quarta-feira, 7 de março de 2012

Maria Helena Bandeira - Espelho embriagado



           Meu rosto está lá.
           Mas eu fiquei esquecida na mesa. Não sou esta mulher, com a qual  o espelho tenta me enganar. 
           Estou em algum lugar onde  esqueci a bola para que você viesse procurar. E me encontrar perdida, o vestido lívido do desejo, a boca espessa, procurando o conhecer do medo.
           Lá na lembrança havia a pele do perigo que perdi nos retalhos do desespero.
             
           E os olhos. Os olhos de pedido que enlouquecem.
          Não me procure hoje com olhos de ontem. Não estarei mais lá. 
           Ficamos os dois na tarde do proibido e nenhum pode seguir caminho. Apenas corpos que se reproduzem através de dias. Apesar da seda que foi se abrindo em fendas, íris em que permanecem brilhos, cujo matiz esquecido já não toca o havido. 
           Não venha ao meu encontro neste espelho quebrado. Porque também estarei fingindo o dia que não é mais. Estarei outra e outros do não sei. Um homem que pensei entender mas foi tão cedo.  Talvez tenha sido de brincar. A vida pode não ser à sério. Escondidas de nós as coisas bravas, mostrando sinais inexistentes .
           Quando olho para mim no teu espelho é uma outra mulher que é. Não existimos mais. Nunca existimos. E a saudade na tarde da escondida bola, brincadeira, foi apenas uma falsa memória. 
           Sentado nesta mesa  de um bar qualquer, num dia sem e me esperando, não é mais real do que a tarde cuja memória permanece do que não é. 
           Está mais profundo no passado do que estou agora neste instante em que  a estranha do espelho acaba de chegar.
           Sei que houve tudo e de saber vivo. Mas não de te encontrar em bares, ou de espreitar o espelho mentiroso.
           De saber que em algum ponto ainda arde. Uma dobra talvez da antiga plenitude. A beleza que foi, tudo é presente.
           É sempre hoje onde se quer de todo. 
           Saio do banheiro e fecho a porta com cuidado. Quero escapar outra vez de mim. 
           Na mesa você espera com olhos de ontem .Mas eu te apunhalo com a faca de sempre. O estilhaço do espelho que me viu. 
           Embriagado.

terça-feira, 6 de março de 2012

Gata Borralheira já era


Quando Vinícius tinha quatro anos de idade, sua televisão foi para o conserto e ficamos apenas com uma, a da sala, e às vezes se criava um impasse, pois ele queria assistir aos seus Pokemon’s e eu queria ver o noticiário, principalmente no horário do meio-dia. Ele estudava à tarde e, enquanto aguardava o transporte escolar, ficava grudado na tevê. Um dia, tentando convencê-lo a me ceder meia hora de audiência de noticiário, dizendo que ele devia alternar desenho com informação, pois as mulheres gostavam de homens bem informados, ele contra-argumentou:

– Painho, quando você tinha a minha idade, você gostava mais de desenho ou de jornal?

Surpreso com a pergunta, respondi:

– No meu tempo de criança não existia nem desenho nem televisão.

São somente pouco mais de quatro décadas e nada disso existia. As notícias viajavam em lombo de jegue ou de boca em boca. Os acontecimentos pitorescos viravam cordéis e ganhavam o mundo na voz dos cantadores. O rádio começava a se popularizar com o advento do transistor e assustava a nossa vã compreensão de como um negócio tão pequeno era falador feito corno.

Do rádio, foi um passo para a popularização, também, da televisão. Inventaram o crediário e mais casas exibiam antenas de tevê. Surgiram as telenovelas, os programas de variedades e o aparelho de televisão passou a ser a maior fonte de entretenimento. Programas de auditório mantinham a família unida em frente ao cinescópio nas jovens tardes de domingo, acontecendo o inverso da psicocinese: o objeto dominando a mente, em vez do contrário.

Quando, no dia 12 de abril de 1961, Yuri Gagarin foi ao espaço e disse extasiado: “A Terra é azul!”, não imaginava que tal frase seria eternizada e que causaria uma revolução tecnológica ao desencadear a corrida espacial entre soviéticos e americanos, cada um querendo ser superior ao outro. Veio o projeto Apollo, o homem pisou na Lua, e o milagre da miniaturização de eletro-eletrônicos ganhou popularidade. Foi inventado o microchip e a parafernália maravilhosa do microprocessador. E os grandalhões computadores, da época, tornaram-se obsoletos e foram doados aos museus. Só para se ter idéia: um dos primeiros discos rígidos (o HD), tinha o diâmetro de quase dois metros, dois megabytes de capacidade de armazenamento e levava dois dias para ser formatado. É mole?

Se tudo caminha para o desenvolvimento do conforto humano e quase não conseguimos acompanhar a dinâmica tecnológica, o homem parou no tempo e no espaço quando olha para o seu próprio umbigo e vê que não consegue avançar um milímetro sequer na mentalidade retrógrada e medieval. Uma imensa maioria ainda vive a cultura das cavernas em que o homem era o responsável pela caça e a mulher, submissa e frágil, ficava responsável pela prole e pelo preparo da comida do guerreiro cansado.

Na sociedade moderna não há mais espaço para delimitações de tarefas dentro de casa, principalmente depois que a mulher foi à luta, venceu, e hoje disputa palmo a palmo com o homem um lugar no mercado produtivo, acabando com a submissão econômica e social imposta pelo companheiro, que, na maioria das vezes, a via como um mero objeto sexual ou como um “chofer de fogão”. Alguns ainda pensam que “casa e comida” são suficientes para manter a mulher feliz.

Um vizinho andava dizendo que mulher que trabalha tem tudo para chifrar o marido. Que mulher dele tinha que ficar em casa, cuidando dos afazeres domésticos e cozinhando para ele. Um dia ele chegou a casa fora do horário rotineiro e descobriu que a mulher também “cozinhava” para outros. Foi tão imbecil que jogou as panelas fora e passou a comer de marmita.

A incompreensão do homem moderno com a mulher moderna que topa lavar, passar, cozinhar e estar descansada, disposta e cheirando a perfume francês quando ele chegar a casa para o justo descanso do guerreiro, é que ela nunca sorri satisfeita para os amigos que o acompanham para beber, ouvir música, conversar, enquanto ela se divide entre as tarefas escolares dos filhos, preparo dos tira-gostos e ainda dá uma de garçonete, servindo a cerveja ou preparando a caipirinha.

Quando eu me casei, acordei na manhã seguinte aprendendo a cozinhar. Sentia que um dia iria morar sozinho. Minha litisconsorte ativa cozinhava divinamente bem e posso afirmar que ela me pegou pelo estômago. Mas, segundo a tradição budista, o homem não pode ser prisioneiro do seu corpo, senão nunca atinge o nirvana. Quatro anos depois me vi cozinhando para mim mesmo. Prometi nunca mais me casar com mulher que soubesse cozinhar. Invariavelmente cheira a cebola.

Amei Edna pela primeira vez quando ela era hóspede na minha casa, em Salvador, e foi fritar um ovo e se cortou na casca. Para variar, não sabia que se colocava sal em ovo. E que precisava de óleo ou de manteiga para fritar. Tímida e envergonhada, confessou: “É que nunca fritei ovo na minha vida!” Até então éramos só amigos e o meu coração, em júbilo, gritou: “É esta! É esta!” Tomado pela importância de um ser superior, ensinei-a, passo-a-passo, todos os rituais sagrados da culinária, começando pela posição correta para se acender o fósforo à complicada operação de se abrir a válvula do gás. E ela, enternecida, me agradeceu promovendo uma noite de sexo que acordou toda a vizinhança.

Nesse dia tive a certeza de que caldo de sururu era afrodisíaco.



segunda-feira, 5 de março de 2012

Maria Olípia de Melo - Lilith


Assim como Eva, Lilith é uma figura mitológica. Encontramos sinais de sua existência nas histórias contadas por vários povos: sumérios, hebreus, gregos, mesopotâmios, judeus. Na Bíblia se faz uma rápida menção a ela e os mais ousados costumam dizer que ela foi suprimida da Bíblia porque não interessava a ninguém divulgar a existência de uma mulher rebelde e independente, de forma nenhuma submissa ao homem.

Deus criou Adão, o primeiro Homem, do barro. Sabendo o quanto era solitário viver sem uma companhia que o completasse, teve pena de Adão e criou uma companheira para ele – a mulher. E chamou a primeira mulher de Lilith. Criou-a da mesma forma que criou Adão: do barro. Mas lhes deu liberdade para viver da melhor forma que conseguissem. Eles simplesmente não conseguiram. Mal se viram frente a frente, começaram a brincar e a brigar. É que a brincadeira preferida de Adão era, através de sua força física que era maior, jogar Lilith no chão e deitar-se sobre ela. Lilith logo estrilou e gritou: assim não vale. Fui criada da mesma forma que você e não estou gostando nada dessa brincadeira. Somos iguais, dizia, mas Adão retrucava: de modo nenhum, você é inferior, essa é sua aptidão, não a minha. Eu fui criado para dominar. Lilith até que tentou, mas não conseguiu convencer Adão e então achou melhor se mandar. Adão foi choroso procurar o seu Criador dizendo-lhe que a mulher que lhe dera como companheira fugira. Deus mandou três de seus anjos buscá-la e trazê-la de volta imediatamente. Ela não voltou nem recebendo terríveis ameaças. Alguns dizem que ela se casou com Samael, um dos anjos caídos e talvez seja por isso que é vista como um demônio.

Deus não teve outro jeito para fazer Adão parar de choramingar. Como o barro próprio para fazer bonecos tinha acabado, tirou uma costela do Adão e dela fez uma mulher, aparentemente inferior e submissa a Adão, que ficou todo feliz e empolgado.

Lilith, embora não quisesse nada com Adão, ficou irada. Então o seu marido, conforme a vontade de Deus, agora se conformava com um arremedo de mulher? Encontrou em Samael um bom parceiro e os dois juntos ficaram por ali, beirando o Paraíso e tentando Adão e Eva. Não foi difícil fazê-los cair em tentação. Foi aí que se inventou a história da serpente e da maçã porque não ficaria bom para a humanidade crescer e se multiplicar sabendo que adultério era uma coisa corriqueira desde os primórdios.

Lilith era um personagem pouco divulgado, desconhecido até. Tornou-se mais presente na mídia depois que as mulheres resolveram lutar por direitos iguais – desde então passou a ser considerada a verdadeira precursora do feminismo.

Sempre gostei dessa marota subversiva. É por isso que, nesse mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, a minha homenagem vai todinha para ela.

domingo, 4 de março de 2012

Gorete Amorim - Entre o refrão e a realidade

Era véspera do dia 08 de março e não me lembro o ano. Dava aula em Massagueira, distrito de Marechal Deodoro, município vizinho a Maceió, e havia um micro-ônibus da Prefeitura que fazia o transporte dos professores de Maceió a Massagueira, e levava, no máximo, meia hora de viagem. Apesar de curto, havia tempo suficiente para surgirem discussões diversas, piadas, fofocas e outras coisitas más. Nessa viagem o assunto foi “mulher”. 
 Um professor comentou: 

- Pessoal, amanhã é dia da mulher, os homens precisam estar atentos, pois em Maceió cada um tem direito a três mulheres. Lembram da música, “Ô Maceió, é três mulé prum homem só...” Então, as mulheres não podem querer exclusividade, senão, como ficam as outras? Não há dúvida, cada homem tem direito a três mulheres, não acham? 

As reações eram as mais diversas, alguns riam, outros contestavam e alguns silenciavam ou ignoravam. Vendo-me calada no meu canto, o professor me perguntou de forma irônica: 

- Não acha que estou com razão, professora? Se temos direito a três mulheres por que ficarmos apenas com uma? Não temos culpa se em Maceió tem, no mínimo, três mulheres pra um homem só. 

Quem pergunta o que quer, ouve o que não quer, já dizia a minha mãe. O nó atravessado na garganta se desfez e respondi procurando não me exaltar:

- Já que me chamou na conversa, sinceramente, acho que dificilmente um homem tem energia suficiente para dar conta, a contento, de três mulheres. Mas não é essa a principal questão. A questão é estatística, ou seja, é possível que em Maceió possa haver um percentual de três pessoas do sexo feminino correspondente a cada pessoa do sexo masculino. Você já parou pra pensar se essa estatística não é por idade ou por padrão físico? Ou você pensa, ilusoriamente, que são três mulheres para cada homem do tipo Carla Perez? Já parou para pensar que sua mãe, sua avó, suas tias, suas sobrinhas, primas, irmãs, etc., fazem parte dessa estatística? As meninas que nasceram hoje também podem estar supostamente contadas, assim como as adolescentes que dormem nas calçadas de Maceió e outras cidades, as idosas nos asilos, e assim vai. Como está a atenção dada a sua mãe e irmãs? Tem sido atencioso, carinhoso e gentil com tua mulher? O que espera conquistar da mulher que compartilha a vida? 

O professor baixou a crista no meio da vaia dos colegas, envergonhado ou talvez arrependido de ter me envolvido na conversa. Falou sem jeito: 

- É... Nunca havia pensado dessa forma, mas, como não posso mudar o mundo, não dou moleza, tem muita mulher precisando de carinho e eu estou aqui pra dar. 

- Então, na pior das hipóteses, você fica sabendo o que penso a respeito. Infelizmente há gente pra tudo, inclusive para não saber se dar valor.

O silêncio do motor do micro-ônibus pôs um ponto final na conversa. Aproveitei o episódio para debater em sala de aula a visão equivocada do refrão da música de Djavan.