sábado, 24 de janeiro de 2009

RESENHA LITERÁRIA


Coração a Esmo

Por Edna Lopes

“Por si só o título Coração a Esmo, já denuncia tratar-se de um livro de poemas românticos, onde o sentimentalismo e a imaginação se sobrepõem à razão”. Com essa afirmação o escritor José Olívio inicia a apresentação do livro de poemas de Cristiana Alves professora e poeta baiana.

A leitura do livro foi sugestão de Tom, meu companheiro. É um livro agradável de ler e o coração não está tão a esmo assim. Ao contrário, está de pés bem fincados na sensibilidade, no olhar que alcança realidades para além das aparências.”Sou uma mulher de metáforas” diz, no poema que dá título ao livro.

O ritmo e a forma que a autora escolheu para validar o que pensa e sente nos 41 poemas do livro é leve, de leitura fluente, mas isso não tira a intensidade de versos como estes: “Se eu fosse o sonho, faria eterna a inocência das crianças e erradicaria a maldade humana” (Se) e “A rotina se transforma em prisão viva e o homem aprisionado sonha com o vento que livre sopra, dança e se movimenta no deserto do Saara”(Os Giros da Vida).

A poeta faz consigo um diálogo maduro. Seu universo poético é o amor e suas formas. Da paixão amorosa (Silêncio que Murmura) ao sentimento religioso (Deus), da observação (Ré Confessa) a aceitação da indiferença do tempo (Tempo Fugaz).

Na constatação da urgência da vida “Nada de falar de amor eterno se a vida é efêmera” (Nada pra Depois), falando em efemeridades o seu “E-mail” meio que lamenta: “Já não espero o carteiro com suspiros poéticos de atriz de teatro.”

Pena. Mas, Tempus fugit, e se eu fosse esperar o carteiro para enviar essa resenha, provavelmente você não a estaria lendo e, certamente, Cristiana não saberia que gosto de poemas e que, de férias, aceitei a indicação da leitura com prazer.

Edna Lopes, Maceió AL

http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=24584

Link para o texto:

http://recantodasletras.uol.com.br/resenhasdelivros/1402761



ESCRITORES DO ARRAIAL DO JUNCO

Hoje abro espaço para a poetisa Cristiana Alves, publicando dois poemas do seu livro “Coração a Esmo” (Editora Taba Cultural, Rio de Janeiro, 2007).


Cristiana Alves é graduada em Letras e pós-graduada em Estudos Literários, na UNEB de Alagoinhas. Atualmente é professora do Colégio Estadual Profº Edgard Santos, em Sátiro Dias.


E-mail: crisalvespoeta@yahoo.com.br




PORTO DO ADEUS





Estórias que se perderam

Quando na praia naufragou

Os versos do capitão

Que por uma sereia se apaixonou.

No céu as estrelas desmaiaram

E se lançaram sobre o mar;

Na terra as mulheres choraram

Com a Lua solitária

Que não podia fazer a noite estrelada

E pediam a luz do dia

Que não chegava,

Pois a dor se espalhara

E o Sol, do capitão, com saudade,

Numa nuvem chorara,

Enquanto no porto,

Solitário, o amor esperava.



NO PALCO DA VIDA





A vida é uma novela.

É um palco de teatro,

É um filme de cinema.

A novela real,

O teatro sofrível,

O cinema vivo.

Não é ficção,

Não é conto.

É a dura, e às vezes, divertida

Realidade.

É pena que não possamos

Rever as cenas ,

Cortar os erros

E tornar tudo perfeito.



quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

PRECE IRLANDESA



Da minha grande amiga Maria Helena Bandeira, do Rio de Janeiro, recebi esse trecho de uma lindíssima e antiga prece irlandesa por ocasião do meu primeiro aniversário. Reparto-a com os amigos leitores deste blog, gente que, em sua maioria, precisa da bênção da terra e da dádiva da chuva.




Que a benção da luz seja contigo
- a luz exterior e a luz interior.


Que a santa luz do sol brilhe sobre ti
e aqueça teu coração
até que ele resplandeça como um grande fogo de turfa
e assim o forasteiro possa vir e nele se aquecer,
como também o amigo.

Que a luz brilhe de dentro de teus olhos,
como candeia colocada na janela de uma casa,
oferecendo ao peregrino um refugio na tormenta.

E que a benção da chuva,
da chuva suave e boa,
seja contigo.

Que ela tombe sobre tua alma
para que as pequenas flores todas possam surgir
e derramar suavidade na brisa.

Que a benção das grandes chuvas seja contigo,
caindo em tua alma para lavá-la bem lavada,
nela deixando muitas poças reluzentes
onde o azul do céu possa brilhar
e, às vezes, uma estrela.

E que a benção da terra,
da grande terra redonda,
seja contigo.



segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Carta de apresentação

Sou Ronaldo Antonio por obra e graça de Maricas Coxeba, a escrivã do arraial do Junco, e do meu irmão mais velho, na época, jornalista do Jornal da Bahia, que um dia resolveu matar a saudade da roça e se arrepiou quando soube o meu nome:

- Mamãe, não tá vendo que Toninho não pode se chamar Tonho de Lisboa?! Isso é uma ofensa a qualquer cristão.

- Foi uma promessa que fiz, pra Santo Antonio de Lisboa, porque ele nasceu muito feio e fiquei com medo do seu pai fazer alguma maldade a ele pensando tratar-se de um monstro.

- Mas a senhora não sabe que é melhor ser feio com nome bonito do que bonito com nome feio?!

Dito isso, ganhou o caminho da cidade, o pequeno arraial do Junco, um amontoado de casas a desafiar a poeira, a seca e a solidão do sertão nordestino. Voltou quando a vermelhidão do crepúsculo cedia ao azeviche noturno. Trazia novidades:

- Conversei com Maricas Coxeba. Ela concordou em mudar o nome de Toninho. Tonho de Lisboa é coisa do passado. O nome dele agora é Antonio Ronaldo. “Antonio”, do seu santo, e “Ronaldo”, em homenagem a um grande amigo meu.

Maricas Coxeba, a escrivã, podia tudo. Ganhou esse nome por causa de um defeito na perna direita, que a deixava com o andar capenga, coxo. Achava-a ranzinza, implicante, metida a besta. Com o passar do tempo compreendi que era instinto de autodefesa. Vivia só, entre homens rudes, e a falta de companhia devia lhe consumir o espírito solitário. E a solitude da terra contagiava. As noites no arraial do Junco são tão silenciosas e melancólicas que até se ouve densamente as conversas dos fantasmas errantes que povoam a solidão noturna.

Ela teve a chance de me ferrar em duas oportunidades, porém não tomou nenhuma atitude hostil. Uma, foi quando descobriu dois sapinhos no leite que eu lhe entregava, mal o sol raiava, trazido da roça no lombo de um jegue. Era o truque de multiplicar o leite no tanque de Zeca Vieira, localizado no caminho entre a roça e a cidade. Em vez de contar para o meu pai, preferiu me pregar um sermão memorável, citando todos os preceitos morais, éticos, espirituais e religiosos que norteiam a vida do cidadão. Duas horas e meia de falatório. A outra, a qual lhe devo eterno agradecimento, foi ter me livrado do estigma de Tonho de Lisboa. Antonio Ronaldo, este sim, é que é nome!

Sendo Tonho de Lisboa de batismo e Antonio Ronaldo de registro, não senti nada mudar. Afora a professora Serafina que me chamava de Antonio, o resto da população me chamava de Toninho. Um ano depois nos mudamos para Alagoinhas e as professoras preferiram me chamar pelo sobrenome Torres. Os novos colegas acompanharam as mestras. Quando concluí o quinto ano primário, foi preciso me inscrever pro exame de admissão ao ginásio, uma espécie de vestibular de acesso ao ensino ginasial. Tive uma surpresa na hora de anexar a certidão de nascimento aos documentos exigidos: Antonio Ronaldo era mera fantasia.

A partir de então passei a existir, oficialmente, com o mesmo nome que trago até hoje. Nascido em 21 de fevereiro de 1956, sob o signo de Peixes, fui registrado em 21 de janeiro do mesmo ano, sob a regência de Aquário. Antes de ser, eu já existia. Sobrou a vantagem de poder escolher o signo de Aquário quando a maré não estiver pra Peixes. Ou vice-versa.

Em 1977, quando precisei do batistério pra me casar, tinha Ronaldo Antonio por nome oficial e Tonho de Lisboa por de batismo. A Igreja relutava em aceitar as minhas alegações da troca de nome. “Você é um meliante, um falsário, um transgressor das Leis e merece ser preso por falsidade ideológica”, me disse um bispo de Salvador. No meu caso, não valia a máxima: “Quem não tem a quem reclamar, reclama ao bispo”. Recorri ao padre Machado - que não cortava pau, porém estava na iminência de quebrar um grande galho - na paróquia do Rio Vermelho, companheiro de copo nas farras homéricas no bar de Diolino, que, depois de duas talagadas da batida de tamarindo mais famosa da Bahia, mandou o bispo às favas, ignorou os severos regulamentos eclesiais e autorizou a minha entrada na igreja de Nossa Senhora Santana de terno e gravata, protagonizando o cortejo nupcial. Tinha pressa. Muita pressa. A protuberância do ventre da noiva aumentava em proporcionalidade direta ao tempo e o meu sogro ameaçava desengavetar o trabuco, a bem da honra e dos bons costumes.

Por castigo divino, o meu amigo Machado se apaixonou por uma beata, abandonou a batina, a cachaça, os amigos de farra, amarrou a trouxa e foi morar com ela. Perderam: os fiéis, um padre bom de missa; perderam: os bêbados errantes, seu padre confessor. Anos depois, deprimido pela falta do vinho canônico e do bate-papo mesclado a fumo e a álcool das noites boêmias do Rio Vermelho, o meu amigo não resistiu à pressão interna da psicopatologia e se enforcou. Não deixou testamento nem carta de despedida, porém houve muita cachaça no seu velório.

“Seria essa a sua última vontade”, nos disse, entre soluços, a viúva. Alguém se lembrou de erguer um brinde fúnebre ao ausente Kléber, morto um mês antes. Não seguiu o exemplo do ex-padre, contudo bebia feito um condenado. Morreu de cirrose hepática antes de completar os trinta anos. Lembrei-me da teoria do meu irmão, nos primórdios dos tempos. Talvez ele tivesse razão. Kléber era um sujeito feio, horrendo, todavia tinha um nome bonito. E por causa do seu nome ninguém dava importância à sua feiúra.

Intimamente agradeci a Maricas Coxeba e ao meu irmão. Sem a conspiração dos dois, quem seria eu afinal? Qual patrão daria emprego a um Tonho de Lisboa? Qual mulher dormiria, em sã consciência, com um Tonho de Lisboa? Que igreja daria guarida a um Tonho de Lisboa? Pedi silêncio aos presentes no velório para um breve discurso de despedida, a elegia final:

- Meus amigos, peço-lhes que façamos um brinde ao meu irmão mais velho e a Maricas Coxeba, a escrivã de minha terra. Devo a eles a dádiva de poder estar aqui, hoje, com vocês. Sem a intervenção dos dois, eu seria um suicida em potencial, provavelmente um morto-vivo. Ergamos os copos para o céu e digamos amém!

Ninguém entendeu nada do que falei, mas brindaram assim mesmo. Quando estamos diante de um morto, estar vivo é um bom motivo para se comemorar.