sexta-feira, 15 de abril de 2011

Maurício Melo Júnior - Um italiano em Realengo



Éramos adolescentes e à noite saímos para farrear pelas ruas da cidadezinha do interior. Não trazíamos maldades no peito e, àquela época, era possível vadiar, violão às costas, pelas madrugadas de música e literatura. Tínhamos pretensões que se frustraram com o passar dos anos, sonhos amalgamados no barro do real e discutíamos sobre as culturas que nos chegavam pelos livros, os jornais, as televisões.

Certa feita um de nós trouxe à tiracolo um novo amigo. Alto e magro, não falava uma palavra em português. Era italiano, sobrinho de um dos padres da cidade. Nunca soubemos ao certo o motivo de sua visita. Especulávamos uma possível fuga da Máfia, uma desilusão amorosa, mas, pelo que afiançava o moço, queria somente conhecer o mundo e o tio pagou sua passagem para o Brasil. Era um dos nossos. Também queríamos o mundo que estava além da estrada que nos levava ao Recife, que nos trazia outras expressões da vida.

Com português e italiano canhestros, nos entendíamos. E banhamos as noites com canções napolitanas. E haja cerveja para alentar as quentes horas noturnas. Na volta de uma farra o italiano – acho que se chamava Marcelo ou tinha cara de Marcelo – resolveu nos mostrar como se divertiam os civilizados europeus. Desembalou na carreira e pulou com os dois pés sobre o capô de um carro. Corremos horrorizados e medrosos deixando o carro bem amassado. Na praça mais próxima, ofegantes, passamos a julgar o amigo. Ali na ingênua cidadezinha não havia espaço para o barbarismo.

Vivíamos em um outro clima, onde a violência estava para além das fronteiras, para além das ruas. O crime mais bárbaro que presenciamos, um assassinato à sangue frio em plena rua, ao bater do meio-dia, nos era tão distante quanto Cabrobó, a cidade onde o criminoso resolveu se homiziar. E hoje, não sem certo horror, assistimos a violência em nossa porta. E, como faria Aldir Blanc, não conseguimos fechar nossa janela. Tudo nos chega com cores de espetáculo, com timbre de glamour. Nós que cantávamos: alô, alô Realengo.

Agora basta ligar a televisão e Realengo nos dói e a demolição do Japão nos fere. Já não há isolamento possível. Escutamos os tiros disparados nas escolas. Sentimos o cheiro do sangue de cada um dos doze meninos mortos. E esquecemos de secundar Gilberto Gil: Alô, alô Realengo, aquele abraço, alô torcida do Flamengo, aquele abraço. Alô, alô seu Chacrinha, velho palhaço, alô, alô Terezinha, aquele abraço…

Chacrinha já não balança a pança, não buzina a moça, não comanda a massa. O mundo, que era amplo, estreitou. E os telejornais insistem no bárbaro. Uma estranha comunicação da barbárie toma lugar daquilo que os perplexos comunicólogos – sou jornalista, nunca serei comunicólogo – diante das graças do Velho Guerreiro chamaram de comunicação do grotesco. Nos tempos quando vadiávamos na madrugada, grotesco era mostrar belas dançarinas, oferecer bacalhau para a platéia, ri do calouro desafinado.

De que chamaremos agora o circo televisivo?

Fui ingênuo, mas jamais culpei a imprensa pelos males todos do mundo, entretanto, há a glamourização da violência. A insistência em se mostrar a degradação nos insensibiliza e já a morte de um anjo sertanejo não nos comove. Aprendi jornalismo acreditando que notícia é quando um homem morde um cachorro. Ou seja, nos interessava o inusitado. Hoje parece interessar o escárnio, a degradação.

loucura ganhou cores de fanatismo e as crenças servem de justificativa para tudo. Às vezes, diante dessas reflexões, acho que envelheço sem tempo para entender o mundo. A geração de meus filhos exportou o culto à violência. É isso amigo Belchior, nossos ídolos não são os mesmos e a aparência do assassino é a mesma de um moço bancário que chora com a dor do Cristo. E de repente faz eclodir todas as dores.

Quem um dia se horrorizou com um capô amassado definitivamente não consegue entender o poder dos fuzis, de suas balas cruzando o céu noturno do Rio de Janeiro que continua lindo, mesmo com projéteis varando o peito de universitários. Acreditamos na educação e estudávamos com as armas possíveis. O extremo tecnológico somente nos permitia trabalhar com um gravador de fita cassete, e isso já nos levava à ousadia de balançar um italiano cambembe e conversávamos com o amigo, uma espécie de Marco Polo a contar maravilhas de terras distantes.

Em suas palavras renasciam a tradição milenar de Roma com Augustos e Césares e Rômulos e Remos. Dos balcões de Veneza Romeu seduzia Julieta e até a prostituta Giuliete Masina era cândida e doce, mas na bagagem vinha a violência gratuita e vazia. Nós lhe ensinamos a paixão pela noite, pela canção. E descobrimos seu lado humanitário, afinal não tínhamos Bruna Surfistinha nem loucos disparando nos cinemas, nas escolas, nas favelas. O bandido que mais nos assustava era Galeguinho do Coque que se converteu, tornou-se crente e foi flagrado roubando o óbolo da igreja.

Como era também ingênuo meu antigo amigo italiano – se chamava Marcelo?

Um dia assistíamos a um filme que fora rodado na cidade onde ele morava. E o rapaz chorava com cada lembrança e gritou dentro do cinema quando na tela apareceu, por segundos, sua velha casa. Era enfim um homem que sentia saudades e carregava a capacidade de se emocionar, embora no mesmo matulão transportasse a revolta de uma juventude que, com quase tudo à mão, buscava emoção na revolta infundada.

Quem sentirá saudades de hoje? Quem irá chorar diante de sua casa registrada numa tela do futuro?

Alô, alô Realengo, esperanças e aquele abraço.


terça-feira, 12 de abril de 2011

Cineas Santos - Ecos do Fenavipi


De Leonardo

Quando ousamos pensar na possibilidade de realizar um festival de violão em Teresina, fomos acossados por duas perguntas que se manifestavam com incômoda frequência: Por que um festival de violão no Piauí se já existem grandes festivais em outros estados brasileiros? Por que realizar um festival de violão numa cidade sem qualquer tradição em matéria de música do gênero? A resposta estava engatilhada: porque os grandes festivais que se realizam em Brasília, Londrina, Belo Horizonte e outras regiões do país são excelentes, mas não são nossos. Quanto à tradição, basta inventá-la. Assim, numa atitude quase temerária, realizamos a primeira edição do Festival Nacional de Violão do Piauí em dezembro de 2004. É ocioso enumerar aqui as dificuldades que enfrentamos para dar o primeiro passo: quem já tentou sabe o que significa pioneirismo; quem nunca tentou jamais entenderia. O certo é que, com o inestimável aval do mestre Turíbio Santos, fizemos um festival de altíssimo nível. Já na terceira edição, o FENAVIPI foi considerado pela revista “Violão-Pro” o principal festival de violão do Norte e Nordeste. Ao longo desses anos, não nos afastamos da filosofia que nos inspirou desde o primeiro momento: realizar um festival que, além de promover belos concertos musicais, pudesse propiciar aos músicos piauienses, notadamente aos jovens, o necessário diálogo com violonistas do porte de Eduardo Fernandez, Fábio Zanon, Marco Pereira, Turíbio Santos, Ana Vidovic, Guinga, entre outros. A estratégia tem dado certo. Para confirmar essa verdade, basta ver o número de crianças e adolescentes estudando violão e teoria musical nas escolas de Teresina.

Para realizar a 7ª edição do festival, inscrevemos o FENAVIPI num dos editais da Petrobras que, pela segunda vez, nos honra com o seu inestimável apoio, clara demonstração de que estamos no rumo certo. Pelo número de estudantes inscritos, pela presença maciça do público nos concertos, pela repercussão alcançada na mídia piauiense, mesmo antes do término do festival, podemos afirmar que os resultados superaram as expectativas. Para nós, é gratificante ver os “filhos” (Josué Costa, Felipe Vilarinho, Emanuel Nunes, Damião Bezerra) e os “netos” (Caio Leon e Leonardo de Caprio) do FENAVIPI brilharem entre estrelas de primeira grandeza. Leonardo bem que poderia ser nossa mascote: há três anos, “tocava” violão num prosaico cabo de vassoura. Hoje, aos 11 anos, é capaz de ler uma partitura e executar uma peça de certa complexidade. As irmãs do garoto, que tem nome de astro de cinema, também tocam violão, inclusive a pequena Mona Lisa, com apenas sete anos de idade. O FENAVIPI demonstra que não há instrumento mais eficiente para elevar a autoestima de um povo do que a cultura.Basta acreditar e investir.




domingo, 10 de abril de 2011

Luís Pimentel - Histórias de encontros e desencontros

Compaixão

Deu um beijo molhado, alisou seus ralos cabelos, jurou amor eterno e subiu os degraus da porta do ônibus. Pela janela, atirou mais um beijo, encostando os lábios nos dedos e soprando em sua direção. Juntamente com o comentário, cheio de compaixão:

– Não chora, amoreco. Já disse que volto.
– Jura?
– Quem jura mente. E se cuida direitinho, viu?
– Vi.
– Toma sopinha, pega sol da manhã, não sai no sereno.
O ônibus partiu, e ainda bem. Pois o jovem namorado, na poltrona aos fundos, já começava a demonstrar impaciência.

Companhia

Conheceram-se num cabaré da Praça Mauá.

Kátia Cilene fora desonrada à força pelo patrão, expulsa de casa pelo padrasto. Aquela história. Baiano, por sua vez, não tinha história nenhuma. Perdia os dentes e a esperança em canteiros de obras, os poucos sorrisos reservados ao futebol, nas tardes de domingo.

A paixão foi imediata. Pensou que deveria retirá-la daquela vida sem rumo. A outra aceitou a generosa companhia. Até descobrir que Baiano – sequer a curiosidade de perguntar o nome dele – morava num quartinho minúsculo, em Brás de Pina.

Kátia se desculpou com o companheiro, deixa como está, e retornou à Praça Mauá. Morar tão longe do Centro, sabe como é.



Fogo morto

Por anos e anos e muitos anos, o velho José guardou dinheiro no colchão. Fez o rasgo com uma faca, e ali enfiava, em meio ao capim, todas as notas que lhe sobravam após as compras semanais que fazia.

E ninguém sabia. O dinheiro faltava, o dinheiro sumia, o segredo espremido entre o corpo e as notas quentinhas que ele amassava todas as noites.

Morto o velho, os filhos se prepararam para tocar fogo no colchão onde todos nasceram. Ao retirá-lo da cama, a fenda aberta cuspiu capim seco e notas e mais notas amareladas e sem nenhum valor. Juntaram e somaram tudo, talvez fosse suficiente para pagar o caixão. Nem isto. Ninguém queria revelar a usura, exibida apenas no comentário baixo e minúsculo da viúva:

– Tanta fome passada com os meus filhos. Enquanto a vida apodrecia junto contigo, infeliz.