quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Antonio Brasileiro - Teatrinho



Não quero ser Chapeuzinho Vermelho mais não.
Por que, filhinha?
Não gosto que o Lobo Mau me coma.
Mas o Caçador não vai matar o Lobo?
Vai...
E não vai tirar você e a Vovozinha da barriga do Lobo?
Não gosto.
Mas é só um teatrinho, filha.
Não.
Você decorou tão bem o seu papel.
Aninha vai.
Ah, Aninha vai então substituir você.
Mas eu vou dizer uma coisa a ela.
O que assim?
Aninha, não fale nada com o Lobo Mau, viu?
Mas ela tem que falar com o Lobo Mau. Na história verdadeira ela conversa com ele.
Mas ela não vai falar nada!
Tudo bem, tudo bem. E como é que a história vai prosseguir?
Não sei.
O Lobo Mau vai ficar lá, parecendo um pateta: “Aninha, fale, o que é que você tem?” É isso?
Mãe, você é tão engraçada.
E o que é que Aninha vai dizer?
Aninha? “Ah, seu bobão, você pensa que vou lhe dizer onde a Vovó mora?”
“Não vai não? Então eu vou lhe comer.”
Mãe não come filha.
“Eu não sou mãe. Eu sou Lobo!”
“Ai! Eu falo.”
“Muito bem. Como é seu nome, menina?”
“Chapeuzinho Vermelho.”
Está vendo? Você interpreta tão bem.
“Lobo Mau, você está querendo é me enganar.”
Eu, filha?

(Antonio Brasileiro – Do livro “O menino no guarda-roupa”)

Não confundam Antonio Brasileiro com Antonio, o Brasileiro, ou com seu xará famoso, Tom, o Jobim, também conhecido por Antonio Brasileiro. Este de que vos falo, agora, é mais competente do que os outros, embora a mídia não divulgue, porque, além de poeta, é nordestino legítimo. Quando Sarney era presidente e ia pro rádio e tevê falar "Brasileeeeiroooo!", ele levantava o braço e gritava feliz para a turma que assistia novela na Praça Senhor dos Passos: "O presidente tá falando di mim!"

Tal qual meu bróder Luís Pimentel, também nasceu num lugar que ninguém sabe onde fica, chamado de Matas do Orobó, e acabou sendo criado nas ruas de Feira de Santana. Só não sei dizer se também foi gandula do Fluminense de Feira, o famoso Touro do Sertão.

Romancista, contista, poeta, artista plástico, membro da Academia de Letras da Bahia, bom de prosa, excelente camarada, ainda encontra tempo em seus contratempos para ser professor, fodido e mal pago, como se diz no linguajar pop da gurizada de Feira de Santana e Alagoinhas.

No mais, é só gozar do prazer de seus textos. Entre numa livraria qualquer e compre um ou dois, ou três, dos seus mais de quinhentos livros. Os livros dele, apesar de não ser da linha editorial da autoajuda, também funcionam assim. Um cidadão no interior do Ceará, descrente da vida, da religião, de Padre Cícero e da política, resolveu se suicidar. Na hora de pôr a termo o gesto fatal, alguém leu pra ele este poema:

CÁLICE

A vida não tem roteiros,
só velas que nos acenam
do mar.
Escuta, amiga,
o desfiar das horas:
elas te dirão é tua
é tua a vida.
Toma-a (como se toma
um cálice de rosas)
na mão.

O suicida deu dois passos atrás e desistiu de morrer. Hoje é um dos maiores leitores do poeta desse lugar chamado Matas do Orobó.

 

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A velha Salvador do Jereré do Macedo, do Toalha da Saudade e do Zanzibar



Dessas visões que de vez em quando somos acometidos quando vemos uma pessoa e que despertam uma imagem adormecida nas lembranças:

– Já fez seu pedido, senhor? – tirou-me das divagações o garçom.
– Gostaria de lhe perguntar uma coisa: de onde lhe conheço?
– Daqui.
– Não. Algo martela meu juízo de que lhe conheço de outras eras.
– Deve ser do outro bar que trabalhei, o Ipaneminha.
– Não. Tenho certeza de que não é dos bares daqui de Maceió.
– Fora daqui de Alagoas, trabalhei em Salvador.
– Isso! – quase gritei de euforia – Trabalhou onde em Salvador?
– No Jereré de Macedo.
– Sabia!!! Eu morava no Rio Vermelho e costumava ver o sol nascer sobre as águas de Amaralina, lá do Jereré.

Nos anos 1970 e início dos anos 1980 os bares fechavam à meia-noite em Salvador. No circuito da orla, somente o Jereré (ou jererê, conforme se pronunciava na Bahia) era aberto vinte e quatro horas durante os sete dias da semana. Não era um bar muito grande. Não havia luxo, mas a cerveja era bem gelada e o tira-gosto de primeira. E os garçons eram simpáticos, como o Castor, o que acabara de encontrar em um bar perto de casa, em Maceió. O movimento maior se dava depois da meia-noite, quando os outros bares fechavam, e permanecia cheio até o sol nascer.

Na Cidade Alta havia o Zanzibar, no Garcia, perto do Campo Grande, que também funcionava a noite toda. Era um reduto gay e naquela época não havia a onda do simpatizante não. O cidadão era ou não era.

Nos Aflitos o saudoso Batatinha recebia seus amigos e clientes no Toalha da Saudade, nome de uma música sua que fez sucesso na voz de Maria Bethânia, mas só ficava aberto até o último bêbado sair. Não era confiável. Se acontecesse de meia-noite não ter ninguém, o bar era fechado.

Quando me separei, fui morar na Graça e ficou inviável frequentar o Jereré. Então descobri o caminho do Toalha. Eu e o meu compadre José Bahiana, que passou a trabalhar no mesmo turno que eu, no polo petroquímico de Camaçari. Quando a gente largava o serviço à meia-noite, eu ia para a casa dele, no Largo de Santo Antonio Além do Carmo, ele pegava o velho fusquinha e íamos diretamente nos enxugar no Toalha da Saudade.

Uma noite demos com os burros n’água. O bar estava fechado. E tínhamos saído do trabalho sentindo o gostinho da cevada. A cidade era um deserto. O Jereré havia virado depósito de material de construção. O que fazer então?

– Vamos para o Zanzibar – falei.
– Tá doido?! A bicharada vai nos massacrar!
– Não se a gente entrar de mãos dadas. Eles vão achar que somos um casal gay e não vão mexer conosco.

Assim fizemos. E sequer olharam para nós com olhares lascivos. Só o meu compadre é que não gostou quando soube que a rapaziada alegre achava ser ele o agente passivo. E nunca mais quis repetir a dose. Preferiu deixar sua geladeira sempre abastecida de cerveja para as emergências desse tipo.