo. No Brasil, tornou-se um santo popular, identificado a Oxóssi nos cultos afro-brasileiros, quer a Igreja Católica considere (melhor dizendo, tolere) a nossa diversidade cultural ou não.

Foi Estácio de Sá quem acrescentou o nome de São Sebastião ao do Rio, ao fundar a cidade, no dia 1º de março de 1565. E o fez em honra a outro Sebastião, nascido em Lisboa em 1554, e rei desde os três anos de idade, já chamado de O Desejado, por ter vindo ao mundo depois da morte do seu pai, D. João. Ele só assumiria o poder em 1568, ou seja, três anos depois de ser homenageado à distância, no sopé do morro Cara de Cão, vizinho do Pão de Açúcar, por um capitão do exército da sua mãe, a regente D. Catarina, incumbido de expulsar os franceses, e liquidar a Confederação dos Tamoios, os maiores entraves à ocupação lusitana nestas paragens.

Dom Sebastião acabou tendo um trágico destino. Sua obstinação pelas conquistas de territórios africanos, e de entrar pessoalmente em combate, o levou a desaparecer em Alcácer-Quibir, no ano de 1578. Portugal viveu séculos à espera da sua volta. A expectativa desse impossível retorno gerou um estado de espírito passadista, o sebastianismo, de longa duração e alcance, pois chegou a este lado do Atlântico, influenciando o movimento insurrecional anti-republicano que provocou a Guerra de Canudos, entre 1894 e 1997.

Os historiadores também fizeram de Dom Sebastião um tipo inesquecível. É um dos reis portugueses mais estudados. E o poeta Fernando Pessoa não lhe negou verso, no papel de conquistador falhado, a desfazer a eterna ilusão do seu regresso:

Louco, sim, louco porque quis grandeza.
Qual a sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Voltemos a São Sebastião. Na noite de 18 de janeiro de 1567, José de Anchieta sonhou com ele, a bordo de um dos navios comandados por Mem de Sá, que, ao amanhecer do dia seguinte, iria atacar – junto com seu sobrinho Estácio -, os redutos do cacique Aimberê, na aldeia de Uruçumirim, hoje o bairro do Flamengo. No sonho de Anchieta, São Sebastião aparecia no meio da tropa, matando um índio atrás do outro. Como em dois dias de batalha dos cristãos não sobrou um único canibal, o apóstolo do Brasil exultou com a premonição.

Barbaridade, meu santo.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Sobre Pessoas - 7

O carnaval dos canibais

Por Antonio Torres

De Tamoios


Em priscas eras, vivia no Rio de Janeiro um povo festeiro, mas também chegado a uma guerra. Acabou sendo varrido do mapa nas batalhas de 1565 e 1567, que resultaram na fundação da cidade e na sua conquista definitiva pelos portugueses, quando não sobrou uma única cabeça de índio para contar a história.

No entanto, devemos a esse velho povo o gentílico carioca, pronunciado pela primeira vez num dia qualquer do ano de 1531, quase três décadas depois de o navegador Gonçalo Coelho, a serviço do rei de Portugal, D. Manuel I, o Venturoso, e com o florentino Américo Vespúcio a bordo – aquele que deu o nome ao continente americano -, haver feito a descoberta do Rio.

Os primeiros europeus a darem com os seus costados nestas águas de sonho, som e fúria, não viram a cor do que procuravam: o ouro. Só avistaram índio, papagaio e pimenta, o que já estavam fartos de ver, desde o Rio Grande do Norte, onde batizaram o primeiro acidente geográfico em que encostaram com o nome de Cabo de São Roque, porque era o dia desse santo. Arribaram para o Sul, indo até a Patagônia. Vinte e nove anos à frente, um certo capitão Martim Afonso de Souza desembarcou a sua tropa na praia do Flamengo, que então se chamava Uruçumirim. As mulheres da aldeia esfregaram as mãos e lamberam os beiços:

- Oba! A nossa comida vem andando até nós!

Os seus homens ficaram atentos a todos os movimentos dos recém-chegados. Mas não foi logo de cara que o tacape cantou na moleira deles. Deram-lhes um tempo. Os navegantes lusos souberam aproveitá-lo. E construíram uma ferraria para conserto de navios. Os indígenas acharam a construção muito engraçada. “Carioca, carioca!”, exclamaram, às gargalhadas. O que significava isto? Casa de branco. Mais tarde, carioca passaria a designar um rio que vinha do Cosme Velho e desaguava por ali onde é hoje as confluências das ruas Paissandu e Barão do Flamengo - e também os habitantes da cidade.

Ao levantar acampamento para ir fundar o povoado de São Vicente, no litoral de São Paulo, Martim Afonso deixou alguns de seus comandados, em missão exploratória. Mal sabiam eles que estavam sendo entregues, de mão beijada, aos temíveis canibais, que iriam lhes dar combate, para impedi-los de adentrar a vida ardente da imensa mata. Foram aprisionados e devorados.

Como marinheiros de primeira viagem, aqueles portugueses desconheciam as convenções de guerra nessas terras ignotas. Perdê-la, significava ir para o sacrifício. E este se fazia em festa, numa comemoração espetacular de uma vitória no campo de batalha, que durava muitas horas. Cantava-se, dançava-se, comia-se à tripa forra e enchia-se a cara com uma birita extraída do milho, que se chamava cauim.

Todas as tribos amigas, das aldeias próximas às mais distantes, eram convidadas. Assim, a festança atraía um público de mais de quatro mil participantes. Os folguedos terminavam com um banquete. De carne humana.

Os rituais canibalísticos eram a celebração da coragem do inimigo vencido. Ao devorá-lo, os vencedores estariam recuperando as energias despendidas nos combates. Os prisioneiros deixavam-se sacrificar de crista erguida. Questão de honra. Todos se sujeitavam ao tacape corajosamente, dizendo:

- Os meus me vingarão!

Isso dava sentido à execução e valor à carne do executado.

Os tupinambás, o velho povo do Rio de Janeiro desde milênios antes de os brancos chegarem, costumavam tratar as suas vítimas com algumas formalidades. Primeiro, os vencidos capturados passavam por um período de engorda e cuidados especiais, como o oferecimento de mulheres. Depois, eram colocados no centro de um círculo, para participarem dos ensaios das cantorias para a grande cerimônia já em preparação. Em seguida, eram interrogados, respondendo às perguntas com altivez. Exemplo:

- Sim, como convém a homens corajosos, partimos com o fim de aprisionar e comer vocês. Agora, conseguiram vencer e nos aprisionar, mas isso pouco importa. Homens valorosos morrem na terra de seus inimigos.

Quando chegava o grande dia, os prisioneiros enfeitavam-se de plumas como os outros, bebiam, cantavam, dançavam e, amarrados ao meio por uma corda, desfilavam por toda a aldeia, jactando-se de suas proezas no passado. As mulheres ofereciam-lhes pedras, exclamando:

- Vinguem-se!

Eles atiravam as pedras sobre a multidão. Isso fazia parte do programa da festa, da qual o carrasco não participava. Ficava concentrado, longe da fuzarca, aguardando o momento de ser chamado para cumprir a sua tarefa de justiceiro, com uma porretada de tacape na cabeça dos sacrificados.

Para os portugueses, os códigos de honra indígenas significavam apenas selvageria. E tremiam nas bases quando eram apanhados. Por isso os guerreiros tupinambás os chamavam de covardes. Mas não dispensavam a carne deles em seus repastos. Cunhambebe, o mais temido de todos os caciques, ficava triste quando não tinha um braço ou os dedos das mãos de um português para degustar.

A ironia da história (se tivesse sobrado índio para contá-la) é que foram os que eles achavam covardes os que acabaram vencendo a guerra, a ferro e fogo, no histórico (e abominável) genocídio de 1567, quando se apoderaram definitivamente de um território que lhes deu muito trabalho para conquistar. E o fizeram coalhando o mar de sangue – daí o nome da Praia Vermelha -, cortando as cabeças dos cadáveres e enfiando-as em estacas, num outeiro que batizaram como “da Glória”, exultantes pela vitória, conseguida graças ao poder dos seus canhões, muito maior do que os das flechas e tacapes dos nativos.

Eis o destino do Rio: em festa ou em guerra. Desde o tempo do carnaval dos canibais.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Sobre Pessoas - 6

Idéias de Jeca Tatu

Mais uma crônica do livro "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres

De Jeca-Tatu


Primeiro, vejamos qual é a origem etimológica do seu nome. E o que simboliza. Personagem criado por Monteiro Lobato em 1918, Jeca Tatu seria dicionarizado como substantivo comum, significando o habitante do interior brasileiro, especialmente o caipira da região Centro-Sul. É daí que surge o popularíssimo jeca. Tanto serve para definir o matuto bronco quanto qualquer pessoa sem refinamento. Em outras palavras: cafona, brega, ridícula.

Para o autor de Urupês, Jeca Tatu era “um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome de carne onde se resumem todas as características da espécie”. Eis o protótipo criado por ele: modorrento, a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso; soturno, fatalista, sem noções de pátria, de civismo, nem do país em que vive; e com um suculento recheio de superstições. “Todos os volumes do Larousse não bastariam para catalogar-lhe as crendices, e como não há linhas divisórias entre estas e a religião, confundem-se ambas em maranhada teia, não havendo distinguir onde para uma e começa outra”.

Na verdade, tal tipo nada heróico contrapunha-se à galeria de heróis da vertente literária que Lobato chamava de “caboclismo”. Ou seja, a que recorria, extemporaneamente, a um romantismo tardio, gerador de subprodutos do indianismo de José de Alencar, com suas incomparáveis idealizações do homem natural “como sonhava Rousseau” - de tantas perfeições humanas que sobrelevava aos ditos civilizados, em beleza de alma e corpo. “A sedução do imaginoso romancista criou forte corrente. Todo o clã plumitivo deu de forjar seu indiozinho refegado de Peri...”

Monteiro Lobato se interpôs nas encruzilhadas entre esses cultuadores dos Peris de segunda ou de terceira geração, e os modernistas de 1922. Se não chegou a exclamar, como Flaubert a respeito de sua mais famosa personagem – “Madame Bovary sou eu!” -, pelo menos imaginou que criador e criatura tivessem a mesma visão do Brasil daquele tempo. Ao reunir em livro uma série de artigos publicados no jornal O Estado de São Paulo, e em outros, intitulou-o Idéias de Jeca Tatu, justificando o título desta maneira: o coitado, se pensasse, pensaria assim.

Assim como? “Em prol da nossa personalidade”. E contra os macaqueadores do dernier cri “dos homens e das coisas de Paris”, incapazes de uma atitude própria na vida e nas artes. “Convenhamos: a imitação é, de feito, a maior das forças criadoras. Mas imita quem assimila processos. Quem decalca não imita, furta”.

Ao entrar na pele do bronco Jeca Tatu, e emprestar-lhe a sua própria consciência, Monteiro Lobato mais parecia um tribuno indignado contra os imitadores de toda espécie, que ele chamava de macaquitos e macacões. A edição do livro que tenho, da Brasiliense, é a 13ª., publicada em 1969. E abre com a seguinte nota dos editores:

“Temos aqui um bem estranho livro. Monteiro Lobato fala de arte, e revolucionariamente, como de costume. Sua rebeldia mais acentuada nós mal a compreendemos hoje: contra o francesismo, a francesia, a nossa completa emulação de personalidade diante da França. Hoje está tudo mudado. As idéias de Monteiro Lobato venceram em toda a linha. Não só desapareceu a unicidade da influência francesa, como o que Lobato queria, a arte nacional, a coragem das coisas nacionais e até dum estilo arquitetônico nacional, fizeram-se lugares comuns. Abrimos o rádio e ouvimos dez números de arte roceira – ao passo que naquele tempo, quando pela primeira vez apareceu Pernambuco a cantar o ‘Luar do Sertão’ de Catulo, o acontecimento foi de tal monta que provocou um artigo seu”.

É curioso ler-se isso agora, quer dizer, em plena era globalizada, quando o nacional parece ir aos poucos sumindo do nosso horizonte. E quando chamar alguém de nacionalista, dependendo do tom de voz, pode parecer uma grave ofensa. Mas continuemos com a leitura da nota dos editores de Lobato, a propósito do livro “Idéias de Jeca Tatu”:

“Em numerosas páginas deste volume a ‘terra’ aparece em suas onímodas expressões – o interior, a roça, a gente da roça, os costumes e comidas da roça. E Lobato atrevidamente antepõe tudo isso à ‘chinfrineira do litoral’ – essa ‘civilizaçãozinha de arremedo e de empréstimo onde tudo são mentiras à terra”. Em resumo, segundo aqueles editores, ali estava um Lobato em mangas de camisa, integralmente ele próprio no pensamento e no modo de expressá-lo – vivo, alegre, brincalhão e com uma ironia às vezes levada até a crueldade.

A primeira cipoada dele é na imprensa: “Anda para cinco meses que abrir um jornal vale tanto quanto abrir um porco de cerva, tal o bafio de sangue que escapa dos telegramas, das crônicas, de tudo. Ora, isto afinal engulha, e sugere passeios por veredas afastadas do matadouro, onde os pés não chapinhem em lama de sangue nem se raspem os nossos olhos na rês humana carneada a estilhaços de obus”. O que diria Lobato da imprensa, hoje, tanto quanto do noticiário televisivo?

Bem, tudo o que sabemos é sobre o que ele pensava então e não sobre o que ele poderia vir a pensar no futuro, que, afinal, é o nosso presente. Melhor dizendo: se, de fato, pensasse, Jeca Tatu teria pensando por vezes de forma politicamente incorreta, ou jocosa, no que concerne à sua visão da História do Brasil, por exemplo:

“Enquanto colônia, era o Brasil uma espécie de ilha da Sapucaia de Portugal. Despejavam cá quanto elemento anti-social punha-se lá a infringir as Ordenações do Reino. E como o escravo indígena emperrava no eito, para cá foi canalizada de África uma pretalhada inextinguível. Até a vinda de D. João, o Brasil não passava de índio e mataréu no interior e senhores, feitores e escravos nos núcleos de povoamento da costa, muito afastados entre si e rarefeitos. Em toda essa fase o Brasil não dá de si nenhum bruxoleio de arte.

E assim vai até que um tranco de Napoleão dá com o rei de Portugal para cima do Rio de Janeiro. Apesar da pressa com que arrumou as malas, D. João VI trouxe todos os ingredientes para uma boa implantação aqui: fidalgos de orgulhosa prosápia, nobres matronas, almotacés, estribeiros-mores, açafatas da rainha, vícios de bom tom, pitadas de arte e ciência e mais ingredientes básicos de uma monarquia preposta a pegar de galho”.

Ele vê a fuga da corte de D. João VI, quando da invasão napoleônica, de modo bem irônico, beirando o sarcasmo:

“Na lufa-lufa do embarque em Lisboa muita peça se quebrou, outras caíram ao mar, outras ficaram esquecidas lá no palácio. Perderam-se sobretudo muitos parafusos e porcas, e disso veio que, ao armar-se novamente, o Estado ficou meio bambo, frouxo de mancais e ferro.

Entre as coisas avariadas pela água do mar apareceu a Urna – a Urna das Eleições! Remendaram-na como puderam, mas nunca funcionou a contento nas terras do Brasil. Algo essencial se perdeu na travessia”.

Dois frasquinhos de drogas homeopáticas ninguém descobriu onde paravam: um com a Noção do Dever, e outro com a Noção da Responsabilidade”.

As idéias de Jeca Tatu sobre a criação do estilo:

“Não vem dos grandes mestres das artes plásticas a feição estética duma cidade. Vem antes de humildes artistas sem nome – do marceneiro que lhe mobília a casa, do serralheiro que lhe bate o ferro dos portões e grades, do entalhador de guarnições e molduras, do fundidor, do estofador, do ceramista, de quantos direta ou indiretamente afeiçoam o interior da casa urbana. Como tais obreiros são numerosíssimos, dilata-se-lhes a zona de influência. Sai-lhes inteirinha das mãos a casa popular como ainda a burguesa, e em boa parte o palacete rico”. Ele segue dizendo que era preciso cuidar da educação artística do operário, ensinando-lhe o bom gosto, desabrochando-lhe o senso da arte, norteando-lhe o impulso da criatividade, para dar moldes indeterminados, mas individualíssimos, à cidade futura.

Para ele, era assim que se criava estilo: como feição peculiar das coisas, um modo de ser inconfundível, a fisionomia, a cara da obra de arte. Em síntese, Jeca Lobato ou Monteiro Tatu definia toda a arte como produto conjugado do homem, do meio e do momento, mas que só adquire caráter pelo estilo. E aí vem uma cacetada em quem não o tem, a começar pela arquitetura:

“Não ter cara é um mal tamanho que as cidades receosas de criá-la própria importam máscaras alheias para fingir que têm uma”.

Ele conta que quando Anatole France esteve no Brasil, mostraram-lhe nossos monumentos, crentes de que ele iria esboçar uma exclamação diante deles. Mas que nada. O requintado artista só torceu o nariz:

- Já vi isto mil vezes – ele disse.

- Onde?

- Em toda parte. Europa, Bombaim, Port-Said.

“De quanto viu só lhe interessaram velhas igrejas. Descobriu nelas uma arte ingênua, porém mais eloqüente que o esperanto arquitetônico da Avenida Paulista”.

E tome diatribe. Contra as nossas casas, que “mentem à terra, ao passado, à raça, à alma, ao coração. Mentem em cal, areia e gesso, e agora, para maior duração da mentira, começam a mentir em cimento armado”.

O indignado Jeca Tatu não via sequer um trinco de porta que lembrasse coisa nossa. E desancava:

“Dentro de um salão Luis XV somos uma mentira com o rabo de fora. Porque por mais que nos falsifiquemos e nos estilizemos à francesa, Tomé de Souza e os 400 degredados berram ao nosso sangue; Fernão Dias geme; Tibiriçá pinoteia...

É acerba a sua crítica à maneira como o brasileiro mobíliava-se:

“Nosso mobiliário dedilha a gama inteira dos estilos exóticos, dos rococós luizescos às japonezices de bambu laçado. O interior das nossas casas é um perfeito prato de frios dum hotel de segunda. A sala de visitas só pede azeite, sal, vinagre para virar salada completa. Cadeiras Luis 15 ou 16, mesinha central Império, jardineiras de Limoges, tapetes da Pérsia, ‘perdões’ da Bretanha, gessos napolitanos, porcelanas de Copenhague, ventarolas do Japão, dragõezinhos de alabastro chinês – tudo quanto o comerciante de missanga importa a granel para impingir ao comprador boquiaberto”.

Então ele se admirava dos povos capazes de individualidade. E ensinava:

“Na casa holandesa o estigma local começa no telhado e desce aos mais humildes utensílios da cozinha. Tudo nela cheira à raça; o jardim com sua tulipa, os móveis esculpidos, os ornatos, os quadros – tudo é emanação de terra, criação lógica do ambiente”.

Para Jeca Lobato Tatu o que nos faltava em estilo sobrava aos outros:

“No lar britânico o inglês está dentro de uma moldura natural; nada destoa da sua psíquica fleumática de pirata enriquecido.

Na casa nipônica, que maravilhosa harmonia entre a gaiolinha incapaz na aparência de resistir às brisas mas que agüenta terremotos, e o japonês de aspecto frágil mas que derrancou o russo!”

E de casa em casa pelo mundo ele conclui que a China tem estilo e o americano (do Norte!) impõe o seu, “filho do ‘big’, do ferro e do milionarismo”, que resulta num estilo missionário, haurido nas velhas igrejas e conventos da era espanhola da Califórnia e do Texas. Monteiro Tatu via nisso uma forma superior de arte.

A nossa falta de estilo era uma simples questão de incultura – ele avaliava. “Como não nos educam o gosto e não nos ensinam a ver, não temos a bela coragem do gosto pessoal”. Daí porque o nosso homem culto, quando endinheirado, e bem situado no mundo político, quando ia comprar um objeto de arte olhava ansioso para o nome do autor, e só por ele se guiava.

Em resumo, no limiar da década de vinte do século passado tínhamos o seguinte quadro: incultura nos incultos; meia-cultura nos cultos; esnobismo nos “entendidos” e cubice paranóica nos paredros supremos. E dentro dele evoluía a feição estética da cidade.

E qual, afinal, seria o estilo que devíamos buscar?

Jeca Bento Monteiro Lobato Tatu achava que este devia ser decorrente do que os avós nos dotaram, coando-se a alma colonial através dum temperamento profundamente estético, filho da terra, produto do ambiente, alma aberta à compreensão da nossa natureza: e a arte colonial surgiria “moderníssima, bela, fidalga e gentil e moderníssima de um verso de Olavo Bilac”.

Ele prossegue:

“Seja assim a nossa arquitetura: moderníssima, elegantíssima, como moderna e elegante é a língua do poeta; mas, como ela, filha legítima de seus pais, pura do plágio, da cópia servil, do pastiche deletério”.

De acordo com as idéias de Jeca Tatu, a obra de arte, além dos elementos que lhe são intrínsecos - e que são permanentes, tais como os regidos pelas leis eternas das proporções e do equilíbrio -, não pode prescindir desse outro, mais sutil, por vezes abstrato ou indefinível, digo eu, mas visível, chamado estilo. É ele que revela a personalidade do artista, e o vínculo forte do seu temperamento emotivo. E as artes mais suscetíveis de se impregnarem desse coeficiente pessoal seriam a poesia, a pintura e a escultura. Já na arquitetura, não seria apenas o homem, e sim o meio, que imprime estilo à obra. Neste caso, mesmo que o elemento individual dê algo de seu, quem dá tudo é a coletividade.

Eis aí um rascunho do Idéias de Jeca Tatu, que foi o quarto livro de Lobato, conforme a cronologia de suas obras completas. E o consagrou como crítico, na opinião pública. Homem de múltiplos interesses, Lobato, muito antes de celebrizar-se como o nosso incomparável autor de histórias para crianças, imprimiu a sua marca de contista e ganhou notoriedade como polemista. Não perdoava São Paulo, do ponto de vista arquitetônico, a seu ver um puro jogo internacional de disparates.

Homem de múltiplos interesses, envolveu-se em temerárias causas. Uma delas, foi a sua campanha contra os modernistas, seus conterrâneos: “’Arte moderna’: eis o escudo, a suprema justificação de qualquer borracheira [...], como se não fosse moderna, moderníssima, toda a legião atual de incomparáveis artistas do pincel, da pena... que fazem da nossa época uma das mais fecundas em obras-primas de quantas deixaram marcas de luz na história da humanidade”.

Mas a sua luta insana mesmo foi a que chamaria no título de um de seus livros de O escândalo do petróleo. Hoje, pareceria até improvável que um dia um brasileiro tenha ido parar na cadeia por querer provar de todos os modos a existência de petróleo em nosso país, quando todo o aparelho do Estado, em conluio com uma empresa norte-americana chamada Standard Oil, fazia de tudo para negá-la. Por ironia do destino, o primeiro poço de petróleo aberto no Brasil surgiu no Lobato, aqui na Bahia. Aconteceu isto em 1939. O curioso é que, menos de dois anos antes, em 1937, na primeira edição de O Poço do Visconde, o livro em que Monteiro Lobato ensina a geologia do petróleo às crianças, há um capítulo com os pontos onde ele deveria jorrar. Vejamos o quão profético se tornaria este trecho: “A Bahia perfurou na zona dos camamus e encheu-se de petróleo; e até na zona do Lobato, nos subúrbios da capital, abriram-se poços de excelente petróleo”.

José Bento Monteiro Lobato deu dez anos da sua vida a essa campanha, da qual saiu esgotado, esmagado, mas podendo proclamar-se um vencedor. Não tardou ao país passar a colher o que ele semeou. Sim, nós temos petróleo. Por proclamar isso, com convicção, Lobato acabou sendo condenado pelo Tribunal de Segurança da ditadura de Getúlio Vargas, o mesmo que quando presidente democraticamente eleito, criaria a Petrobras.

Terminemos com uma avaliação feita pela sua própria filha Ruth:

“Misto de filósofo, homem de ação e artista, sofria conflitos entre a razão e o sentimento. Tolerante por princípio, não o era por temperamento. Equânime por filosofia, perdia a cabeça quando se lhe antepunha obstáculos. ‘Blaguer’ e irritadiço, calmo nas horas de tumulto e inquieto nas horas de paz, era todo um conjunto de qualidades aparentemente paradoxais mas bastante compreensíveis para quem o conhecia bem”.

Para ela, o maior legado que Lobato deixou foi sua coerência de caráter. Nela residia sua força e também sua coragem, num mundo de hesitações e canalhices.

E não é que estamos necessitados de homens públicos com o caráter, as idéias, a coragem para defendê-las, de um Jeca Tatu?

domingo, 22 de novembro de 2009

Sobre Pessoas 5

Enquanto Nova Orleans agonizava

(Mais uma crônica do livro "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres. A crônica de número 4 já foi publicada aqui e pode ser lida nos textos do próprio autor)

De Sobre Pessoas 5 - Williiam Faulkner


Esta é uma viagem de volta ao ano de 1924, com uma escala em Nova York ou, mais precisamente, na livraria de Elizabeth Prall, a sra. de Sherwood Anderson, o célebre autor de Winesburg, Ohio. Trabalhava com ela um rapaz do Sul chamado William Faulkner. Ele está doido para conhecer aquele de quem acabara de ler um livro de contos - Cavalos e homens -, achando que um deles, intitulado Eu sou um louco, juntamente com o Coração nas trevas, de Conrad, eram as duas melhores narrativas curtas que já tinha lido. E definia Anderson assim: “Um milharal com uma história a contar e uma língua com a qual fazê-lo.”

Elizabeth Prall deu-lhe o mapa do tesouro: seu marido estava em Nova Orleans. No ano seguinte os dois iriam passar uns dias juntos, caminhando pelo French Quarter e ao longo do Mississipi, sentando-se em cafés e no Jackson Park, passeando de barco pelo rio e fazendo excursões de iate no lago Pontchartrain.

O resultado dessa convivência: por recomendação de Sherwood Anderson, o ainda aprendiz de feiticeiro chamado William Faulkner teria o seu primeiro romance, Soldiers’ pay, publicado pela editora Boni & Liveright, o que lhe abriria o caminho para uma vasta e poderosa produção. Ele viria a legar ao mundo títulos memoráveis como Enquanto agonizo, O som e a fúria, Luz em agosto e Palmeiras selvagens, que lhe deram o passaporte para o Prêmio Nobel.

Faulkner ficou seis meses na capital da Louisiânia. Nesse período, escreveu 16 textos para o caderno dominical do Times-Picayune, que teve sua circulação suspensa quando Nova Orleans agonizava, sob os efeitos de um furacão.

Essa sua incursão jornalística está no livro Esquetes de Nova Orleans, que saiu aqui em 2002, pela Editora José Olympio, em tradução de Leonardo Fróes, no qual captei umas linhas encantadoras (O turista – Nova Orleans) daquele que sempre foi um dos meus santos de cabeceira:

“Uma cortesã, nem velha porém nem mais tão nova, que evita a luz do sol para que a ilusão de sua glória passada se preserve. Os espelhos de sua casa são baços e as molduras estão bem desbotadas; toda a sua casa é fosca e bela com o tempo. Graciosamente ela se reclina numa espreguiçadeira opaca de brocado, há um cheiro de incenso que a rodeia, e suas vestimentas se dispõem em dobras formais. Ela vive numa atmosfera de um tempo morto e mais atraente.

A pouca gente ela recebe, e é através de um eterno lusco-fusco que eles vêm visitá-la. Ela mesma não fala muito, no entanto parece dominar a conversa, que é em voz baixa mas nunca insípida, artificial mas não brilhante. E os que estão entre os eleitos devem ficar para sempre fora de seus portais.

Nova Orleans... uma cortesã cujo poder sobre os maduros é forte e a cujo charme os jovens têm de se mostrar sensíveis. Todos que a deixam, em busca dos cabelos nem castanhos nem dourados da virgem e de seu peito descorado e gélido onde jamais algum amante morreu, vêm-lhe de volta assim que ela sorri pelo seu leque lânguido...”

Esta era Nova Orleans: a mãe do blues e o pai do jazz. A festeira cidade do Mardi Grass, fundada em 1718 por um certo Le Moyne de Bienville. E que conheceu o apogeu entre o ano de 1803, quando foi comprada dos franceses pelos Estados Unidos, e a Guerra da Secessão, entre 1861 e 1865, que pôs o Sul escravocrata na linha de fogo contra o Norte industrializado. E que, ao mergulhar num horror apocalíptico, expôs os grandes contrastes da maior potência do mundo ocidental, mais competente para interferir em quintais alheios do que para cuidar dos seus.

Já terá ela, a grande potência, sido capaz de recuperar “o leque lânguido” de Nova Orleans? Ou a fruição da vida, no encanto que se encontrava nas suas partes mais antigas, que Sherwood Anderson, o pai de William Faulkner, desejava para todas as cidades americanas?

Por enquanto, resta a memória de seus melhores dias.