segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Conversa ao pé do fogão

Depois do almoço, falei para a diarista:

- Cleide, será que não tem nenhum doce escondido por aí?
- Não.
- Nem leite condensado?
- Tem um na cesta de Natal que dona Edna ganhou.
- Então distraia a atenção dela que eu vou roubar o leite.
- E ela reclama?
- Claro! Diz que é pra fazer pudim, mas, se eu não usar, perde a validade.
- E o senhor gosta tanto assim?
- Mais que Bolsonaro. O povo reclama que ele gastou cinco milhões com leite condensado, mas se eu tivesse um cartão corporativo, gastava dez.
- Vixe!
- Carência de infância. Lá no Junco não tinha dessas coisas. Eu estava com sete anos quando nos mudamos para Alagoinhas. Fomos em janeiro e, em fevereiro, voltamos para a festa da padroeira. Não tínhamos mais casa e tivemos que nos arranchar na casa da minha avó paterna, e ela não tinha gado, portanto, não tinha leite, pois naquele tempo as vacas ainda não davam leite em caixa. Então, de noite, a minha mãe apareceu com a novidade. Que delícia! Depois do café fiquei de butuca pra ver onde ela ia guardar.
- Descobriu?
- Sim. De madrugada, os galos cantando, caminhei sorrateiro para a cozinha, igual à Pantera Cor de Rosa, e me deliciei. Entornei três latas.
- Três latas?! E não ficou com dor de barriga?
- Não. Fiquei com dor na bunda da surra que levei.
- E como ela descobriu?
- Quando eu acordei, ela olhou pra mim e disse: “Você tá com a cara muito da sonsa, sinal de que fez alguma coisa errada!” Correu para a cozinha e não precisa dizer o que ela viu, né?
- E a sua avó não fez nada para lhe defender?
- A minha avó? Ela foi a primeira da fila pra me bater, pois também tinha gostado do leite condensado. Depois a minha mãe, meus tios, meus primos e meus irmãos. Só sobrevivi de teimoso que sou.

De raios e trovões

Certa vez, voei do Galeão para Salvador debaixo de sete camadas de nuvens e raios. Quem conhece o Rio de Janeiro sabe que chuva lá não é garoa. As nuvens negras e seus raios mortais ficam a vinte metros do chão. Antes de ir para o aeroporto, meu irmão me disse:

- Nem vá que não vai dar teto!
- Preciso bater cartão à meia-noite.
Naquele tempo viajar de avião era moleza. Parava no bar do aeroporto e esvaziava um litro de rum nos trinta minutos de espera. Se o avião caísse ou não, não estava nem aí.
Era um avião da Viação Cruzeiro quando a companhia aérea estava no estertor da morte. Mal subiu quinze metros, começou a se desmanchar. As portas dos maleiros abriram de vez, as bagagens começaram a cair, o povo a gritar - uns a rezar - e eu, calmamente, observando os raios lá fora, imaginando se haveria vida após a morte.
Felizmente, não foi meu dia de saber.

O politicamente correto

 Fui censurado em Salvador porque pedi um doce chamado "nego bom". Disseram-me que era politicamente incorreto. Aí retruquei:

- Mas na embalagem está escrito nego bom! Vou pedir como?
- Doce moreno.
- Aí você vai me acusar de racismo!
- Então fale outra coisa. Veja: ô, moço! Moço! Me dê aquele doce afrodescendente de coração bondoso!
- Qual? O nego bom?
(risada sem jeito, de dente travado como se fosse fazer um selfie)
ras 5

Trocadalho do carilho

 

Toda pessoa soa
Toda pessoa sua
Toda pessoa soa sua
Toda pessoa sua soa
Toda sua pessoa soa
Soa pessoa toda sua
Sua pessoa toda soa
Soa toda pessoa sua
Sua toda pessoa soa.

domingo, 15 de janeiro de 2023

POR QUE LAMPIÃO NÃO PASSOU NO JUNCO?

- Lampião passou por aqui?

- Não, não passou. Mandou recado, dizendo que vinha, mas não veio.

- Por que Lampião não passou por aqui?

- Ora, ele ia lá ter tempo de passar nesse fim de mundo?

Antônio Torres in Essa Terra.

 

"Lampião não foi, mas se tivesse ido não ia encontrar ninguém pra molestar", me disse o meu pai quando lhe perguntei sobre o malogro de Lampião. "O povo todo correu para as roças, se escondendo debaixo da cama. Quem tinha casa na roça. Os da rua fugiram para Serrinha, Biritinga e Nova Soure e só voltaram duas semanas depois. Êta povo corajoso!"

Depois dessa conversa fui pesquisar o porquê de Lampião não ter cumprido a sua promessa. O povo do Junco não merecia. Ademais, Lampião não era de faltar com a palavra. Então, baseado em fatos reais (lembrando de que a literatura é a realidade paralela) encontrei o verdadeiro motivo que levou o rei do cangaço a desfeitear o povo da minha terra.

No Junco de antigamente, então um lugar esquecido por Deus e pelos governantes, só havia um velho soldado conhecido como “Quarenta”. Ganhou esse apelido por causa da sua mania de chamar polenta de “quarenta”. No início ele não gostou, achou que era um desrespeito à sua autoridade, mas quando viu que teria que prender toda a população, resolveu se fazer de mouco. O tempo foi passando, ele se acostumando até o dia que incorporou de vez o apelido ao nome e passou a se apresentar como “Soldado Quarenta”.

Como o lugar ainda era distrito de Inhambupe, o Soldado Quarenta assumia a função de juiz, delegado e soldado. Só não assumiu a de escrivão porque era analfabeto. Gostava de desfilar garbosamente com sua farda rota, exibindo uma velha pistola de dois canos, chamada de “dois tiros e uma carreira”.

Nesse dia que Lampião disse que ia e o povo achou que ele não foi, antes de invadir o lugarejo ele reuniu a cabroeira na entrada para traçar um plano de invasão. O rei do cangaço era precavido e não queria ser surpreendido como fora em Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde teve que fugir feito ladrão de galinhas. Tinha que saber quantos soldados estavam à sua espera. Aprisionaram um fugitivo retardatário e o espremeram feito um de umbuzada:

– Tem quantos “macacos” no povoado? –  perguntou Lampião, apertando a goela do pobre coitado.

– Tem muitos não, meu capitão! – respondeu o morador, trêmulo e sem conter a expressão de terror – Só tem Quarenta!

Lampião resolveu contar seus homens: dezoito! Empurrou o “informante” para o lado, pegou seu embornal, colocou a espingarda em bandoleira e ordenou:

– Vamos embora que estamos em desvantagem numérica! Também, roubar pobre é pedir esmola pra dois!

O morador foi libertado e voltou bambo para casa, mas saboreando o orgulho de ter sido capturado e solto pelo legendário chefe do cangaço. Queria contar a todos e talvez virasse nome de rua ou de escola, mas não havia ninguém no povoado. Até o valente Soldado Quarenta fora abduzido por um disco voador, e, durante semanas, o fedor de mijo e de merda ficou impregnado nos lugares em que nosso herói passou.


A Praça Kennedy e o Estádio Carneirão

 

Quando vim morar em Alagoinhas, essa era a praça de se jogar bola e se chamava Praça da Rua de Inhambupe. Mas um dia o Marechal Castelo Branco sobrevoou de helicóptero a cidade, nos viu no meio de uma pelada, pousou, nos pediu, para jogar, deixamos,  então, devolvendo a nossa gentileza, nos prometeu um campo melhor. Anos depois, não se sabe se foi projeto dele ou não, foi construído em Alagoinhas um estádio muito bacana. A praça também fora reformada e  batizada de John F. Kennedy. 

Na inauguração, todos os moradores da cidade foram obrigados a assistir a um filme sobre a vida e morte de Kennedy,  exibido na parede dessa igreja da foto. E ai de quem não se revoltasse na hora do tiro que matou o artista principal! Dezenas de camburões estavam estacionados na Praça.

Semanas depois desse evento perguntei a uma vizinha, que se dizia membro do TFP,   porque ela havia chorado tanto quando assistia ao filme. Ela me respondeu fazendo cara de choro: 

- Ô, Tom, é que aquele filme me lembrou tanto da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Assim, graças a uns moleques peladeiros que deixaram o Marechal jogar de beque, Alagoinhas ganhou uma praça e um estádio de fazer inveja a certas capitais. Só que nunca nos deixaram jogar pelada no seu gramado.