sábado, 15 de novembro de 2008

A CHEGADA DO CIRCO

Assim como o ímã e o gelo impressionaram a Macondo do colombiano Gabriel Garcia Marques, a Petrobrás, com suas máquinas maravilhosas, e o circo de variedades e touradas, de Zé Linguiça, maravilharam a Macondo do baiano Antonio Torres. A chegada da Petrobrás, no Junco, foi um momento inesquecível, de emoções indescritíveis. As aulas da professora Serafina foram suspensas, os presos comuns foram perdoados, os presos políticos foram anistiados e soltos (para que dessem testemunho do progresso), o padre Edson rezou missa solene e o cabo de turma da Geofísica, empreiteira da Petrobrás, recebeu a chave da cidade, em cerimonial de gala. Era a apoteose apoteótica de um povo embasbacado pelo cheiro da gasolina, muito bem traduzido no espetáculo pirotécnico proporcionado por Zezito Fogueteiro.

O Gran-Circo de Variedades e Touradas, de Zé Linguiça, chegou na poeira dos caminhões da Petrobrás, mexendo com os sonhos e ilusões daquela gente simples e carente, principalmente, de emoções. Foi nele que, pela primeira vez, o povo se deliciou com um show de verdade, de um artista cantado e tocado nos quatro cantos do mundo: Osvaldo Fahel, o seresteiro da Bahia, do Brasil, do mundo, cuja voz chegava até ali pelas ondas hertzianas da Rádio Sociedade de Feira de Santana. E fez coro com a música “Morena Bela”, vibrou e chorou com os acordes do “Adeus do Baiano”, música que expressava a tristeza do baiano ao deixar o seu estado natal:
Moço, quem deixa a Bahia
Não parte contente não
Leva uma pedra de gelo
No lugar do coração.”

Quem, naquela delirante plateia, não já havia pensado em largar tudo e se mandar para São Paulo no primeiro caminhão-pau-de-arara que aparecesse?
O circo, coberto de lona colorida e esburacada, foi apelidado de “Circo Tomara Que Não Chova”. Naquela terra, que não chovia nunca, nem precisava de cobertura. A alma do circo, o palhaço, era o próprio Zé Linguiça, que não tinha graça nenhuma. Mas, naquele curto momento, ele se sentia o maioral, o melhor de todos. Não existia um referencial. A rumbeira, parte integrante de qualquer espetáculo circense daqueles tempos, era uma bailarina gordinha e desajeitada, que insistia em imitar a sensualidade das odaliscas. Por ser a esposa do Zé Lingüiça, a plateia se comportava educadamente, sem assobios ou gritos desrespeitosos. A orquestra, desafinada, era composta pelos intrépidos toureiros, que se vestiam a caráter, feito toureiros de Espanha. Jovens e garbosos, atraiam as mulheres como açucareiro atrai formiga. Raro não se sentir inveja do elegante “Valete”, o mais famoso e o mais assediado. Não a inveja lúgubre dos corações mesquinhos que corrói a alma, mas a ardente vontade de se tomar parte nos loiros da glória, de se ser parceiros nos braços da fama. E das mulheres.
A marcha “Toureiro”, na voz de Nelson Gonçalves, tinha um apelo sentimental e era tocada repetidas vezes, chamando o povo para o espetáculo. Cantava a valentia do toureiro e do amor por sua amada d’além-mar:
“Toureiro,
Sou toureiro de Madri,
Sou toureiro, sou valente,
E nunca na arena
Um touro eu perdi.
Mas, se eu sou um bom toureador,
É porque Manolita Bonita
Me deu o seu amor...” 

Olé! Quantos ali, olhando o céu estrelado pelos buracos da lona, não sonhavam com o amor de Manolita de Espanha? Totonho de Praxedes, meu primo carnal, foi um deles. Dormiu extasiado nos braços macios e perfumados de Manolita Bonita e acordou horas depois nos braços cabeludos e suados de Zé da Perninha, farmacêutico, adepto do empirismo, e especialista em desmaios por queda. Entregou-se aos braços de Morfeu no alto do galinheiro do circo, no último degrau, e deu uma embocada brilhante, hilariante, e o povo não sabia se acudia ou se ria. Durante muito tempo esse episódio foi relatado nas rodadas etílicas e por isso ele jurou vingança.

Quem ri por último ri melhor, lembrou-se meu primo Totonho desse ditado popular. Todos ainda haveriam de se curvar ao seu talento. Treinou duro com os bezerros no curral da roça do seu pai. Adquiriu jeito e trejeitos do valente Valete, seu ídolo. E assim, como a vida imita a arte, ou vice-versa, tal qual o coronel Aureliano Buendia que, diante do pelotão de fuzilamento se recordou da tarde em que seu pai o levou para conhecer o gelo, Totonho de Praxedes, diante dos chifres assustadores do touro, recordou-se da noite em que seu pai o levou para conhecer o circo. Ao acordar, na farmácia de Zé da Perninha entre esparadrapos e éter, teve a lucidez de perceber que o líquido hemático que tingia de vermelho as mãos e a camisa do farmacêutico não era apenas o sangue que se esvaía de suas veias; por aquela fenda também escorria seu orgulho ferido na chifrada. Suspirou triste e resignado ante a constatação de que a vergonha daquela empreitada mal sucedida doía mais do que a imensa ferida aberta no seu peito. 

- Hoje tem espetáculo?
- Tem sim senhor!
- E o palhaço o que é?
- É ladrão de mulher!