quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Anotações sobre a crônica



Por Antônio Torres



Sua origem é antiqüíssima.


Vem de Cronos, deus da mitologia grega cujo nome significa “o Tempo”.


Daí que nos seus primórdios a crônica era uma narração de fatos históricos em ordem cronológica. Começou a desvincular-se da História com o avanço do jornal como veículo de informação e entretenimento. No seu livro Crônico – Uma aventura diária, o jornalista gaúcho Luís Peazê registra que foi o semanário inglês The Tattler (O Fofoqueiro ou O Tagarela), fundado em 1709 pelos escritores ingleses Joseph Addison e Richard Steele, o introdutor da crônica na imprensa, por publicar somente textos curtos, em artigos literários e políticos com reflexões morais. O sucesso foi tão estrondoso que os dois autores lançaram novos semanários congêneres na Inglaterra, enquanto outros países europeus aderiam à novidade. Cem anos após o lançamento do The Tattler, o Journal des Débats, de Paris, iniciaria a publicação da crônica diária em sua primeira página, abaixo de uma linha que a destacava das notícias. Peazê acrescenta que foi nesse jornal que Foucault publicou as primeiras impressões sobre a teoria que ficou conhecida como o Pêndulo de Foucault. Ele prendeu um pêndulo de 67 metros na cúpula do Panthéon, com um peso de 28 quilos, para comprovar o movimento diurno da Terra, ou seja, de que era isso que fazia o mundo girar. A crônica francesa estendeu-se além de suas fronteiras quando Emile Girardin fundou o popular La presse. E outros vieram na sua esteira. Também na Áustria e na Itália os jornais atraíram os melhores escritores para suas páginas. Então crônica e jornalismo passaram a ser indissociáveis, através dos tempos.


No Brasil, foi implantada definitivamente na imprensa carioca a partir do ano de 1850, já voltada para a descrição maliciosa da vida mundana e os fatos políticos do Rio de Janeiro. A partir da segunda metade do século 20, chegaria a se tornar o mais jornalístico dos gêneros literários e o mais literário dos gêneros jornalísticos, passando a parecer uma invenção brasileira. Mas naveguemos de volta ao seu remoto passado.


Na Idade Média era escrita em latim e dizia respeito à historiografia. E chegou ao apogeu na era dos Descobrimentos, como registro e informação das novas terras e de sua gente nelas encontradas, de que são bons exemplos as cartas de Cristóvão Colombo, Pedro Álvares Cabral e Américo Vespúcio. E também os relatos do alemão Hans Staden, dos franceses André Thevet e Jean de Léry, estes, os primeiros viajantes a descreverem a região onde hoje fica o estado do Rio de Janeiro como o paraíso terrestre habitado pelo povo expulso do Gênesis, além de relatarem as aventuras e desventuras dos europeus nessas paragens, no século 16, ou seja, ao tempo dos canibais tupinambás.


Tais descrições fizeram a Europa delirar. Como se estivesse lendo os contos mais fantásticos do mundo, desde O livro das maravilhas, de Marco Pólo.


A mais antiga crônica escrita em língua portuguesa data de 1429. Trata-se de um resumo histórico dos reis de Portugal até D. Dinis. E é exatamente nessa língua que iria se expressar um dos mais admiráveis cronistas de todos os tempos. Seu nome: Joaquim Maria Machado de Assis, o que deu à crônica um perene status literário, pelas suas notas amenas, bem humoradas, com os toques de ironia que lhe eram tão peculiares. Basta ler dele O nascimento da crônica. Ou ouvi-la em CD, na voz de Othon Bastos.


As crônicas do Novo Mundo


No ano de 1557 era publicado na Alemanha um relato que instantaneamente causou um grande estardalhaço. Título: Descrição verdadeira de um país de selvagens nus, ferozes e canibais, situado no novo mundo América, desconhecido na terra de Hessen antes e depois do nascimento de Cristo, até que há dois anos, Hans Staden de Homberg, em Hessen, por sua própria experiência, os conheceu e agora publica, aumentada e melhorada diligentemente pela segunda vez. Logo, o autor fazia na capa do livro um resumo da obra, assombrosa, para os padrões da época. Foi mesmo um assombro, comparável ao que Hans Staden presenciou ao ver o grande guerreiro Cunhambebe comandar uma batalha dos tupinambás contra os tupiniquins, concluindo que caíra nas mãos de um gênio militar. E o chamou de “chefe supremo”. Foi sua salvação. Naquele ano de 1554, o mais temido, o mais respeitado, o mais odiado dos morubixabas andava com a vaidade à flor da pele, por ter sido escolhido unanimemente para chefiar a Confederação dos Tamoios, que uniu várias tribos amigas e inimigas num só exército, de Cabo Frio a São Vicente. Por que Confederação dos Tamoios? Porque significava a união dos mais velhos da terra (tamoio quer dizer isso), que viria a dar combates sem tréguas aos invasores dos territórios indígenas, que amarelavam quando o grito de guerra de Cunhambebe fazia a terra tremer: PERÓS! Maneira de ele dizer: Ferozes. Era o que achava dos portugueses, que também chamava de traiçoeiros e covardes. Vingava-se esfregando as mãos diante de um pedaço de português pronto para ser degustado, de preferência um braço e os dedos das mãos.


Quando foi apanhado, Hans Staden lutava com os tupiniquins, aliados dos portugueses, portanto, inimigos dos tupinambás e de todos os confederados. Cunhambebe pensou que ele fosse português, o que o condenava à execução. O alemão insistia em dizer que era francês, pois sabia que os franceses eram aliados de Cunhambebe, contra os portugueses. Tenha sido pelo exercício da dúvida, ou pela lisonja, o certo é que Hans Staden escapou de ser devorado, sendo dado de presente a um cacique de uma aldeia amiga, o que não significou o fim do seu apavoramento. Ele rezava o tempo todo. Conforme narrou em seu livro, Deus ouvia suas preces e o socorria, detendo tempestades, que tanto amedrontavam os índios. Por suas graças recebidas dos céus, ia tendo o seu sacrifício protelado, ele imaginava. Acabou escapando de ser o protagonista de um ritual antropofágico, para contar a história. O episódio de seu embarque num navio francês, envolvendo artimanha, diplomacia e sangue-frio, é simplesmente eletrizante.


Mesmo sendo considerada fantasiosa demais, essa história provocou pesadelos nos seus leitores, que se viam digeridos por seres demoníacos, a lhes chuparem os ossos até os tutanos. Nas peripécias de Hans Staden não faltavam ação, suspense, perigo, exotismo, azares, golpes da sorte e... milagres! Foi, portanto, com essa infalível receita de best-seller que surgiu numa pequena cidade chamada Marpurgo a primeira edição do primeiro livro sobre o Brasil, país cuja existência, conforme se lia no próprio título, os alemães desconheciam, ainda que a cobiça por novos mundos já tivesse tomado conta da Europa, sob a capa da sedução da aventura nos mares (“nunca dantes navegados”), que levavam às riquezas desconhecidas em ilhas e terras distantes. Tal avidez havia se intensificado já nos inícios das grandes navegações, a partir de uma carta do navegante florentino Américo Vespúcio, publicado em Paris como um folheto, em fins de 1503 ou inícios de 1504. Nessa carta, endereçada ao financista de Florença Lorenzo di Pierfrancesco dei Médici, seu patrão e amigo, a quem chamava de “magnífico”, Vespúcio relatava a viagem que fizera em 1501-1502 às “novas regiões que – por mando desse sereníssimo rei de Portugal, às suas custas e com sua frota – procuramos e encontramos, às quais é lícito chamar de Novo Mundo, porque nenhuma delas era conhecida dos maiores: porque é coisa novíssima para todos que ouviram [falar] delas...” Fechemos as aspas para lembrar que ele estava a reportar-se à expedição lusitana às costas brasileiras no ano seguinte à de Pedro Álvares Cabral, numa longa jornada comandada por Gonçalo Coelho, que resultou no batismo do Cabo de São Roque, no Rio Grande do Norte, Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, Baía de Todos os Santos, Rio de Janeiro, Angra dos Reis, Santos e São Vicente, dali seguindo até a Patagônia.


O Novo Mundo descrito por Américo Vespúcio dava asas à imaginação do velho continente: era sem rei nem lei, com uma população imensa, impressionável pela sua total liberdade de costumes – social e moral -, pois desconhecia o pecado; todos viviam como saíam do ventre materno, em despudorada libidinagem, entregando-se perdidamente aos excessos amorosos; doença era raridade – e facilmente curável, com ervas; vivia-se 150 anos, caso não se morresse antes nas guerras tribais; os homens eram fisicamente perfeitos e as mulheres formosíssimas, inclusive “nas partes que honestamente não podem ser nomeadas”; além disso, os homens podiam possuir quantas mulheres desejassem; e elas, em sua luxúria que excedia a imaginação humana, inventavam artifícios que tornavam o ato do amor mais excitante. Acrescentemos a isso as referências aos rituais canibalísticos e imaginemos o impacto causado aos corações e mentes do Velho Mundo.


Lida avidamente, a carta de Vespúcio contabilizou em pouco tempo 25 edições em latim, italiano, alemão, holandês e tcheco. Esse sucesso retumbante foi esquentado por uma edição em Veneza, quando apareceu na capa, pela primeira vez, o título Novus Mundus. A sua repercussão se tornou mais espetacular ainda quando um editor de Augsburgo, em uma cartada genial, inseriu ilustrações que deram mais interesse ainda pelo documento. E depois vieram outras cartas, algumas tidas como falsas, o que pouco importava. Àquela altura Américo Vespúcio já tinha se tornado a figura mais lendária dos Descobrimentos.


Para além do alcance popular, os seus relatos viriam a ter influência na construção teórica do estado natural do homem, iniciada pelo humanismo filosófico do século 16. Foram lidos por Michel de Montaigne, Erasmo de Roterddam, Thomas Morus, Rabelais, Nicolau Maquiavel – e também por Leonardo da Vinci e Boticelli. E empanaram a aura heróica de Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral. Tanto quanto o brilho do escrivão da frota de Cabral, Pero Vaz de Caminha, autor da carta a el-rey dom Manuel, datada de 1º. de maio de 1500, que o tempo consagraria como a certidão de nascimento do Brasil, e também como uma crônica cheia de observações fabulosas sobre a terra, que lhe pareceu bela e rica, e seus habitantes, que os descreveu como se os pintasse: “A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar as vergonhas; e nisto têm tanta inocência quanto em mostrar o rosto”, Caminha escreveu, de Porto Seguro, Bahia. Com tanta agudeza de percepções, por que sua carta, e a de Cristóvão Colombo, não repercutiram tanto quanto a de Américo Vespúcio?


No caso de Colombo, presumivelmente por ele não haver localizado de forma correta as Antilhas caribenhas aonde os ventos o levaram. Situou-as no Oriente, ou seja, na cobiçada Índia, chamando os seus habitantes de índios, designação que se tornaria comum a todos os povos do continente. Mesmo tendo garantido haver entre eles homens que nasciam providos de rabo, como os macacos, a carta de Colombo não produziu uma fascinação comparável às aventuras de Marco Pólo, no século 13, nem às do seu contemporâneo Américo Vespúcio.


Quanto à carta de Caminha, passou em branco. Nem sequer foi aberta por D. Manuel I, que a largou sobre um móvel, onde não despertou a curiosidade de ninguém, durante muito tempo. Deveu-se isto à política de sigilo de Portugal, em decorrência de sua rivalidade com a Espanha, que vigiava todos os seus projetos marítimos através de um bem montado serviço de espionagem. Mas, pelo visto, Américo Vespúcio não se via obrigado a silenciar sobre suas idas e vindas pelos caminhos marítimos dos portugueses, os quais seguira menos a mando de D. Manuel I e mais a convite de um banqueiro seu compatriota chamado Bartolomeu Marchionni, que vivia em Lisboa. Personalista, sedento de fama, nada o deteria em sua busca de notoriedade. Tanto que passou por cima de Colombo, Cabral, Caminha e Gonçalo Coelho – de quem era comandado e ao qual jamais fez a menor referência –, e acabou patenteando para si próprio o que chamou de “a quarta parte do mundo”, que a partir de então, e pelos séculos afora, passaria a ser a América do Américo, apenas por ele haver escrito uma carta na qual batizou um continente, e com ela, e mais algumas outras prováveis ou improváveis, se tornou o mais lido cronista dos Descobrimentos, deixando a Europa aturdida ao ver que havia no mundo um outro rosto além do seu. Um rosto selvagem, porém belo, com uma boca que comia carne humana, para se refazer das energias despendidas nas batalhas. Pois assim vivia o velho povo do Novo Mundo: em festa ou em guerra.


Quanto a Hans Staden, que pegou o barco quando as grandes navegações já haviam avançado em mais de 40 anos, não se destinava à lenda dos navegantes epopéicos. Era um anônimo em busca de horizontes fora do limitado Velho Mundo. Entre as aventuras transatlânticas e as desventuras de um naufrágio e da vida de prisioneiro sob a ameaça de ser devorado pelos temíveis canibais, ele sentiu na pele o que os outros escritores viajantes viram apenas de passagem. Por isso Staden fez o relato mais impressionante daquela época, que teve numerosas edições em alemão, flamengo, latim, inglês e francês. Mas só apareceria em língua portuguesa no finzinho do século 19, no quarto volume da revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.


Essa volta no tempo nos levará às esquinas do Rio de Janeiro entre as últimas décadas do século 19 e as primeiras do século 20. Era ali que se postavam sumidades como José de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac e João do Rio, para observar a alma encantadora de suas ruas. Depois desses, surgiria outra geração de cronistas que fariam o gênero crescer e aparecer com uma força extraordinária. Foram eles: Rubem Braga, Fernando Sabino, Rachel de Queirós, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, Antônio Maria, José Carlos Oliveira, Carlos Heitor Cony – este ainda em ação, admiravelmente –, que por sua vez viriam a ter os seus seguidores. Alguns nomes: Luís Fernando Veríssimo, Ignácio de Loyola Brandão, João Ubaldo Ribeiro, Moacyr Scliar, Marina Colasanti, Affonso Romano de Sant’Anna, Alcione Araújo.


E estes são apenas alguns dos nomes que fizeram e fazem a crônica parecer coisa nossa, com marca de origem e carimbo de autenticidade nacional.




segunda-feira, 28 de setembro de 2009

OS DITAMES DA MODA


A efemeridade da moda é algo tão temeroso que, em alguns casos, se transforma em faca de dois gumes e o glamour sonhado pode se tornar um pesadelo.

Não me refiro ao visual básico, que vai do sapato ao vestuário, gerando modelos que vão além dos nossos suspiros. Estes apetrechos, quando se tornam demodês (até esta palavra caiu de moda), exercitam nosso espírito de solidariedade engrossando as doações nas campanhas de grandes catástrofes, pois, se existe algo que não sai da moda, é justamente nosso manifesto sentimento de piedade aos deserdados da sorte e carentes de justiça, principalmente a social.

Falo da moda irreversível ou onerosa para se retornar às origens ou até mesmo ficar na crista da onda, como remover a tatuagem ou trocar o piso da casa. A minha vizinha entrou na moda da ex-deputada Ester Grossi, aquela que tingia o cabelo de acordo com a cor da calcinha, e ficou tal qual uma metaleira desgarrada, servindo de risinhos jocosos por onde passava, e ainda lhe valeu o apelido de “Vovó Heave Metal Aloprada”.

Marta, a banhista, amava Misso, o surfista, que odiava a tatuagem que ela tinha na coxa. De tanto amar, e de tanto resmungar, ela capitulou: pegou um avião e foi a Salvador remover a tatuagem. Os dois se casaram e serão felizes para sempre até o dia em que ela se der conta da enorme cicatriz maculando suas belas coxas.

Nos anos 60 surgiu a moda do maracanã, aquele penteado que deixava a testa totalmente livre. Um dos meus irmãos embarcou na onda, gastou os tubos com brilhantina Glostora e, quando o cabelo fixou o penteado, a moda acabou e ele não conseguiu reverter a situação.

As telenovelas ditaram moda. Estilizaram o cotidiano e as grifes tornaram-se marcas poderosas e caras, fazendo surgir a pirataria moderna. As trilhas sonoras dominavam as “hits parades” e as músicas tornaram-se personalíssimas: os personagens se transformaram nos nomes da músicas, que passavam a ser “Tema de Chris”, “Tema de Simone”, “Tema de João Azulão” e assim por diante.

Tenho uma prima que nasceu no auge da novela Selva de Pedra e não é por um acaso que a mesma se chama Simone. Outros também tiveram seu antropônimo inspirados nos personagens fortes de Dias Gomes e Janete Clair, os então monstros sagrados das telenovelas. A indústria do jeans, dos calçados e fonográfica devem muito a esse casal que soube transformar o emocional das pessoas em febre de consumo.

Houve a moda dos carpetes. Finos, grossos, lanosos. Paraíso dos ácaros e a principal fonte de alergia. Com os carpetes, surgiu a moda dos nebulizadores e aspiradores de pó. Pisar em alguns com nossos pés impuros era um sacrilégio de tão limpos que eram. O remédio era tirar os sapatos à entrada da casa, à moda japonesa, o que podia causar sérios constrangimentos aos portadores de pé-de-atleta, o popular “chulé”. Ou mostrar u’a meia cheia de buracos.

Outra armadilha é dar nome fantasia a algum empreendimento comercial. Estilizar a marca baseado apenas em personagens ou nomes de novelas, é apostar na sorte, pois, na maioria das vezes, o sucesso só dura até o capítulo final. Depois disso, o prejuízo é iminente. O boteco “Cambalacho”, diariamente entregue às moscas, já teve seus dias de glória, assim como as discotecas “Dancing Days” que pululam em todo Brasil em ritmo frenético de decadência, já fez a juventude suar a camisa nas filas quilométricas de suas bilheterias.

Favela é coisa de carioca. Nos outros lugares há bairros pobres e bairros ricos. Há também os remediados. Mas, em qualquer situação, pobreza e riqueza se irmanam no mesmo modismo noveleiro. Norte e Sul unidos em torno da telinha. Para reforçar o que digo, o mais novo bairro da cidade de Maceió foi batizado no ano passado de Favela Portelinha. E Juvenal Antena é o que não falta por lá.

O povo é sábio, fala por Deus, e quando resolve batizar uma rua, um bairro ou uma cidade, com certeza a Natureza ou algum grande personagem da sua história será homenageado. Porém, quando um político interfere, a coisa complica e implica em abjeções toponímicas. A minha terra se chamava Junco, por abundar a planta “junco”, mas era moda se homenagear os políticos, e ela foi defenestrada de seu nome original para dar vez a um cidadão que nunca soube de sua existência. O povo, quando atinou para o prejuízo moral, nada mais pôde fazer, vez que outro município, usando da moda do ecologicamente correto, expurgou seu nome político, se apropriou da poética herbácea e mudou seu nome para JUNCO.

E as nossas leis funcionam tal qual a moda do jogo do bicho: “Vale o que está escrito”. Nesse caso, serviu como pule o Diário Oficial da Bahia.



domingo, 27 de setembro de 2009

LEMBRANÇAS INDELÉVEIS




Há certos aromas que são como a primeira namorada: a gente nunca esquece. Estava cumprindo o meu carma em um ponto de ônibus e de repente um forte cheiro de fumaça impregnou o ambiente. Não uma fumaça qualquer, mas a de um cigarro. Não de um cigarro qualquer, mas de cigarro de palha, aquele feito de fumo de corda, ou de rolo, como também é conhecido, picado em canivete e enrolado carinhosamente em papel-seda. A saliva serve como adesivo. Procurei a origem da fumaça e descobri um senhor, com cara de matuto, pitando seu cigarrinho ao léu, indiferente aos protestos de algumas mulheres irritadas e às minhas lembranças que afloraram incontidas.

Irineu de Lolô de Febrônio, meu pai, era cliente assíduo da Souza Cruz, mas gostava de enrolar seu próprio cigarro de palha, sentado no avarandado, admirando o arrebol do pôr-do-sol por detrás do Cruzeiro dos Montes, jogando conversa fora com os amigos e trabalhadores em final de lida, tomando um cafezinho passado na hora e torrado em tacho de cobre. Como todos fumavam quase ao mesmo tempo, a casa ficava impregnada com o forte cheiro dos alcalóides do fumo. Com a popularização do cigarro industrial, o cigarro de palha passou a se chamar, pejorativamente, de “escora-carroça”, “arromba-peito” e “mata-rato”.

Ninguém nunca atentou para um detalhe importante: o cigarro industrializado não só trouxe maior incidência de câncer do pulmão como aumentou o estresse e o esgotamento físico do trabalhador rural. Os cigarros vêm prontos para serem acesos, com filtro apropriado para receber pressão dos lábios sem se desmanchar, e o fumante não perde tempo entre o fumar e o exercício de suas atividades manuais.

Já o cigarro de palha demandava um tempo para a confecção do mesmo e não se permitia maiores pressões labiais, sob o risco de se desmanchar o papel. Nesse meio tempo, o trabalhador aproveitava para descansar de sua batalha campal, normalmente uma jornada superior a oito horas diárias, sob a inclemência de um sol causticante e de remuneração aviltante.

Geralmente havia mais de um trabalhador na lida, que paravam simultaneamente para pitar à sombra de uma árvore, jogando conversa fora, amenizando o sofrimento de uma existência desigual apenas por um papear momentâneo. Na simplicidade de suas vidas campesinas, mal desconfiavam que praticavam a terapia em grupo.

São lembranças de um cheiro transportado para os tempos da inocência em que não havia propaganda institucional alertando para o mal que o cigarro faz à saúde e que até causa impotência sexual. Ao ver tal advertência estampada no maço de cigarros, um amigo fumante pediu para que trocasse pelo maço que causa câncer no pulmão. E a modernidade levou o uso do papel-seda a ser associado exclusivamente aos seguidores de Sua Excelência, a Maconha.

O sol estava de rachar o cano e eu com a cabeça no tempo, cozinhando o juízo na longa espera da salvação proletária: o transporte coletivo. Os ônibus em Maceió são como castigos divinos: tardam, mas um dia chegam. Sai prefeito, entra prefeito, e tudo continua na mesmice de sempre. A fome apertando, o estômago roncando e a boca ressecada pela sede. Não havia uma sombra decente para amenizar a agonia da espera.

Uma vez acomodado no ônibus de volta ao lar doce lar cochilei nos solavancos e o mundo real se misturou ao virtual e tive um relampejo visionário de que o caos urbano começa nos pontos de ônibus, principalmente na volta pra casa.