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terça-feira, 1 de setembro de 2009

Quase Um Deliquente

José Pedreira da Cruz



Foi num belo domingo de verão, na estação de trem “São Francisco” em Alagoinhas-Bahia, que um grupo de amigos e eu embarcamos num trem a vapor carinhosamente apelidado de Maria-Fumaça. Destino: Praia de Periperi, no subúrbio de Salvador.

Agarrado a um violão, eu fazia muito barulho, e me sentia o tal e qual. Não parava de tocar, cantar e de infernizar a vida dos passageiros do trem.

A viagem de ida foi tudo alegria, bagunça, sorrisos, música, enfim. Seria o meu primeiro contato com o mar. Tudo me parecia novo e divertido. Não via a hora de pisar na areia da praia, de catar conchinhas, de admirar o horizonte oceânico pela primeira vez e de me salgar nas águas do Atlântico.

A minha expectativa dentro do trem era intensa e, pela janela, os meus olhos varriam a paisagem à procura do tal mar, o qual eu imaginava estar escondido entre as verdejantes montanhas daqueles campos baianos.

A viagem parecia nunca acabar e a minha ansiedade aumentava a cada instante. Jamais havia me afastado da saia da minha mãe e me preocupava em ser tragado pelas ondas do mar, que na minha imaginação tinham vida e engoliam gente.

Chegamos a Periperi embaixo de chuva. Tempo fechado. Como praia e chuva não se combinam, não houve banho. Ficamos abrigados em casa de amigos, bebendo cerveja e cantarolando canções da época. Tudo transcorria num clima de festiva felicidade digna de nossas adolescências.

Em dado momento uma das cordas do violão se quebrou, interrompendo a cantoria.

– Acabou-se a festa! – falou alguém.

– Não! Não acabou. Vai continuar!

Encostei o violão numa cadeira e saí à procura de cordas. Entrei numa quitanda, se é que se podia chamar assim aquele barraco de tábuas velhas com algumas prateleiras apinhadas de garrafas de cachaça. O odor da aguardente se irradiava. Mal perguntei se havia cordas de violão ao balconista, alguém me segurou pelo braço e anunciou:

– Polícia! Mãos na cabeça e não se mexa.

Virei bruscamente a cabeça e dei de cara com um monte de policiais me apontando armas de fogo de todos os tipos e calibres. Exigiram meus documentos. Estava sem. Havia deixado juntos ao violão.

Depois de longo interrogatório, um dos policiais aproxima-se do meu cangote e, apontado sua arma para meus pés, sussurrou:

– Calma seu vagabundo! Não tente correr senão eu dou um tiro no seu pé, tá legal?

Outro, olhando dentro dos meus olhos, deduziu:

– Ele não é aquele sujeito que roubou a padaria do espanhol?

– É… Ele parece mesmo! – concordou seu parceiro.

– Diga pra mim, seu cafajeste: você não é fulano? – gritou, me chamando pelo nome do suposto ladrão da tal padaria do espanhol, e continuou me massacrando:

– Fala, cara, fala: como é o seu nome? Cadê seus documentos? E eu, no meio da roda daquele batalhão armado até os dentes, me borrava de medo. Respondi, gaguejando:

– Nam-nam, não, não, seu polícia! Eu não sou esse tal fulano, não! Eu me chamo Zé... - falei o meu nome e sobrenome, e acrescentei: nasci no Junco. Sou estudante. Moro em Alagoinhas. Vim pra cá de maria-fumaça; trabalho na funerária do seu Nenzinho. – e ainda apelei – o moço ai, do balcão, viu a hora que passei por aqui, bem cedo, tocando violão e cantando com um monte de garotas, não foi? Não foi? Pergunte a ele, pergunte, pergunte.

Recebi um tapa no pé-do-ouvido, em meio aos berros.

– Calaaado, seu filho-da-puta!

Rodopiei, quase caí, e nem pude sequer explicar quem eu era e onde estavam meus documentos. Mas de nada adiantava a minha palavra. Ela nada valia frente à ditadura. Não haveria acordo e eu provavelmente dormiria no xilindró. Já havia tomado um murro no pé-do-ouvido e a coisa estava feia.

E a minha mãe? Eu quero é a minha mãe - era somente o que eu pensava.

Ah! velhos tempos ditatoriais, onde qualquer farda tinha mais poder que a palavra!

Tentando me tirar daquela encrenca, o quitandeiro interveio a meu favor:

– Não, “seu” tenente! Acho que ele não é o tal ladrão que o senhor procura. – e concluiu – Eu vi a hora que ele passou por aqui, bem cedo, tocando violão e cantando com um monte de garotas. O que ele diz é verdade!

– É mesmo? Qual música você estava cantando? – um dos tiras me dirigiu a palavra, exigindo maior explicação. Creio que foi por mera gozação, mas, mesmo assim, cantarolei um trechinho:

– “… só quero que você me aqueça nesse inverno e que tudo mais vá pro inferno, ou,ou,ou.”

– Caalaado! - Gritou o chefe do grupo, o tal tenente, pondo ordem no recinto.

Por pouco, muito pouco, eu não me transformei em mais um turista de camburão. E isto graças a alguns colegas que percebendo a minha demora foram me salvar levando meus documentos e o violão.

Sentindo-me aliviado, parei de tremer. Um dos tiras ainda foi gentil ao me dizer:

– Cai fora seu fedelho!

Os camburões partiram festivamente cantando: ui-ui-ui-ui-ui-ui-ui.

Finalzinho da tarde. A noite descia uma escuridão pesada. Com uma tristeza danada, embarquei no Maria-Fumaça sem motivos para cantorias; sem me molhar no mar, sem paisagens a vislumbrar no negrume da noite e tendo tão-somente o barulho intermitente do trem a me distrair.




terça-feira, 16 de junho de 2009

O mendigo e eu - Eu e o mendigo


José Pedreira da Cruz







É muito difícil alguém ter a coragem de narrar embaraços de si próprio, principalmente quando são de situações quase que corriqueiras na vida de muitos que ainda são adeptos da bebedeira tal como fui, mas é necessário, pois, quem sabe, sirva como exemplo.

Alguns dizem que o alcoolismo é um vício hereditário, outros, que é uma doença incurável. Nada disso, digo eu: ele é o fim da picada.

Há uma infinidade de definições para o alcoólatra, tais como: safado, ordinário, cachaceiro, irresponsável, imprudente, mas, a melhor de todas é o famigerado “sem-vergonha”.

1978. Uma sexta-feira, véspera de aniversário de minha filha que completaria um aninho de vida. Eu estava feliz. Algumas crianças já haviam sido convidadas para animar o evento com suas divertidas alegrias, para comer do bolo e se empanturrar de guloseimas e assim cantarem o “parabéns pra você”.

Naquele dia eu havia recebido o salário do mês que, como sempre, guardei-o no bolso do paletó verde. Parece esquisito, mas o paletó era mesmo verde: verde-cana, que se diga, presente de um amigo.

O dia acabou, fui dormir. Mal o sábado clareou e já estava eu lá na fábrica fazendo hora extra e cuidando dos afazeres. De vez em quando me lembrava da festinha da filha que seria à noite e me alegrava com um sorriso meigo a se irradiar no coração. É maravilhoso lembrar das pessoas amadas quando se está ausente.

Ao meio-dia voltei para casa cumprindo a irresistível via-sacra dos finais de semana: de boteco em boteco. Parecia estar pagando uma promessa inacabável ao satisfazer-me enchendo a cara, e hoje me clareio que havia um prazer mórbido ao me autodestruir.

Lá para as tantas da tarde, ao cumprir meu penúltimo compromisso com o copo, me deparei com um indivíduo, um mendigo que catava restos de pipoca espalhados na calçada e prazerosamente devorava-as como se fosse o mais requintado dos alimentos. Condoí-me do miserável e o convidei a se aproximar. Ofereci-lhe qualquer coisa a comer, mas ele exigiu vodka. Achei esquisito um mendigo querer uma bebida tão nobre, mas dei, e ele ingeriu goela abaixo num movimento brusco. Ficamos a prosear. Ele tinha os olhos azuis e um olhar triste. A pele era suja e escamada pelos maus-tratos; roupa esfarrapada e fétida; cabelos sebosos e encaracolados e falava o português com um sotaque quase que incompreensível. Disse-me ser europeu e que fugira da Rússia por motivos vários. A princípio nada queria falar. Dei-lhe outra dose da vodka para desenrolar a língua e se comunicar com mais perceptividade e foi então que ele passou a falar dos czares, de Yuri Gagarin, de Moscou, de San Pitsburgo, da Praça Vermelha, de Stalin, de Lênin, do poderoso Leonid Brezhnev (naquele tempo não se podia falar de comunistas por aqui) e de tantos outros nomes que não mais me lembro. Disse-me, com um sorriso meio tristonho e transitório que outrora havia sido um técnico da aviação e que aqui, no Brasil, era ele um técnico do cata-cata. Rimos juntos e ficamos assim... uma espécie de amigos.

E no lugar da vodka, tome-lhe pinga. O botequeiro mostrava-se insatisfeito e inquieto com a presença do tal freguês. Paguei a conta e o convidei a almoçar comigo, em minha casa. E saímos nós, ombro-a-ombro, cambaleantes e desaprumados pela rua.

A patroa nos recebeu de cara feia e protestou com aspereza por aquele indivíduo estar na sua casa, sentado à sua mesa, porém eu só queria ajudar àquele mísero que tinha uns farrapos no corpo como único cabedal. Para minimizar sua situação eu o autorizei a se banhar com direito a chuveiro quente, toalha, cueca, calça lavada e passada, meia, sapato (usado) xampu, espelho, sabonete, creme de barbear, barbeador, desodorante, chinelo, loção pós-barba, tesoura e pente.

O sujeito demorou meio século para se banhar cantarolando em russo. Haja paciência. Assustei-me com sua aparição quando saiu do banheiro. Nem parecia o mesmo que a pouco entrara no banheiro. Estava ele limpidamente vestido, barbeado e penteado.

Fiquei contente com a minha boa ação: a famosa ação de graças da qual não vejo nenhuma graça. Sentou-se e comeu fartamente do meu frango.

- Agora o senhor pode ir embora – disse a patroa.

- Espere um pouco – eu falei. Fui ao quarto e voltei com o dito paletó verde e o mandei vestir. O homem ficou radiante com o presente, agradeceu por tudo e foi embora a passos apressados.

Sentei-me no batente da porta e fiquei a pensar o quanto que eu fui útil àquele miserável. Achava que uma boa ação é paga com outra.

Passados uns vinte minutos eu falei para a patroa:

- Poderia me trazer um cigarro, o meu acabou?

Com uma voz indócil ela respondeu:

- Não estava no bar, por que não comprou?

- Por que gastei tudo com a bebedeira! – bradei insistente: - Então me traga um dinheiro. Irei comprá-lo!

- Onde ele está? – falou com muita prudência.

- No paletó verde, oras! – respondi esbravejando

- Mas... o paletó verde você não deu ao mendigo?

- Meu Deus! – gritei desesperado.

Saí correndo pelas ruas, enlouquecido, à procura do distinto mendigo. E a todo vizinho que encontrava, eu perguntava:

- Você viu passar por aqui um mendigo vestido num paletó verde?

- Mendigo de paletó verde? Nããão!

Outros zombavam:

- Você é louco? Mendigo só se veste com trapos! Vi nenhum não.

E agora? Como pagarei o aluguel da casa, a luz, a água e a comida do mês? Só me restava xingar o russo, e isso eu fazia a todo instante:

- Tomara que aquele desgraçado morra!

Anoiteceu. Não houve festa. “Só no ano que vem”, dizia aos convidados que iam chegando. E por um bom tempo fui chacoteado como “o homem do paletó verde”.

E você, leitor, quer passar por um vexame desse? Então beba!”