sábado, 16 de julho de 2011

O bê-á-bá de Brasília: dicionário de coisas e palavras da capital - Por Edna Lopes



Meu caro Marcelo,

Embora não tenhamos nos avistado dessa vez, quero lhe agradecer a companhia bem humorada nesses meus dias na Novacap (já não tão nova assim). Tomar chá de cadeira em aeroporto, subir e descer de avião, se a gente não está em boa companhia fica difícil. O seu livro O bê-á-bá de Brasília: dicionário de coisas e palavras da capital foi mesmo uma ótima companhia e me faz dar boas risadas, só não sei se meus companheiros de poltrona acharam graça em viajar com alguém que enfia o nariz num livro e ainda ri sozinha. 

Brasília é uma cidade especial e mesmo trabalhando um tanto quando estou por aí, aproveito para rever amigos e foi uma pena que você perdeu a “Noite da tapioca das Alagoas em Brasília” em casa dos queridos Iara e Maurício, mas entendi seus motivos. Fica para a próxima, certamente.

Depois que li o livro quero recomendá-lo. Brasilienses, candangos, gregos e baianos reconhecerão seu bom humor, seu espírito livre e por vezes galhofeiro e também o seu amor por esta terra que o acolheu com tanta generosidade. Mesmo baiano, sua candanguisse da gema do ovo de codorna é explícita! 

E dentre tantas boas resenhas que li vou destacar abaixo a que achei mais representativa do conjunto da obra. Cá com meus botões fiquei pensando o ótimo serviço que seria um Guia de Brasília, com o olhar curioso de quem chegou e ficou, de quem ama e respeita sua diversidade cultural e sua atitude blasé de metrópole. Que tal?

Dicionário de Brasília é um glossário irreverente sobre a capital
Fonte: Revista Nós
*Publicado por Gregory Cotrim em 2 de junho, 2011
Brasília já possui um vocabulário para chamar de seu, ainda que seja um linguajar bastante influenciado pelas pessoas de fora, que representam a metade da população. Em Brasília, edifício é bloco; bicicleta é camelo ou magrela; e ônibus tem ao menos quatro “apelidos” – baú, Davi, caixão e GOL (grande ônibus lotado). Em Brasília, micro-ônibus é zebrinha, radar é pardal, retorno é tesourinha, térreo é pilotis, periquito é maritaca, tiara é diadema e meleca é um pequeno adesivo que se cola no peito.
(...)
A obra não se limita às gírias, palavras e expressões do cotidiano do Distrito Federal. Ela também aborda, de um jeito informal e irreverente, os mais diferentes aspectos da capital do país. Verbos como “arrudiar” e “abadiar”; apelidos de locais, prédios, monumentos e vias públicas (Cascata, Água Mineral, Prendedor, Bolo de Noiva, Túnel do Tempo, Torres Gêmeas, H, Eixinhos); e siglas, muitas siglas (QI, SQN).
O livro também mostra outra característica brasiliense – a mania de abreviar as palavras: véi, cachu, refri, Taguá, Ban-Ban, cerva, Piri, mó, fi e até fi-in são alguns dos termos usados pelos jovens.
Fatos, frases, palavras, gírias, expressões, coisas típicas, curiosidades, bizarrices. São 884 verbetes, numa espécie de Brasília de A a Z. “Este livro é uma declaração de humor a Brasília”, diz o autor, o jornalista Marcelo Torres.
Marcelo nasceu na pequena cidade de Sátiro Dias-BA, a 210 km de Salvador; com 15 anos de idade foi estudar em Salvador, onde se formou em Jornalismo, pela Universidade Federal da Bahia. Funcionário de carreira do Banco do Brasil, passou em seleção interna em junho de 2002 e veio trabalhar na Diretoria de Marketing e Comunicação, em Brasília, onde foi editor de uma revista interna. http://brasiliamaranhao.wordpress.com/2011/06/15/
SERVIÇO

“O bê-á-bá de Brasília: dicionário de coisas e palavras da capital”
Editora Thesaurus, 96 páginas
Site: www.thesaurus.com.br
Contato com o autor: (61) 9962 6035
marcelocronista@gmail.com

Obs. Marcelo Torres é primo legítimo de Tom e Vinícius, portanto, meu primo torto.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Cineas Santos - Pato, Ganso, Catatua e Caterva

A seleção brasileira de futebol participava de uma competição e, a exemplo do que está ocorrendo agora, ia muito mal das pernas. Certeiro como uma bala perdida, Millôr Fernandes disparou: “Se eu fosse tratado como esses rapagões e não pintasse pelo menos uma Capela Sistina por semana, eu me sentiria um incompetente”. Mais que uma bela sacada humorística, o filósofo do Méier botou o dedo na ferida: nunca antes na história da humanidade (com a devida licença do Lula), os jogadores de futebol, digo, as estrelas do futebol receberam tratamento tão diferenciado. Hoje, mais que atletas, esses bravos rapazes são tratados como deuses. Além de salários astronômicos, têm treinadores, fisioterapeutas, massagistas, nutricionistas, psicólogos e, principalmente, mulheres. Mulheres de todas as cores e versidades, com a prevalência das louras oxigenadas, naturalmente. As chuteiras, por exemplo, são moldadas e construídas sob medida para se ajustarem aos pés desses seres iluminados como luvas de cirurgião. Em campo, com raríssimas exceções, comportam-se como bisonhos cabeças-de-bagre: erram jogadas que os moleques entanguidos, nos campinhos de monturo, executam com eficiência e alegria. O que estaria acontecendo?

Para um entendido, “o futebol modernizou-se e passou a exigir desses superatletas, além de excelente preparo físico e técnica requintada, atitude”. Eis aí a palavrinha mágica: atitude. Com ela, podem-se abrir até as portas do Valhala. Dia desses, ouvi de um desses sábios de plantão o seguinte comentário: “Hoje, o Garrincha seria um estorvo num time como o Barcelona, que valoriza o futebol coletivo e de resultado”. Falta-me autoridade para contestá-lo. Particularmente, o que me surpreende é o fato de esses meninos ricos ainda encontrarem algum alento para jogar futebol, esporte que, às vezes, exige “sangue, suor e lágrimas”. Tomemos o exemplo de Neymar, recém-coroado pela Veja como “REYMAR. Aos 19 anos de idade, louvado como “um craque da linhagem de Pelé”, o garoto fatura pelo menos um milhão de reais por mês. Segundo o publicitário Washington Olivetto, “Neymar é o melhor exemplo do fute-pop-bolista, cruzamento de futebolista com artista pop , que une a habilidade de um craque com a irreverência de um artista. Esse perfil tem uma abrangência muito grande de negócios”. Tá explicado, não? O moleque entra em campo como um verdadeiro outdoor. Independentemente do que fizer durante o jogo, precisa sair bem na fotografia. A revista mais endireitada do país testifica: “Neymar não é um fenômeno só nos gramados. Dono de um senso de marketing inato, inventou um estilo e diverte-se manipulando a própria imagem (...), fica diferente de todos, todo mundo o adora, e ele é chamado para vender de celular a mortadela”. Consta que este novo Midas tem mais de um milhão de seguidores no Twitter. Com tantos penduricalhos a exibir e tantos negócios a administrar, é possível jogar futebol? Tenho minha dúvidas.

Estou escrevendo este arremedo de crônica antes do jogo entre Brasil e Equador, cujo resultado será decisivo para a permanência da seleção na Copa América. Seja qual for o placar da partida, mantenho tudo o que afirmei aqui. Nunca imaginei viver o bastante para ver um técnico da seleção brasileira protagonizando um comercial de cerveja. Não é preciso ser especialista em nada para saber que bebida alcoólica não combina com esporte, a não ser com arremesso de bagana. Sem perder a fleuma, o senhor Mano Menezes tenta o que parece impossível: fazer o Ganso e o Pato alçarem voo. Quanto a Neymar, com seu cabelo moicano, entrou na competição como rei, mas já está sendo carinhosamente apelidado pela galera de “cacatua ciscadeira”. Pena que já não se leiam os poetas: “A mão que afaga é a mesma que apedreja”.


quarta-feira, 13 de julho de 2011

O brega e a juventude

Hoje, remasterizando uns discos de vinil, os chamados “bolachões”, me reencontrei com a breguice de antigamente, que, perto das breguices de hoje, soam como músicas eruditas. Pelo menos, naqueles tempos, brega era a música melosa e romântica que se tocava no rádio e tinha um público fiel em qualquer ocasião. Os jovens de então, na vanguarda dos metais e sintetizadores, deixavam na retaguarda uma trilha sonora poética e melodiosa, chamada por eles de “música de velho”, esquecidos de que a música é arte, e a arte fica antiga, não envelhece.

Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Silvinho, Ângela Maria, Orlando Silva, Sílvio Caldas e muitos outros cantantes da serenata, eram os que recebiam a pecha de “brega” e eram desprezados pela turba jovem, sedenta de guitarra e distorção. Porém, para estes “bregas” ainda havia tolerância, pois restava algum resquício de infância ressoando na memória auditiva dos jovens ligando os laços musicais paternalistas. No entanto, havia outra vertente da música romântica, a mais moderna, representada por novos artistas que corriam à revelia da recente MPB. Eram chamados preconceituosamente de “cantores de empregada doméstica”, pois estas profissionais do lar gostavam de ligar o radinho de pilha em volume perturbador, sintonizado em emissoras AM (naqueles tempos não existia rádio FM.) de programação intragável e que constava na programação diária Odair José, Nilton César, Miss Lene, Gretchen, Diana, Fernando Mendes, Peninha, Moacyr Franco, Márcio Greyk e mais a jovem guarda que então se tornara brega, inclusive Roberto Carlos, que se salvou depois que virou especial de Natal, da Rede Globo, e que chegou ao final da década de 70 no auge da carreira, sendo que era chique, no fim de ano, presentear-se os amigos e parentes com o novo disco do “Rei”.

Mas voltemos aos bregas de antigamente, que não são os mesmos bregas de hoje. Naquele tempo nem “brega” existia. Dizia-se “cafona” a música que continha forte dialética sentimental, bem diferente dos atuais, que beiram o ridículo e carecem de conteúdo, mas encontram  grande receptividade nos jovens “cabeças ocas”, que deliram em êxtase nos pagodes, rodeios e blocos axés musicais da praga baiana que se espalhou por todo o Brasil feito erva daninha em terra devoluta.

Caetano Veloso, o ícone da nossa MPB, gravou Peninha (duas vezes) e Fernando Mendes e foi disco de ouro em menos de dois meses. Orlando Moraes gravou Odair José. Fafá de Belém gravou Waldick Soriano que foi gravado por meio mundo de gente, incluindo Maria Creuza, Altemar Dutra e Nelson Gonçalves. O maranhense Zeca Baleiro revelou ter sido fã de Waldick Soriano.

Pois é: a geração Hi-Fi vai envelhecendo e ficando besta, sensível e nostálgica, resmungando da juventude apática e caminhando no túnel do tempo na direção do passado, em busca de uma afirmação para a vida e de um sentido para a sua transitoriedade.

Afinal, em alguns instantes da nossa vida amamos os Beatles e os Roling Stones.



segunda-feira, 11 de julho de 2011

Luís Pimentel - As rabugices do velho Graça*

De Matador de Aluguel e outras figuras

Conta a lenda que o jovem repórter procurou o velho revisor, no covil dos copidesques do jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, para pedir uma opinião sem compromisso sobre texto literário. O velho revisor chamava-se Graciliano Ramos, escritor já consagrado que ainda precisava suar a camisa em redações para pagar as contas. Chegando à sexta ou sétima linha do texto, levou o primeiro susto, sublinhou uma palavra mal-empregada e devolveu os papéis ao iniciante, com um comentário sucinto:

– “Outrossim” é a puta que pariu!

Graciliano detestava conversa fiada. Quando a conversa era escrita, então, nem se fala. Economizava na fala e chegava a ser mesquinho no texto:

“Escrever é cortar palavra” era a sua máxima. E mais:

“Quem escreve deve ter todo cuidado para a coisa não sair molhada. Quero dizer que da página que foi escrita não deve pingar nenhuma palavra, a não ser as desnecessárias. É como pano lavado que se estira no varal. Naquela maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lava. Molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Depois colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Depois batem o pano na laje ou na pedra limpa e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer”.

Tenso como seus parágrafos e seco como o chão do seu sertão alagoano, onde nasceu em 1892 (Quebrangulo), o Velho Graça nos deixou no ano de 1953. Apreciador de aguardentes e fumante inveterado, não foi correspondido no amor devotado por mais de 40 anos aos cigarros Selma. Teve os pulmões bombardeados pelos bastões cancerígenos.

A fogueira das vaidades vive a incendiar corações e mentes de escritores, sempre achando que tudo o que escrevem deveria estar no index das obras-primas da humanidade. Diante desses, vale sempre a pena a gente se lembrar de Graciliano Ramos, que passou a vida a desconfiar de tudo e de todos, sobretudo dele mesmo.

Ao ser comunicado da premiação pela Prefeitura do então Distrito Federal dos originais de sua ficção infanto-juvenil A terra dos meninos pelados (publicado em 1941), torceu o nariz para o júri, em carta à mulher, Heloísa Ramos: “Premiaram uma bobagem, sem qualquer valor literário”. Diante do contrato para edição, foi além: “O Zé Olympio quer editar Os meninos. Problema dele, se está querendo jogar dinheiro fora”.

Graciliano Ramos interrompeu e retomou inúmeras vezes o ótimo Angústia (1936), por não enxergar ali qualquer valor literário (como também não enxergava nos anteriores, Caetés, 1933, e São Bernardo, 1934). O livro só não foi interrompido de vez (o que talvez interrompesse também a sua carreira literária) por conta da insistente cobrança de Rachel de Queiroz. O desconfiado queixou-se com Heloísa: “Julgo que terei que continuar o Angústia, já que a bandida da Rachel cobra e diz que é bom (...) Escrevi ontem duas folhas, tendo prontas 95. Vamos ver se é possível concluir agora esta porcaria”.

O livro que o projetou no cenário nacional foi São Bernardo (mereceu adaptação histórica para o cinema, com Othon Bastos e Isabel Ribeiro nos principais papéis, e direção de Leon Hirsman. Vidas secas também foi adaptado e filmado – com Átila Iório de protagonista –, pelo hoje imortal da ABL Nelson Pereira dos Santos). Ali desponta o narrador rigoroso de períodos curtos e contundentes, linguagem crua, magra e fria, contando a história do bruto homem da roça Paulo Honório:

“Aqui nos dias santos surgem viagens, doenças e outros pretextos para o trabalhador gazear. O domingo é perdido, o sábado também se perde, por causa da feira, a semana tem apenas cindo dias e a Igreja ainda reduz. O resultado é a paga encolher e essa cambada viver com a barriga tinindo”.
Não há uma palavra fora de lugar.

Graciliano Ramos correu atrás de bode, trabalhou em balcão de armazém, vendeu tecidos, foi professor, instrutor de ensino, prefeito em Palmeiras dos Índios (AL), preso pelo Estado Novo sob acusação de comunismo (a experiência de cadeia mais valiosa do mundo, pois ao mundo legou Memórias do cárcere, publicado no ano de sua morte) e mais tarde até comunista. Mas jamais precisou de coerência partidária para exibir, ao longo da vida, coerência e apego ao povo mais necessitado do seu sertão ou encontrado por ele nas inúmeras pensões por onde viveu no Rio de Janeiro.

*Do volume de crônicas “O matador de aluguel e outras figuras”, a sair em setembro, pela Editora Melhoramentos.

Nota do blog - Ilustração: capa, contracapa e orelha do livro

domingo, 10 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - A invasão da Terra

Somente agora consegui entender um filme de Mel Gibson, Sinais, já meio antigo. A inteligência é fraca, reconheço, pois o enredo é bem besta. Um fazendeiro americano, viúvo, cria sozinho os filhos menores até que encontra o milharal esmagado em imensos círculos. Daí decorrem os suspenses e as emoções até que se descobre o motivo de toda confusão: extraterrestres invadiram a Terra. Mais um bocado de suspense, mais outro tanto de emoção e o fazendeiro galã percebe que os alienígenas, como os franceses, não simpatizavam com banhos e passa a matá-los com altas doses de água. Pronto a Terra está salva.

Até aí entendi tudo direitinho, o que me incomodava era uma determinada cena. Como a invasão era mundial o Brasil não poderia ficar de fora e, vendo televisão, Mel Gibson é informado que um extraterrestre passeia pelas ruas de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Por que essa escolha já que tudo por aqui acontece no Rio ou em São Paulo? Conheço a cidade e quase fui expulso de lá por conta de minhas limitações culturais. Declarei num artigo que a comunidade está implantada no pampa gaúcho. Levei um puxão de orelhas: “Ficamos no Planalto Médio. Até Teixeirinha diz isso numa música.” Quem mandou não escutar o bardo gaúcho nem estudar geografia?

Fora este deslize, e apesar do frio, me dou muito bem por lá. Freqüentemente sou convidado para ciscar naquele terreiro e fiz muito boas amizades ali. Apesar do frio. Acostumado com o clima ameno de Garanhuns e congelando aos quinze graus, suportei com garbo e elegância os nove graus que costumeiramente baixa na cidade. Num dessas noites geladas, torcendo moderadamente, assisti o Sport vencer o Grêmio. E tudo sem fazer um inimigo, afinal estava cercado por solidários torcedores do Internacional.

Claro que não foi o futebol, muito menos o frio, que me levou a Passo Fundo. Sob um circo armado no campus da universidade, na companhia de cinco mil pessoas, por toda uma semana passei todo o dia e parte da noite a escutar outros mortais falarem de suas obras e suas criações. Perdemos a noção do tempo e embevecidos gastamos nossas horas enquanto lá fora o mundo corria com seus encantos. Manhãs de sol, crianças nas ruas, velhos nas praças, carneiros pastando, bovinos e muares sob as serras. E nós enfurnados em tendas, protegidos do vento e da vida, a discutir palavras.

Somos uma estranha trupe e nos encontramos em todos os lugares que nos permitem a falta de lucidez. Anualmente invadimos Paraty. O mar está próximo, mas também ali somos fustigados pelo frio. Ele nos avisa que aquela não é a nossa praia, que a cidade carece de belas moças semi-nuas a quarar sob o sol tropical. Teimosamente, no entanto, vestimos pesados casacos de couro, nos cobrimos de lã e pisamos as pedras seculares que nos dá um eterno andar de bêbado. Novamente buscamos o abrigo de tendas e, aborígenes modernos, voltamos aos nossos debates, ao exercício perdulário de gastar palavras, palavras, palavras.

Quando chega a noite, fechadas as tendas, reforçamos nossas vestes, nos abrigamos nos bares, pagamos caro por bebidas e petiscos – a conspiração que nos combate usa todas as armas – e voltamos ao mundo das palavras. Distribuímos elogios e patadas, brigamos sempre, nunca chegamos à conclusão nenhuma, fugimos das todas as unanimidades e amamos seres patológicos que passam a eternidade entre quatro paredes sonhando com mundos paralelos e irreais, enquanto pelas praias caminha a sensualidade despida de um país tropical que dispensa o peso das lãs e dos couros.

Teimosamente também conspiramos e espalhamos nossos vícios por todos os recantos. Bravamente enfrentamos o sol e o calor da marinha Alagoas. Em Marechal Deodoro tiramos os turistas da praia do Francês e os atiramos, junto conosco, num auditório climatizado por ar-condicionado e parolamos, parolamos, parolamos. Nossa prosa infinda invade as águas da lagoa de Manguaba, navega a placidez de Mundaú e chega a Maceió. Desabitamos a Ponta Verde e os corpos bronzeados, solares, nos olham indiferentes e seguem para a vida que margeia os canaviais e se reinventa nas engrenagens da usina.

Nem assim nos entregamos. À noite, de volta aos paralelepípedos de Marechal, subimos ladeiras cantando antigas canções. Somos felizes e as vezes fechamos parceria com a vida escutando um sax melancólico na escuridão, sob o luar, e dançamos tangos, boleros, frevos. Este mundo é meu, este mundo é meu.

Um dia a umidade pegajosa da Amazônia envolveu nossa turma em Manaus. Como as calçadas desenhadas do teatro eram amplas e a vastidão do Amazonas nos assustava, trancamos jovens estudantes no ambiente art nouveau de um vetusto salão e desandamos a falar sobre um certo bruxo que morava num lugar distante e viveu marcado pela epilepsia a inventar vidas e dúvidas.

Haja frio ou calor nossa luta cotidiana nunca cessa. E de nada valerão os truques do cinema americano. Enfrentamos tempestades, torrentes, vulcões. Heroicamente nos apossamos de redes, espreguiçadeiras, ônibus e aviões. Somos soberanos em nossas obsessões e vamos ainda dominar a terra.

Somos uma trupe estranha e dela participa o extraterrestre combatido por Mel Gibson, pois agora tenho certeza de que ele foi a Passo Fundo, a convite de Tânia Rösing, participar da Jornada Literária. Isso ninguém me tira da cabeça.