sexta-feira, 5 de junho de 2009

Antonio Torres - Atrás da cerca

(Um conto do tempo dos militares, sobre uma marcha dura, vazia e inútil pelo sertão, em busca de coisa alguma).



Não adianta dizer que não existe guerra alguma por aqui. Ninguém acredita. Pelo menos estes homens que me cercam, a pleno sol. Eles vieram de longe à procura dessa guerra que dizem existir nas nossas barbas — se não a vemos é porque estamos cegos ou sonolentos demais para enxergar o que quer que seja. Insisto no meu ponto, juro pela alma da minha mãe: tudo não passa de um engano. Confusão de notícias atrapalhadas que chegaram aos ouvidos da capital? Eles vieram de lá, não vieram?
Digo que estou de férias, estou de passagem. E não posso seguir os rastos de uma guerra de que não sei. Não posso contar o que não ouvi, não posso falar do que não vi. Portanto, espero poder continuar comendo as minhas goiabinhas sossegado, para matar o tempo e a saudade deste lugar onde nasci um dia. Quem a inventou, que a desinvente.
Belo e inútil discurso. Quantas palavras em vão.
Eles não podem admitir o meu ócio, aquilo que a lei nos permite uma vez por ano, a velha compensação. Precisam de mim. Eu conheço o caminho da cerca e a guerra está lá. Daqui a pouco acabarão por me convencer de que a cerca sou eu, de que a guerra sou eu, de que eu sou o inimigo que estão procurando.
Não vou negar: a cerca existe. Fica na fronteira, delimitando os nossos domínios, umas magras léguas de terra nestas solidões sem fim, o cerrado batido sem o consolo das águas, onde o pio da cigarra dói mais do que o espinho do serra-goela. Um mundo que não vale nada para estes homens. E no entanto eles querem tocar fogo em tudo, sem que ninguém saiba por quê.
Estes homens têm um chefe, a quem devem obediência. Importa se gostam disso ou não? É o que tento adivinhar. Eles se calam no consentimento, a voz do comandante é a de todos. Impossível saber o que pensam, o que sentem. São comandados. O chefe é quem está com a palavra, ponto final. Não vou descrevê-lo: ainda não o conheço o bastante. Adianto, porém, não parecer o tipo que, ao sair de casa para uma viagem tão longa e tão árdua (da qual nem sequer sabe se vai voltar), tenha dado um beijo comovido na mulher e nos filhos. Se o sentisse capaz disso, lhe diria com um sorriso amigo, de alma lavada, que esquecesse essa guerra e viesse dar uma volta comigo, para ver como esse lugar dorme em paz, só despertando de vez em quando de sua velha preguiça para fazer o sinal da cruz e rezar o “Pai Nosso”.
Alheio ao que penso, o chefe me apresenta a improvável guerra como um mapa real. Ele está seguro que fomos nós (o povo daqui) que a provocamos, nós atiçamos a lenha contra o povo de lá — um vago lá além da cerca. Fantástico. Na minha cara, na luz do dia, no meio da rua, com tanta certeza? Pelo amor de Deus, que guerra é essa?
O chefe:
— Você já trabalhou no poço de petróleo, não é verdade?
Eu:
— Sim, senhor. É verdade. Mas já faz muito tempo.
O chefe:
— Pouco importa quando você trabalhou lá. O poço continua no mesmo lugar.
Eu:
— Isso também é verdade.
O chefe:
— Como se diz, muitos são os chamados, poucos os escolhidos.
Eu:
— Não estou entendendo. O senhor me desculpe.
O chefe:
— O poço de petróleo fica depois da cerca. Poucos sabem disso. Você sabe. Por isso foi o escolhido para ser o nosso guia, neste sertão desgraçado, com léguas e léguas sem uma viv’alma para dar uma informação.
Eu:
— Como já disse ao senhor, não trabalho mais no poço de petróleo. Agora trabalho num banco da capital. Estudo à noite. Quer ver os meus documentos?
O chefe:
— Isso não vem ao caso. O que importa é que você conhece o caminho. Está em condições de nos ajudar. Qual é a sua categoria?
Eu:
— Terceira categoria. Não servi nem no Tiro de Guerra. Fui dispensado do serviço militar, por ter os pés chatos.
O chefe:
— Pois agora você está convocado, aqui e agora, tenha você os pés chatos, redondos, compridos ou quadrados. Soldado, sentido! Marche-marche!
Empertiguei-me. E simulei uma marcha, quase a morrer de vergonha daquela patacoada, que certamente estava deixando toda a tropa a abafar um riso.
— Des-can-sar! – bradou o chefe. E sentenciou: - Não há problema algum com os seus pés. Eles andam. E isso é tudo o que me interessa.
Eu:
— Quer dizer que tenho mesmo de ir...
O chefe:
— Isso mesmo. Seguiremos esta noite. Leve comida, que a nossa está pouca. E um cantil com água.
Eu:
— Para quantos dias?
O chefe:
— Creio que poucos dias. Eles não resistirão por muito tempo.
Eu:
— Chefe, posso saber quem são eles?
O chefe (um tanto irritado):
— O povo daqui e o povo de lá. Quantas vezes tenho que lhe dizer isso?
Eu:
— Mas chefe, o que é mesmo que está acontecendo?
Diante deste homem que se cala no momento que lhe parece o mais exato, aprendo que ainda não vivi muito. Aprendo, por exemplo, que o medo se situa na fronteira do imprevisível, aquilo que faz de nossas vidas simples abstrações nestas paisagens ensolaradas, em terras ignotas, desérticas, sertão brabo. “Este capitão, ou major, ou coronel, ou general, ou lá que patente tenha, só pode ter é ficado doido varrido”, penso, já me sentindo um condenado pelos pensamentos. Tanto que quando o chefe chamou um de seus homens para seguir os meus passos até a hora da partida, me vi oferecendo a minha vida a um pelotão de fuzilamento.
Tudo se passa em campo aberto, à sombra de uma árvore. No entanto, estranho a ausência de testemunhas. Como se todo o povo deste lugar tivesse desertado. Os meus parentes não vão partilhar do meu destino: estes homens não vieram aqui para ouvir pedidos de clemência, lenga-lenga, choro, reclamações.
O que me acompanha, simplesmente me acompanha. Observa minhas providências. Somos mudos um para o outro. Basta a sua presença para que eu minta para a minha avó. Para ela não falei de guerra. Falei numa caçada. Iríamos partir esta noite, “eu e este amigo aqui”. Ela me olhou de um jeito estranho e disse que eu estava muito esquisito, muito desinquieto. Digo inquieto e ela responde desinquieto, “você e seu amigo”. O melhor lugar desta casa sempre foi a mesa da cozinha, onde nos encontramos, mas neste momento está muito longe de significar alguma coisa. Minha avó nos oferece café com leite e cuscuz de milho e pergunta ao “meu amigo” se ele gosta de cuscuz de milho. Ele diz que sim com um balançar de cabeça. Ela diz então que vai fazer outro para a nossa viagem. Peço-lhe que faça dois, ainda temos bastante tempo. Uma coisa minha avó não entende e confessa em tom de recriminação: como alguém que dispõe de comida precisa sair pelo mato matando passarinho. Tento tranqüilizá-la: seria mais um divertimento do que uma caçada a sério. Talvez por isso ela tenha preparado com tanta alegria os dois frangos e a farofa que eu lhe pedi, embora quisesse antes saber para que tanta comida, se a minha intenção era voltar logo. Metade desta comida é para um homem que conheci no mato, durante o tempo em que trabalhei no poço. Minha avó me pergunta quem é esse homem e eu respondo que é alguém que ela não conhece.
— Apenas um sujeito que vive no mato há muitos anos. A senhora não deve se lembrar dele.
— E por que você está preocupado com ele?
— Porque é um bom sujeito.
Mas não era isto o que verdadeiramente a incomodava. Era outra coisa.
— Vocês vêm e vão, passam por aqui como um relâmpago. Às vezes eu penso que nenhum de vocês tem a menor consideração por esta pobre velha.
Quantos netos, vovó? Todos na guerra, em qualquer guerra real ou inventada, como esta para onde estou indo. É um mundo doido, não é, vovó? Talvez ela jamais o compreenda — então é melhor não lhe dizer nada. Apenas retribuo-lhe o trabalho com uma nota graúda, que ponho dobrada em sua mão e ela me diz “Deus que te ajude, meu filho, Deus que te dê muitas dessas”, enquanto com a outra mão me entrega o saco quentinho, cheio de comida. E penso: talvez eu nunca mais precise que Deus me abençõe com um salário mensal porque, para precisar disso, é preciso que ele me abençõe duas vezes e me faça voltar são e salvo desta viagem.
E assim me fui. Pensando que vovó podia ser o último ente querido a me ver com vida. Por isso guardava bem as suas palavras, como se antes eu nunca tivesse prestado atenção em conversa alguma. Havia algo de novo em tudo isso: eu gostava muito dela e ainda não sabia. Quando a notícia chegasse, contando a verdade, seu testemunho seria irrefutável.
— Ele sabia que estava indo para a morte, mas ainda assim se lembrou de fazer um bem. Levou comida, um par de calças e uma camisa para um homem que mal conhecia e que precisava disso.
A bênção, vovó?
E aqui nos vamos: neste silêncio que espanta mais do que a própria morte.
O chefe:
— Não fumem e não falem para não chamar a atenção do inimigo.
Aqui, nesta caatinga, nestes ermos?
Ele só se esqueceu de dizer que não era para rir. Falava a sério. E eu me esqueci que nem tudo precisa ser dito com todas as palavras.
O chefe:
— Quem foi o engraçadinho?
E eu:
— Eu.
O chefe:
— Onde está a graça?
— Me lembrei de uma piada. Desculpe.
O chefe:
— Qual é a piada?
Eu:
— Não posso contar.
O chefe:
— Por quê?
Eu:
— Para não chamar a atenção do inimigo.
Mesmo com este escuro, posso adivinhar o riso que se abre e se fecha no rosto de cada homem. Eles o sufocam, abafando as suas bocas com as suas próprias mãos. Com a ajuda de uma minúscula lanterna, o chefe anota qualquer coisa num caderninho que tira do bolso. Pressinto que é um ponto negativo sobre a minha conduta.
Dois a dois, como bois de canga, os homens marcham, trôpegos e desanimados, numa estrada batida por cascos de cavalos e carros de bois, à luz das estrelas e dos pirilampos, sons de grilos e pássaros noturnos, cheiro de mato, sujeitos às espetadas de galhos, topadas em pedras, tropeços em paus e buracos, medo de cobra. Com toda certeza vamos chegar lá cansados e inúteis. Derrotados.
Estes homens parecem saber disso há muito tempo: matar ou morrer é uma questão de rotina. Já não há surpresa nesta caminhada.
Mas ainda me resta muita curiosidade, eis a minha espécie de maldição. Por isso tento cochichar alguma coisa para o homem que me acompanha, “meu amigo” mudo. Perguntas banais. Coisas da vida.
— Você tem mulher?
— Gosta dela?
— Você tem filhos?
— Eles se dão bem com você? Você se dá bem com eles?
— Você tem amigos?
— Seus pais ainda estão vivos?
— Gosta deles?
— O que fazem?
— O que você fazia antes?
— Você pensa em sair disso um dia?
— Tem planos para o futuro?
— Gosta do que está fazendo agora?
— É bem pago por isso?
— Você é feliz?
Nunca mais poderia esquecer o que ouvi do homem que parecia mudo e não era mudo. Digamos que neste instante ele teve um momento de extrema boa-vontade para comigo, e talvez até desconhecendo a extensão do favor que estava me fazendo, revelou o timbre da sua voz. Falou baixinho, é certo, mas falou:
— Vou lhe dar um conselho. Você é muito novo ainda. Se quiser viver muito, não faça perguntas.
E assim continuamos indo: calados.
Quantas léguas já teríamos palmilhado? Difícil saber. Se encontrarmos alguém nesta estrada e perguntarmos quantas ainda faltam, a resposta será: — É logo ali.
Se você passar por mim, mesmo que eu não lhe veja, faça-me um obséquio: avise a todos os meus que não chorem se eu não voltar. O choro não me devolverá, são e salvo.
Nesta estrada não sou vaqueiro. Sou gado. Aqui rumino. Com a paciência dos bois.
À minha frente um homem pensa em voz alta. Reclama:
— Perdi. Perdi.
E o outro, o que vai a seu lado, ombro a ombro:
— O que foi que você perdeu?
— Perdi o jogo de hoje. Meu time ia jogar.
— Pior fui eu, que perdi uma namorada. Uma semana inteira neste fim de mundo. Sem mulher, sem nada.
— Você só pensa nisso.
— Acontece que não sou capado.
O homem à minha frente, o primeiro a se queixar, vira-se para trás e me entrega o seu companheiro:
— Cuidado com este, que está a perigo. Ele olha para uma árvore e vê as coxas de uma mulher. Vê uma pedra e enxerga um seio.
Estávamos quase colados um no outro, cara a cara. Foi por isso que o seu corpo encardido e pesado desabou sobre mim. Com a cabeça virada para trás, ele não viu quando o outro tirou a lâmina do bolso e fez um risco profundo em sua barriga. Lá na frente, o chefe desperta. O silvo do seu apito rasga a noite em duas. Depressa, me desprego do fardo do homem praticamente rasgado em dois e o empurro para o chão. O apito do chefe era a ordem para que parássemos. Ele vem aos berros:
— Que esculhambação é essa? Que esculhambação é essa? — Aponta a sua lanterninha acesa na cara de cada homem, até parar junto de nós, quer dizer, no pequeno círculo que formamos em torno do corpo do homem caído, de onde jorrava uma cachoeira de sangue.
— Está aqui, chefe, a prova do crime — disse o assassino. — Ele se matou com esta arma.
— Como foi isso? — disse o chefe, já com o seu caderninho na mão.
— Ele cochichou para mim: Não me conformo. Perder o jogo do meu time esta noite, não me conformo. Aí tirou a navalha do bolso e se cortou.
— Por que você não tomou a navalha da mão dele?
— Não deu tempo, chefe. E, mesmo que desse, ele teria me matado. Estava fora de si.
Nos entreolhamos, eu e o homem a meu lado, o que está tomando conta de mim. Ele balança a cabeça, em sinal de aprovação. Não digo nada.
— Era um torcedor doente — disse o chefe. — Já que queria morrer, que fique aí. Não podemos perder mais tempo.
E assim nos vamos: pulando por cima de um morto, sem poder olhar para trás. Ainda temos muitas léguas pela frente.
Mas será que eu vi o que vi? Falando sério, não creio muito no que vejo, como se uma névoa espessa me turvasse as vistas. Inebriado, aos poucos vou perdendo a confiança que sempre tive nos meus próprios olhos e isto talvez se deva à poeira que nós todos vamos levantando a cada passo. Sinto-me confuso, muito mal mesmo: meus pés já estão inchados e doloridos e minha barriga começa a doer, enquanto a minha cabeça roda e eu me esforço para deter o vômito que já vem perto da boca — não, pelo amor de Deus agora não, ainda, não, agüente mais um pouco, agüente até o sol raiar, a brisa da manhã certamente te trará um grande alívio, não podes fraquejar, não tens esse direito, pelo menos agora, pelo menos por enquanto, Deus me ajude, Deus que me ajude, Deus, Deus, Deus, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo.
E o cheiro do vômito vem das minhas próprias tripas; primeiro foi uma tosse, depois um bocejo, depois uma cusparada e o gosto do vômito na saliva e esse cheiro e esse gosto vêm também de um homem mais à frente, que logo a seguir tropeçou e caiu e era como se tivesse escarrado um jato podre dentro da minha boca, a podridão se espalha por onde vamos passando, e vamos passando por cima de mais um e agora eu tenho uma pergunta, uma simples pergunta: quantos seremos ao chegarmos lá? e outra — e se eu cair? e mais outra — passarão por cima de mim, do mesmo jeito que estamos passando por cima dos outros?
A resposta está em mim e está em ti, meu irmão, que caminhas ao meu lado e não me olhas nem me dizes nada porque tens medo de ver a tua própria suspeita refletida nos meus olhos, a minha e a tua suspeita de que nos fizemos inimigos. Sabemos que temos que chegar a algum lugar, mas não sabemos se o queremos, porque desconhecemos o verdadeiro sentido da nossa marcha. Marcha noturna, seis léguas. A pé. Talvez nem sejamos merecedores de uma cova funda, lá no fim, no ponto final — uma cova em que coubesse tudo aquilo que ambicionamos e que deixamos de ambicionar. Seguimos no escuro, como cavalos dopados, mas seguimos, porque nos disseram que tínhamos que ganhar esta corrida e nos fizeram crer nisso. Avante, irmão. Marche, marche.
Mas tenho que me dominar e o consigo, eis o meu milagre pessoal, meu milagre possível, pelo menos neste momento. Em questão de minutos chapinhei no lodaçal de meus próprios abismos, bati na porta de uma fronteira, varei muitas noites e nenhuma delas tinha encanto algum. Agora que voltei, posso lhes contar que já não sou o mesmo. Estou possuído por uma estranha espécie de exaltação — agora eu quero o êxtase e o êxtase que procuro está na guerra. Eu quero a guerra — eu que até aqui neguei a sua existência e que só aceitei esta missão porque a ela fui condenado. Não, já não me conformo com o meu modesto lugar de guia. Marchar simplesmente, sem me envolver com o jogo da marcha, nem com as ambições destes homens e as minhas próprias? Deixar de lado toda essa comichão que se apossa de mim como uma nova corrente sangüinea, toda essa febre, esse desejo? Direi isto ao homem que anda a meu lado, o carrasco que me vigia? Deliro? Com toda certeza. Não há outro remédio. Existirá algo mais monótono do que uma marcha noturna, a pé? Marchemos, porém. O dia já vem raiando.
À exceção de mais alguns homens que fraquejaram — e dos quais ninguém se lembra mais — tudo transcorreu sem incidentes. Avistamos a cerca aí pelas cinco da manhã, de acordo com o sol, que já se levantava. O terreno é plano, descampado, como as nossas próprias cabeças. Os homens parecem bastante animados com a chegada, como se isso, por si só, já fosse a vitória. O chefe os distribui estrategicamente, por zonas de ataque e defesa. Podemos nos movimentar à vontade porque, pelos cálculos do chefe, a guerra ainda está dormindo e tivemos muita sorte em chegar agora, sem aviso. Assim que ela acordar, será apanhada de surpresa. Perguntei-lhe se a minha função terminava ali, já que a mim cabia apenas ensinar-lhes o caminho. Ele disse que não e me deu uma arma.
Não sei atirar, nunca peguei numa arma — mas a sensação de estar agora com uma nas mãos jamais poderá ser descrita. Sinto-me outro: talvez um rei, talvez um bandido. De qualquer forma, outro. E esse outro é diferente do que já fui, mais poderoso e mais perigoso, mais homem e mais animal.
E assim, passamos o dia: deitados no chão, com as nossas miras apontadas para a cerca.
— Se eu dormir você me acorda, quando a coisa começar — pediu um homem a meu lado.
Respondi:
— Se eu dormir você me acorda, quando a coisa começar?
— Combinado — ele disse e fechou os olhos.
Cochilávamos e acordávamos, acordávamos e cochilávamos. Parecia que a verdadeira guerra a ser travada era contra o sono de cada um, como de fato o foi, nesse primeiro dia. A outra guerra, a que procurávamos, não apareceu. À noite nos revezamos em dois turnos e no dia seguinte e no outro. Cansado de esperar, o homem a meu lado voltou a falar:
— Acho que devíamos começar a atirar contra o sol. Está de doer.
— E de noite a gente atira contra a lua.
— Contra a lua, não. Ela é até boazinha.
— Você só se esqueceu que a lua está custando a aparecer.
— Mas vai aparecer. Não estamos aqui para esperar?
No terceiro dia o chefe disse:
— Amanhã vamos para o outro lado.
No dia seguinte fomos para o outro lado.
E do outro lado também não havia guerra.
E como a guerra não aparecia, perguntei ao chefe se eu podia dar uma busca em volta. Ele disse que sim, desde que eu fosse acompanhado.
Então me levantei e o meu carrasco me acompanhou. Numa mão eu segurava a arma e na outra um par de calças e uma camisa — eu ia mesmo procurar o meu amigo que andava escondido pelo mato. Não levava o frango que minha avó fez para ele porque eu já havia devorado tudo quanto foi coisa de comer.
— Só me pergunto que diabo viemos fazer aqui — disse o carrasco.
— Isso é que eu queria saber.
— Esse chefe é maluco — continuou o carrasco.
— Parece que está todo mundo maluco.
— Você sabia a verdade. Por que não disse?
— Eu disse. Mas ele falava dessa guerra com tanta certeza que acabei acreditando. E se ela for em outro lugar?
— Com certeza vamos ter que ir para outro lugar.
Não foi difícil encontrá-lo. Ele continuava debaixo da mesma árvore em que o deixei, alguns anos antes. Vestia-se com os mesmos farrapos e seus cabelos, como tranças de cordas, estavam quase se arrastando pelo chão. A barba vinha até metade da barriga. Parecia um pouco mais velho, mas só um pouco. Quando o avistou, o homem que me acompanhava levantou a arma em sua direção. Empurrei-lhe o cano para um lado e disse-lhe que não havia necessidade disso. Tratava-se de um amigo, gente de paz.
Entreguei-lhe a roupa e falei da comida. Pedi-lhe desculpas: com todo esse tempo no mato não houve comida que chegasse. Ele disse que não me preocupasse. Não lhe faltava o que comer. O homem a meu lado começou a interrogá-lo:
— Por que você vive assim, que nem bicho?
— Porque quero, ora.
— Há quantos anos você vive assim?
- Desde a última vez que cortei os cabelos. Não sei quanto tempo faz isso, nem me interessa saber. Para quê?
— Esse cabelo não lhe incomoda?
— Isso foi uma coisa que descobri. Nenhum homem precisa cortar o cabelo.
— E de roupa no corpo?
— Também não.
— E comida?
— Isso foi outra coisa que descobri. Ninguém precisa se matar de trabalhar, e às vezes até roubar, para ter o que comer. Sempre tive comida aqui neste mato. E de graça.
— E mulher?
— Foi outra coisa que descobri. Nenhum homem precisa de mulher. Tem muita fêmea de quatro pernas à solta.
— Você é feliz assim?
— Cada um vive como pode. O meu jeito é esse. Não tenho de que reclamar. Aqui ninguém me aporrinha. Quer dizer, não me aporrinhava.
Então o homem, sem ter mais o que interrogar, disse:
— Você vai ter que vir conosco, para falar com o chefe.
— Eu não tenho chefe — disse o outro.
— Mas nós temos. E ele quer ver você.
— Tenho que ir por bem ou por mal?
— Por bem ou por mal.
— Já sei. Vocês querem me prender.
— Não. Ninguém vai lhe prender. Estamos aqui por causa da guerra.
— Que guerra?
— Você vai saber daqui a pouco.
Meu amigo me olha. Não posso fazer nada. Digo-lhe:
— É melhor você ir.
E ele não precisa me dizer, para que eu entenda o que está escrito na sua cara. — Foi você, não foi? Você contou pra eles que eu estava aqui, não foi?
Preciso lhe dizer: foi um engano. Minha intenção era outra. Deu tudo errado. Um desastre. Será que ele ainda acreditaria em mim?
O chefe também o interroga:
— Cadê a guerra?
— Não vi guerra nenhuma.
— É melhor você confessar logo — diz o carrasco.
Ele, o selvagem, me olha, como se me interrogasse: “Por que você me meteu nisso? Que canalhice é essa?”
O chefe:
— Então você não viu a guerra...
Ele:
— Não vi, não senhor.
O chefe:
— E você sempre morou aqui?
Ele:
— Sim, senhor.
O chefe:
— Você sabe montar a cavalo?
Ele:
— Não, senhor.
O chefe:
— Como é que um homem do mato não sabe montar a cavalo?
Ele:
— Porque nunca tive um cavalo. E quem tinha nunca me deixou montar no seu cavalo.
O chefe:
— Mas você sabe lavar cavalo?
Ele:
— Isso todo mundo sabe. É só jogar água, esfregar o sabão e jogar água de novo, não é?
O chefe:
— Então você agora vai ter uma profissão. Você vai passar a lavar os cavalos do Exército. Nós vamos te levar. Vamos dar uma boa esfrega em você, tosar esse cabelo e essa barba, vamos te dar uma roupa de gente. Você vai voltar a ser gente. Ninguém pode viver assim, que nem bicho do mato.
Nesse momento ele olhava para o chão. Não sei se estava indignado, se estava pensando, ou se estava fazendo algum plano. Eu tinha que lhe dizer, de alguma maneira, que estava muito constrangido por toda aquela encrenca. Mas em que isso ia adiantar?
O chefe deu a ordem para levantarmos acampamento.
— Nossa missão aqui está terminada — disse. — Agora temos de partir à procura de outra guerra. Avante, camaradas!
Em sua voz não havia a mais leve ponta de decepção, arrependimento ou dúvida. Com certeza apresentaria um relatório ao quartel-general, informando que a marcha não servira apenas como treinamento, ou para levantar o moral da tropa que, com bravura e heroísmo, havia penetrado numa mata indevassável, capturando em seus recônditos um perigoso líder de um movimento insurrecional, jamais suspeitado.

E assim ele garantiria mais uma medalha no peito. Por que não?


TAMBÉM TIVEMOS NOSSO W. BUSH


De Conquistador do Sertão



Houve uma guerra no sertão baiano. Ninguém ficou sabendo, mas houve. Aconteceu no mais absoluto sigilo, na calada da noite e de baioneta calada, de surpresa e, por ser o Comandante-em-Chefe um antigo filiado da Aliança Renovadora Nacional, a imprensa foi proibida de dar manchete. Apenas uma nota de rodapé em um jornal da capital, tempos depois, que ninguém deu importância. Eram os conturbados anos setenta e a pequena cidade de Lagoa Azul repousava bem longe dos embates ideológicos do além-fronteira. Na falta do quê fazer, o povo criticava a apatia e a incompetência do prefeito para tirar a cidade do marasmo.

Em uma tarde de pouca inspiração e de muita disposição, o prefeito sonhou que era o Imperador do Sertão e sentiu o ávido desejo dos grandes conquistadores em aumentar os limites do seu império. O mundo, subjugado a ele, haveria de lhe render tributos e homenagens:

- Ave César! Os que vão morrer te saúdam!

Assim, dominado pela sede de poder, acalentado pelo canto da cigarra, pegou o seu facão-espada e convocou a sua legião de soldados, uns bêbados que passavam a tarde enchendo a cara de cachaça na conta da Prefeitura. Seguiram de caminhão, apreensivos e sombrios, para a linha de combate, um povoado paupérrimo na divisa do município. O sol declinava no horizonte e a vermelhidão do arrebol prenunciava uma noite de sibilos traiçoeiros e o cheiro fétido do chumbo queimando a carne já se sentia pairando no ar.

- Alea jacta est!

Quando a noite se fez alta e as corujas recolheram seus pios, um bando de soldados trôpegos, portando garrafa de cachaça em vez de fuzil, avançou destemido pelo terreno inimigo e tomou de assalto uma escola primária e um posto de saúde em construção. Mãos ágeis entraram em cena e puseram a pique os dois prédios, atearam fogo nas carteiras escolares e destruíram uma plantação de mandioca, única fonte de subsistência do exército inimigo.

Como o breu da noite esconde todas as nossas maledicências, o Imperador recolheu seus homens e bateu em retirada, indo comemorar seu embate heroico em uma rodada etílica em seu castelo. Vitória completa, sem nenhuma baixa.

- Veni, vidi, vici!


Quando a névoa da manhã se fez diáfana, rostos surpresos, atônitos e incrédulos despertavam e miravam a destruição provocada por uma guerra não-declarada e de um combate não-anunciado. Revoltados, atearam fogo na bandeira do novo império que tremulava solitária sobre os escombros.