Pediram-me que traçasse um rápido perfil da arqueóloga Niède Guidon. Não precisei pensar muito para fazê-lo: é uma cidadã competente, obstinada e corajosa, cercada de problemas e incompreensões por todos os lados. Venho acompanhando, com o mais vivo interesse, a trajetória da Dra. Niède desde o início da década de 70. Nunca vi ninguém com maior capacidade de entregar-se, de corpo e alma, a uma causa que não é apenas dela; é da humanidade: a defesa incondicional do Parque Nacional da Serra da Capivara. Por ele, Niède morreria se necessário fosse. Aliás, em mais de uma oportunidade já foi ameaçada de morte. Com ardente paciência e com uma coragem que beira à insanidade, a pesquisadora não transige, não faz concessões nem conchavos. Exige que se cumpra a lei, que se respeitem a vida e os registros do que, um dia, foi vivo.
Os desafios e empecilhos, na vida da
pesquisadora, apareceram antes mesmo de
ela chegar à Serra da Capivara. No início da década de 60, ao ver
algumas fotos das pinturas rupestres da serra, decidiu, por sua conta e risco,
percorrer os 3.000 Km que separam São Paulo do Piauí encarapitada num bravo
fusquinha. O transbordamento de um rio, na Bahia, impediu-lhe a passagem. Não
desistiu do intento e já se preparava para fazer o mesmo percurso, quando
ocorreu o golpe de 64. A arqueóloga teve de deixar o país às pressas para não
ser presa. Na França, longe das garras dos generais de plantão, manteve aceso o
sonho de voltar à Capivara. Em 1973, regressou ao Brasil e, finalmente, pôde
defrontar-se com “a mais bela visão” de sua vida: os imensos paredões da
serra, rendilhados de pinturas rupestres, únicas no mundo. Armou sua tenda no
meio da caatinga e, ao longo desses 38 anos, só se afastou da Capivara para
buscar recursos em Brasília e no exterior. Com o que conseguiu pôde viabilizar
novas pesquisas e criar o Museu do Homem Americano.
É ocioso dizer que sempre conviveu com
incompreensões de toda ordem. Se os são-raimundenses encaravam-na com
desconfiança, acusando-a inclusive de “furtar peças para vender na França”,
seus colegas de ofício não aceitavam sua tese de que, há mais 50 mil anos,
humanos já povoavam aquela remota região do planeta. Impávida, lutou pela criação do Parque e vem lutando,
obstinadamente, pela conclusão do aeroporto internacional de São Raimundo Nonato,
“única forma de tornar o Parque Nacional da Serra da Capivara autossustentável”,
acredita.
No ano passado, na Academia de
Medicina do Piauí, com voz cansada e gestos lentos, Niède Guidon ministrou uma
magnífica aula de cidadania para uma plateia atenta e emocionada. Ao terminar,
deixou em cada um de nós um sentimento contraditório, misto de alegria e
tristeza. Alegria por sabermos que existem pessoas capazes de se doar a uma
causa tão nobre; tristeza por não sabermos o que será do Parque Nacional da
Serra da Capivara quando a “indesejada
das gentes” a convocar.