sábado, 23 de julho de 2011

Edna Lopes - O chão de Graciliano


O chão de Graciliano é também o meu chão, não apenas porque nasci nas terras da Fazenda Serra Grande, no município de Quebrangulo, estado das Alagoas, mas porque é o chão dos meus afetos mais caros, da minha raiz brasileira.

O chão de Graciliano se estende para além das fronteiras do chão em que nasceu o Mestre. É o chão da nordestina adversidade, uma terra castigada por um sol inclemente, mas também abençoada com chuvas que fazem esse mesmo chão que racha, virar um tapete de flores.

O chão de Graciliano é um livro especial e deve ser lido com os cinco sentidos e o li assim. Li com os dedos ansiosos pela próxima página, pela próxima fotografia, pelo próximo relato do autor das palavras. Li com a sensação da traquinagem dos banhos escondidos numa cachoeira do Rio Paraíba.

Li com o ouvido da alma atento às lembranças do canto da acauã, do alvorecer entre cacarejos e mugidos, do bater das asas da garça nos açudes,  entre o entardecer de silêncio e solidão, na vermelhidão da boca da noite.

Li com os olhos encantados e às vezes tristes, pelas imagens tão cruas, tão reais, tão duras, mas ainda assim esperançosas, como a fé que anima os viventes das Alagoas, Fabianos e Sá Vitórias de vida severina, com seus corações de acolher o mundo.

Li com o coração saudoso do cheiro das primeiras gotas de chuva na terra ressequida, do cheiro do café torrado e moído por meu pai, do cheiro de estrume e leite fresco, do tacho de doce de leite e de queijo, no fogão de lenha.

Li com a mesma saudade do gosto desse doce e desse queijo, do vapor do milho cozido e da caneca de leite fresco na beira do curral, guardados como “comidas da alma”, na memória afetiva das lembranças mais caras e saborosas.

O chão de Graciliano é um livro especial não só por tudo que me fez sentir e lembrar, mas também por ter sido presente do autor dos textos, o jornalista e escritor Audálio Dantas, que juntamente com sua esposa e jornalista Vanira Dantas, amigos queridos, estiveram comigo no dia do meu aniversário, no dia de Santo Antonio, em São Paulo.
Vale à pena ler e se encantar com os detalhes desse Chão.

Serviço:
O livro de arte-reportagem, “O Chão de Graciliano”, editado pela Tempo d’Imagem, mostra, em texto de Audálio Dantas e fotografias de Tiago Santana, presidente do iFoto, a região de nascimento e criação literária de Graciliano Ramos.

O livro, com versão em inglês e espanhol, é o resultado de várias viagens ao sertão de Alagoas e Pernambuco, a partir de 2002, quando foi feito o primeiro ensaio fotográfico para a exposição “O Chão de Graciliano”, em 2003 (Sesc Pompéia, em São Paulo), considerada a mais importante até hoje realizada sobre a vida e a obra do escritor. O evento, com projeto e curadoria de Audálio Dantas, marcou a passagem dos 110 anos de nascimento de Graciliano e os 70 anos da publicação de seu primeiro romance, “Caetés”, e percorreu várias cidades, entre as quais Maceió (AL), Fortaleza (CE) e em Recife (PE), na Fundação Joaquim Nabuco, com palestra de abertura de Ariano Suassuna.

Os autores e o Chão

Os autores do livro têm em comum a origem nordestina. O jornalista Audálio Dantas nasceu na pequena cidade de Tanque d’Arca, Alagoas, a poucos quilômetros de Quebrangulo, terra natal de Graciliano. Seu texto, uma reportagem literária, registra o tempo e o espaço do escritor em sua região, o passado e o presente muitas vezes se confundem, pois em muitos aspectos as condições do homem que nela vive permanecem praticamente as mesmas.

Cearense do Crato, o fotógrafo Tiago Santana, cresceu vendo os romeiros que buscavam milagres em Juazeiro, cidade do Padre Cícero, ali perto.

Como a obra de Graciliano, o ensaio fotográfico de Tiago é centrado na figura do homem, tendo a paisagem como mero pano de fundo. Na apresentação do livro, o jornalista (também nordestino) Joel Silveira afirma: “O chão percorrido pelo fotógrafo é o mesmo sobre o qual Graciliano construiu a sua literatura, mas não é a paisagem, a terra quase sempre dura e seca, que Tiago recolhe em sua câmera; o que ele registra é o homem que nela vive, sobrevive ou dela se retira quando de todo perde a esperança – eterno Fabiano”.

O Chão de Graciliano é um projeto da Audálio Dantas Comunicação e Projetos Culturais e da Editora Tempo d’Imagem, com incentivo da Lei Rouanet (...)




quinta-feira, 21 de julho de 2011

MEA CULPA, MEA MÁXIMA CULPA


“A alegria é um dos mais reveladores traços humanos,
basta a alegria para revelar as pessoas dos pés à cabeça.”
Dostoievski, in 'O Adolescente'

Certa vez, quando eu escrevia em site coletivo, uma internauta me enviou um e-mail indignada por encontrar algumas piadas na minha página, cuja mensagem deixo abaixo, na íntegra:

“Li na sua pg algumas piadas que, naturalmente não são suas, muitas delas com arquétipos, ou que mesmo não têm nada a ver com cultura, literatura, inapropriadas, portanto, para estarem em páginas que aventam cultura literária, até pq tb e principalmente não são piadas suas. Isso é ético? Sim, pq é preciso ética acima de tudo, se não nunca podemos nos manifestar, principalmente criticando. Os seus textos, por outro lado, entre causos, contos, são razoáveis.”

Nos tempos em que eu andava pelos chamados e-groups, houve alguém que questionou a inserção de piadas na chamada lista, pois eu, todas as manhãs, saudava o povo contando uma piada. Achava ela que piada não era literatura e, para amenizar um pouco, fez uma concessão: piada só com autoria. Tal transigência, em que pese a generosidade da reclamante, por si só já era uma piada. 

Distimia é o nome para a doença chamada mau humor, uma forma light de depressão crônica. Um transtorno mental. Por causa desses transtornados que se escondem por trás de um monitor que meu gás acabou para esses grupos de bate-papo literário. Mas, antes de abandonar o barco das vaidades e veleidades, enviei meu recado ao grupo, cujo teor se enquadra na resposta da minha missivista virtual:

“Façamos um hiato nas nossas prolixas produções literárias e vejamos uma curiosidade obscena chamada de “Gênero Literário”. 

Gênero Literário é aquele negócio que faz você, leitor, identificar, sem medo de errar, o que é um poema, um conto, uma crônica e por aí vai. São quatro, os gêneros: Lírico; Épico; Dramático e Especiais. 

Mas aqui só me interessa um: o Épico.

A principal característica do Gênero Épico é o texto em forma de narração. Divide-se em: Romance; Novela; Conto; Crônica; Anedota; Fábula; Parábola.

Anedota????????????? Pois é. Anedota.

E assim nos ensina o professor Wilson Roberto C. Almeida, em seu livro “Língua e Linguagem”:

“Anedota:
Tem por finalidade despertar graça e seu significado literal é ‘algo inédito’. Hoje, anedota é uma pequena história de conteúdo humorístico”.

Por outro lado, o Aurélio diz:  Anedota -  P. ext. Piada (3).   E o Houaiss? Que será que diz o  grande Houaiss em seu dicionário com mais de duzentos e cinqüenta mil verbetes e que me custou cem reais o cd-rom? Vejamos o que diz em “sinônimos variantes” de anedota: conto, episódio, historieta, piada”. Piada???? Esse Houaiss maluqueceu! Acho que joguei meu dinheiro fora!”

Decerto que as piadas não são minhas, conforme dedução da reclamante. Como não existia o gênero “piada”, no referido site, fiz uso repetido do título daquela revista americana “Seleções Readers Digest” para o tópico de piadas: “Rir é o melhor remédio”. A primeira vez que li a Seleções tinha dez anos de idade, e tenho certeza que a maioria dos internautas já leu uma, alguma vez na vida. E, apesar de ter muitas piadas, é uma revista mais séria do que qualquer site de Literatura. E eles ainda pagam por uma boa piada. A revista Playboy, cuja essência é a nudez feminina, também paga bem por uma piada. E eu escrevia de graça.  A reclamante, em vez de me acusar de aético, devia me agradecer por ter alegrado um instante de sua existência.

As piadas são de domínio público, não têm autoria, e são os textos mais corrompidos que se tem notícia. Cada um conta ou escreve a seu modo e jeito: um, mais engraçado; outro, menos. Nenhum autor se sente diminuído por escrever piada, principalmente os cronistas, quando lhes falta inspiração. Quem nunca viu uma piada em gibi, em algum livro, em alguns contistas e cronistas famosos? No dia que alguém se intitular dono de uma piada, outro anunciará de algum lugar, entristecido com o fenômeno: “Este É o Dia Que o Riso Acabou”.

O riso é sagrado. São Tomás de Aquino, o santo filósofo, dizia que "brincar é necessário para levar uma vida humana".  O riso é uma coisa tão séria que mereceram estudos de Platão e Freud. Desopila o fígado, faz fluir o sangue pelas veias aliviando a pressão arterial, fertilizando a mente e o espírito. Mas, rir ou não, é um direito de cada um. Ninguém é obrigado a rir ou a gostar de piadas. Mas não reconhecer nenhum mérito literário nelas, é negar o obvio e comprometer-se em teorias esdrúxulas, embasadas no desconhecimento ou na pura ignorância dos enunciados da teoria literária.

Quero aproveitar o ensejo e agradecer à minha leitora que, dentro de seu vasto mar de conhecimento crítico, teve a generosidade de achar os meus textos razoáveis.


terça-feira, 19 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - O reino do invisível

Foi assim. Um auditório repleto, coisa de difícil enfrentamento. Neste caso, no entanto, estamos num estágio ainda pior. Um auditório repleto de crianças, quase adolescentes ávidos para trucidar o coitado de um escritor desguarnecido de imaginação e esperanças. Uma horda de canibais modernos vazando curiosidade por todos os poros. O desespero aumentou quando percebi que era eu a vítima do delírio famélico daquela gente miúda, liliputianos a transpirarem sangue pelos olhos. Meu desespero aumentou quando descobri que não transitava no espaço do onírico. Na mais cruel das verdades percebi que não havia saída de emergência. Juro que invejei Hans Staden.

Como um herói despido, pisei o primeiro degrau da escada. Entrei no palco e, ateu convicto, apelei para o Senhor das Esferas – Seja o Deus quiser. E Ele foi generoso com este seu filho desgarrado. As crianças e adolescentes ansiavam que eu falasse de literatura, criação literária, essas coisas que edulcoram nossas vidas tão insossas.

Por que o senhor escreve?

Diante da primeira pergunta não temi, ao contrário desandei um rosário. Escrevo por um motivo muito simples: sou, em verdade, um grande mentiroso, e isso pode ser uma imensa mentira, afinal quem em sã consciência acredita em um embromador? Fato mesmo, buscando os cânones da veracidade, é que a fama de escritor é mais salutar que a de simulador, daí escrevo todas as minhas inexatidões e atendo convites para parolar com pubescentes hodiernos.

O diálogo não se deu desta maneira, afinal muitas das palavras aqui empregadas apanhei agora no dicionário, esse companheiro de horas infindas, mas o tom foi este mesmo. Além do mais quem falar daquela maneira, num arremedo danado do velho Camões, merece bons safanões, imensos apupos.

Esgotadas todas as agressões possíveis aos dicionários, voltemos à frieza dos fatos. Nós escritores – tenho a pretensão de ser um deles – somos vendedores de mentiras. Durantes horas, dias, meses, anos convivemos com pessoas que não existem. Mesmo assim conversamos com elas, compartilhamos todas as suas angústias, todas as suas esperanças. Choramos suas dores, rimos suas felicidades. E se por ventura algum desavisado aventureiro desdizer a mais vil e canalha destas criaturas nos tomamos de mágoas maternais e defendemos estes seres imateriais como quem se bate em favor de um filho.

Somos estranhos, reconheço.

O danado é que quase sempre nos apanhamos em dúvidas: Isso de fato aconteceu?

Ainda outra hora lembrei uma tarde vadia na Câmara dos Deputados. Sempre que conseguia estes espaços corria para a sala onde trabalhava Luiz Berto. E ficávamos ali a falar da vida alheia, mas posando de intelectuais a discutir os destinos artísticos da nação. Foi então que surgiu uma bela e jovem vate abraçada às suas produções. Era de fato uma moça interessada nos meandros da literatura tanto que, informaram-me, cursava letras numa faculdade qualquer. Berto leu as estrofes e, com uma incolor pergunta: o que você acha?, passou-me as folhas. Li. Levemente constrangido sentenciei: Lembra-me o poema Menina e Moça, de Machado de Assis. E a novel bardo pergunta com serenidade: Quem é Machado de Assis?

Terá sido isto verdade?

Vivo com meus comparsas o mundo das inverdades, mas mentimos apenas para a folha em branco. Ou a tela em branco. Resguardamo-nos numa ética que pode parecer estranha. E nos alimentamos de fantasias amando a veracidade, por isso desconfiamos sempre da vida. Ela nos espreita e nos surpreende em cada nova esquina. E há fatos que contamos desconfiando de nós mesmos, afinal a vida também é uma grande mentirosa.

Há tempos, num tempo onde ganhava o necessário para a sobrevivência dando aulas numa faculdade, fui abordado por um rapaz. Sou seu aluno, me garantia. Minha memória não chega a ser uma maravilha, mas também não costuma falhar com freqüência. E como tinha outras atividades profissionais, era fácil lembrar o rosto de cada freqüentador das poucas salas onde ministrava a ciência do jornalismo. Aquela cara, tinha certeza, me era totalmente desconhecida. E o moço insistia: sou seu aluno.

Depois de um breve interrogatório descobri o fato. O rapaz havia se matriculado em minha disciplina, mas já estávamos no final do semestre e ele não comparecera a nenhuma aula. E fazia um pedido singelo, que lhe aplicasse um teste capaz de o aprovar na matéria, pois, segundo me garantia, mesmo faltando a todas as aulas, conhecia em profundidade a matéria.

Que diploma de jornalismo eu poderia dar aquele moço?

Radicalizei. Fale-me sobre Ionesco.

Sobre quem, professor?

Eugène Ionesco.

Diante da cara de espanto do aluno retruquei. Ionesco, um dos pais do teatro do absurdo, era romeno e escreveu um clássico, A Cantora Careca, onde durante todo o espetáculo se procura a tal cantora que nunca aparece, pois simplesmente não existe. Meu caro, você é minha cantora careca. Você não existe.

Vivemos num mundo de delírios, mas procuramos sempre o caminho da sinceridade. É que ler mentiras nos parece um exercício bem honesto.