quarta-feira, 16 de março de 2011

Uma Noite pra lá de Bagdá



O Coronel fora chamado a Brasília para uma reunião extraordinária com o Ministro do Exército. Havia a possibilidade de ele assumir uma diretoria em uma estatal, recompensa pelos mais de trinta anos dedicados ao verde-oliva. Sua dileta esposa arrumou as malas e o acompanhou até o Planalto Central. Enquanto ele tratava de negócios com o Ministro, ela colocaria as fofocas em dia com a amiga virtual Emilly Sepol. Melhor oportunidade não havia para um tête-à-tête.

Na primeira noite do Coronel e a esposa em Brasília, Emilly Sepol saiu mais cedo da universidade onde assinava ponto e passou no hotel para pegar o casal para uma girada pelos bares da cidade, uma das duas coisas interessantes que existem no Distrito Federal. A outra é a passagem de volta.

O Coronel declinou o convite e preferiu ficar no hotel. Estava cansado da viagem e teria um longo dia pela frente, na manhã seguinte. Ademais, não queria beber naquela noite para não falar com o Ministro exalando bafo de leão.

As duas sacerdotisas de Dionísio, embaladas pela emoção do encontro, chaparam todas e mais algumas, sem dar bolas para o azar. Falaram dos filhos, dos maridos, das sogras, dos vizinhos barulhentos e até do mensalão do DEM. Quando a madrugada se anunciava, resolveram voltar para casa, uma mais bêbada do que a outra.

– Laurinha, cuidado que ali na frente tem um baita de um buraco! (hic!) – alertou Emilly Sepol, conhecedora dos mínimos detalhes da rua de Brasília.
– Cuidado o quê!? (hic!) Quem está dirigindo é você!

Caíram na gargalhada. Cantaram “te amo, Brasília” e na última estrofe Emilly Sepol falou:

– Xiiiii! Tou morrendo de vontade de fazer xixi!
– Eu também!

Emilly Sepol diminuiu a velocidade do carro, procurando um local deserto para desafogar a bexiga. Avistou o cemitério. Estacionou atravessado e desceu correndo para regar o terreno dos mortos. Laurinha correu atrás. Era uma questão de vida ou morte. Do jeito que despejaram a bica, haveria uma farra no Além. Puro malte e cachaça mineira. Das boas.

Aliviada a bexiga, uma se lembrou de que não tinha nada para se enxugar. Pegou a calcinha, se enxugou e jogou fora. A outra resolveu tatear no escuro até encontrar a fita de uma coroa de flores e se secou. Depois as duas saíram abraçadas e cantando Cartola, felizes da vida: “... solte o seu som da madeira / eu você e a companheira / à madrugada iremos pra caaaasa / cantandoooo.”

No dia seguinte, antes da conversa com o Ministro do Exército, o Coronel passou na casa da Emilly Sepol,. Chamou o marido a um canto e falou baixinho para que as crianças não ouvissem:

– Meu camarada, nós temos que ficar de olho nessas duas. Andaram aprontando por aí. A Laurinha chegou de madrugada, completamente bêbada, e sem calcinha. Não faz a mínima ideia de onde deixou ou por que tirou.

– Coronel, se foi só isso você teve sorte! – retrucou o marido brasiliense passando a mão na cabeça – A minha mulher também chegou caindo de bêbada e com uma faixa presa na bunda, escrita assim: “saudades eternas”. Sabe-se lá o que essas duas andaram aprontando ontem à noite! Sabe-se, lá, Coronel!



segunda-feira, 14 de março de 2011

Moacyr Scliar - Meu Querido Antônio Torres


Texto publicado no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 9/11/2002, por ocasião da Feira do Livro daquele ano. Por ironia do destino, hoje, o escritor Antonio Torres disputa a vaga de Scliar na Academia Brasileira de Letras. Torcemos por você, bróder!


Meu Querido Antônio Torres

Em Junco (Bahia), onde nasceu e se criou, Antônio Torres escrevia cartas para os analfabetos moradores da região. Uma ocupação que condicionou, e de forma mais que simbólica, seu destino: escrevendo, Torres se tornou um grande escritor, reconhecido no país e no exterior. Mas é, ao mesmo tempo, um escritor que escreve por aqueles que não podem ou não sabem fazê-lo. É um autor popular, no mais legítimo sentido da palavra. Não é de admirar que obras como Os Homens dos Pés Redondos (1973), Essa Terra (1976) – traduzido pelo menos em 15 idiomas – Carta ao Bispo (1979), Adeus, Velho (1981), Um Táxi para Viena d’Áustria (1991), Meu Querido Canibal (2000) tenham feito sucesso tanto de público quanto de crítica.

Deste sucesso, posso dar um testemunho pessoal. Sou amigo de Torres há muitos anos. Pertencemos à mesma geração literária, a geração que começou a publicar em fins dos anos 60 e começo dos 70, ou seja, no auge da ditadura. Naquela época escrever era uma forma de resistência. Resistência a que Torres engajou-se de maneira admirável. Junto com Ignácio de Loyola Brandão e João Antônio, ele percorreu o país, falando para jovens nos mais remotos lugares. E foi várias vezes para o Exterior.

Nessas viagens, não raro nos encontramos. Era, e é, ocasião para um bate-papo que se continua através do tempo, uma conversa que sempre retomamos. Para mim, com enorme prazer. É impossível não gostar de Torres. Ele é, pessoalmente, o mesmo autor amável e emotivo que encontramos nas páginas de seus livros. É um homem profundamente generoso. E profundamente brasileiro. As platéias estrangeiras sempre o escutam com atenção porque sabem que, através de sua voz, fala o Brasil mais autêntico, o Brasil que também está todo em sua obra. Que também prima pela originalidade. Quem chamaria um canibal de “meu querido”, senão Antônio Torres?

Agora ele está, como já fez muitas vezes, nos visitando*. É uma oportunidade de conhecê-lo, e de conhecer as suas obras. Vale a pena. Nas páginas de Antônio Torres o Brasil escreve suas cartas.     

*Por ocasião da Feira do Livro de Porto Alegre de 2002, quando o escritor gaúcho Moacyr Scliar foi o mediador de uma palestra do seu colega baiano, realizada no Clube do Comércio.