domingo, 19 de janeiro de 2014

Domingo de Futebol

Eu não matei Joana d’Arc. Nem poderia. Na hora do óbito eu estava no Estádio Rei Pelé vendo o Esquadrão de Aço levar uma lapada de um time de várzea. Não direi o placar que é muito vergonhoso, mas a surra foi merecida.

Teria matado Joana d’Arc se ela já não tivesse morrido depois do jogo. A vingança é um prato que se come frio. Gelado. Congelado. A minha sorte foi ter ido de carona e ainda ter ganhado o ingresso, cortesia da Pitú, via Categoria, o dono de bar mais simpático de Maceió. Se assim não fosse, teria morrido de raiva. Morte matada. O culpado: Esporte Clube Bahia.

Joana d’Arc morreu sem que se saiba sua causa mortis. A polícia descartou homicídio, apesar das sete facadas e dois tiros no peito. É bem provável que ela tentou o suicídio, disse o delegado.

Na entrada do estádio encontrei um amigo coronel da PM e entramos conversando. Além de não ser revistado, o soldado ainda bateu continência para mim. E me permitiram ver o jogo no meio da torcida do CSA, único lugar que fazia sombra. Meu telefone não parava de tocar e eu sem poder atender. É que o display do aparelho é um escudo do Bahia. Se tiro do bolso, ia fazer companhia a Joana d’Arc.

Certa vez uma moça muito linda me perguntou:

- Você sabe de que morreu Ana Neri, Tom?
- E Ana Neri não é a patrona das enfermeiras?
- É.
- E tu não é enfermeira?
- Sou.
- E não sabe e pergunta logo a um ignorante que não sabe nem pra que serve a água oxigenada?
- É que você sabe de um bocado de coisas.

Dizem que a curiosidade matou o burro. Fui pesquisar. Vasculhei a internet, subi dez mil escadas de bibliotecas, varei noites vadias debruçado em enciclopédias e não consegui saber de nada. Como não podia deixar sem resposta uma moça linda que me achava inteligente, liguei para ela:

- Olha, você não vai acreditar, mas Ana Neri morreu de morte natural.
- Tem certeza?
- Absoluta. Morrer é coisa natural. Viver eternamente é que é coisa do outro mundo.
- Puxa. Bem que eu sabia que você não ia me deixar sem resposta. Você é tão inteligente, sabe de tanta coisa...

Sou não, baby. Se fosse, não teria deixado o meu sossego duma tarde de domingo para ir ver o meu time levar uma surra de um time peladeiro.

E foi como dizia o meu pai depois que eu levava uma surra da minha mãe:

- Se apanhou é porque mereceu.

1 AS LENDAS DE ARUANDA - O INÍCIO DE TUDO

O INÍCIO DE TUDO
      
“Nem o Não-Ser existia então. Nem o Ser.
Não existia espaço, nem o firmamento além dele.
Quem se movia então? E onde? Sob a guarda de quem?
Seria a água insondavelmente profunda?
Não existia a morte. Nem a não-morte.
Não havia nenhum sinal separando a noite e o dia.
Só o Uno respirava sua própria força,
Sem que houvesse Sopro.
Fora disso, nada havia.
Nada, nada.
No começo as trevas estavam escondidas pelas trevas,
Este universo era somente onda indistinta...”
(A Origem Rigveda – 1º milênio a/C - Índia)

No início era o Verbo. O Verbo e todo o Universo que ocupava um espaço do tamanho da cabeça de um alfinete. E Deus olhou ao redor e só viu o vazio soberano e o maciço da escuridão. Não havia o abaixo nem o acima. Nem o lado esquerdo, nem o lado direito. Era a desolação em sua total plenitude. O Princípio Original, sem começo, meio e fim. Não existia o Tempo. Não havia ontem nem amanhã. Passado, presente e futuro eram um só tempo. E Deus se sentiu o mais solitário dos imortais. A solidão era a solidez do vazio. A luz não existia porque não existia o amanhecer e a insônia era eterna. Então Deus, consciente da sua imensurável força e do seu poder infinito, disse: “Faça-se o Tempo!” e o estopim do Universo foi aceso, irradiando uma colossal energia, criando as galáxias, os astros e as estrelas, vagando em harmonia etérea em volta de sua magnífica solitude, moldando um espelho da Sua paranormalidade existencial, refletindo a grandeza diáfana de Sua Consciência Cósmica.  O Tempo passou a existir e todas as coisas criadas por Ele se tornaram evanescentes sob o seu domínio, tendo início, meio e fim, sendo que esta seria uma Lei Universal, plena e irrevogável. Somente o Tempo seria infinito e Ele, o criador do Universo, era o próprio Tempo, transcendente no tempo e espaço, imutável e eterno, senhor absoluto sobre todas as coisas.

Deus nasceu no exato instante em que o homem passou a andar sobre duas pernas, tomou consciência de sua existência na Terra e viu o Sol surgir no horizonte para afugentar as trevas. Compreendeu, com indubitável clareza, o poder supremo da luz sobre a escuridão.

Deus tomou forma incognoscível e metafísica quando o homem olhou para o céu tentando interpretar o arcano do Universo e admirou o resplendor de milhões de estrelas cintilantes e cometas errantes bailando no vasto infinito. Então ele sentiu que não estava sozinho e que uma força invisível e superior ordenava e harmonizava as galáxias em torno de um eixo transcendente.

Finalmente, o homem orou a Deus quando veio a noite e ele acreditou no sobrenatural, sentiu medo da sombra projetada pelo clarão da lua, temeu os raios e as tempestades e carregou a morte em seus braços, o que seria a irrefutável prova da sua fragilidade material. Instintivamente recuou apavorado e clamou por um deus onipresente, onisciente e desmaterializado, que se tornasse dono do seu corpo e de sua mente e se fizesse à sua imagem e semelhança.  

A partir daquele instante estava criada a religião. A Natureza e o Cosmo manifestaram-se como realidades sagradas (hierofanias) e o homem então, desde esse momento primitivo, em qualquer parte da Terra, usando os mais diversos nomes, imagens e crenças, procura, na religião em si, a verdadeira face de Deus, por acreditar piamente ser esta a resposta para a sua própria eternidade.

          Podemos definir a religião, hoje, como um canal metafísico para se atingir o Sagrado e a Realidade, não importando qual caminho devamos seguir, pois o Sagrado é a espiritualidade que reina dentro de cada um de nós e a Realidade manifesta-se no grito assustado da criança em contato com a água batismal, na queima de incenso e nas oferendas à imagem do Buda nos mosteiros monásticos, na leitura do Torá nas sinagogas, no peregrinar em penitência à cidade de Meca e no jogo de búzios e passes espirituais nos terreiros. Cada povo com sua deidade, cada deidade com sua religião, cada religião com o seu deus e os homens, tomados pela vaidade de serem Sua imagem e semelhança, desdenham do livre arbítrio e digladiam em nome do mesmo deus, que, onipresente, a tudo assiste entristecido com a soberbia intolerante de Sua criação.  

N.A. - Etimologicamente ainda é indefinida a origem da palavra “religião”, havendo várias propostas históricas, sendo que a primeira definição ocorreu na obra de Cícero, “De natura deorum”, (45 a.C.) e a última por Macróbio, no século V, d.C.