sábado, 4 de junho de 2011

Os três sexos



Certa vez, passeando por esses cem números de canais por assinatura, parei em uma briga de travesti, sapatão, hermafrodita, um médico especialista no assunto, um padre e um instrutor de luta livre que mais parecia um membro dos “skin head”, de tão exaltado que estava. Até que o falapau estava interessante, cada um querendo fazer justiça à sua maneira.

Eu fiquei num misto de admiração e espanto com a peça pregada pela Natureza no que dizia respeito aos três sexos envolvidos. Digo “três” porque o hermafrodita é – como direi – uma peça de traumatológico resultado. Que gênero se dá ao hermafrodita? No caso em questão, era um homem que, além da documentação necessária para identificação alfandegária, tinha também vagina e útero, não podendo, porém, fazer sexo consigo mesmo. O seu sexo mental, aquele que prevalece na hora de movimentar os cinco sentidos, era o de homem. E, sentindo-se injustiçado pela Natureza, pediu reparação a um médico-cirurgião, especialista no assunto, e submeteu-se à intervenção cirúrgica para extirpar o útero e demais partes pudendas femininas. Recebeu garantias científicas de que ficaria um homem normal. Arranjou namorada e marcou casamento. Talvez pudesse até ter filhos. Queria cinco, caso fosse possível.

A cirurgia transcorreu sem nenhum imprevisto ou contratempo. Os médicos, experientes no ramo, não tiveram dificuldades em colocar o cidadão dentro da classe gramatical substantiva comum de um gênero só. Ele não viu nada, pois foi apagado por uma dose cavalar de anestesia. Dormiu sonhando com o primeiro coito de sua vida e, por via das dúvidas, comprou duas caixas de Viagra e um pacote de camisinha.

Ao retornar feliz do apagão cirúrgico, o médico olhou para ele, sorridente, e disse que a cirurgia tinha sido um sucesso completo, e lhe mostrou um pênis que repousava tranqüilamente mergulhado em um recipiente de formol. Isso foi dito por ele.

Em Salvador, um cidadão se submeteu a uma simples cirurgia de fimose e o médico passou-lhe a cepa, colocando no lugar do pênis uma vagina a la Roberta Close.

Erro médico, quando não é fatal, é triste para o operado. Causa aleijão físico e moral. O paciente, geralmente apagado total ou parcial, confia sua vida ao saber pleno e seguro do especialista médico, não havendo margem para desconfiança ou insegurança no procedimento cirúrgico.

Fatalidade ou irresponsabilidade? Todos os dias, vemos ou lemos nos jornais algum caso de erro médico, trazendo sequelas inimagináveis – quando não a morte – para o paciente. E os médicos, de um cinismo revoltante, apenas pedem desculpas. Quando pedem. Milhares de processos cíveis e criminais pululam nas varas de Justiça, emperrada pela morosidade, corrupção e descaso com a função, ignorando-se a afirmação de Rui Barbosa: “Justiça tardia não é Justiça; é injustiça”.

Voltando ao tema central, fico aqui pensando nas adversidades biológicas ou nos erros cometidos pela Natureza. Em foco, três negações fantásticas do gênero substantivo: o masculino que era ela; o feminino que era ele, e o terceiro sexo que podia ser ele ou ser ela, dependendo da função ativa ou passiva assumida no instante do ato sexual.

O rapaz, dito hermafrodita, inseguro, parecia perdido no tempo e no espaço. A que nasceu mulher, desinibida e exibida, lembrava um estivador. O travesti, de conduta calma e meiga, tinha um ar angelical, suaves traços sensuais, voz melosa e delicada, e até o exaltado professor de luta livre, na sua falsa moral que fez corar até o padre, se arriscaria a uns amassos lascivos na maliciosa e oportuna cumplicidade noturna.

De noite todos os gatos são pardos. 


sexta-feira, 3 de junho de 2011

Maurício Melo Júnior - Elogio ao velho Capone


Conta a lenda que, caminhando pelo deserto da Palestina, sem comer nem beber há quarenta dias, Jesus Cristo avistou um canavial. E não me perguntem como este canavial foi aparecer no deserto; estamos no terreno da lenda. Pois bem, o filho de Deus descansou sob a sombra modesta, sim, mas generosa e saciou a sede e a fome com o caldo doce da cana. Ao sair abençoou a planta e decretou: “Daqui o homem irá tirar algo doce para seu alimento”. Assim surgiu o açúcar, o melaço, a rapadura.

Seguindo na mesma trilha, para atanazar Cristo, Satanás entrou no mesmo canavial do mesmo deserto. A palha da cana o deixou todo lanhado, não consegui uma sombra que fosse e quando tentou se encostar encheu as costas com aquele pelinho que dói prá lascar. Para aliviar a sede quebrou uma cana e a bicha tava mais azeda que jiló. Arretado com aquilo amaldiçoou o partido: “Daqui o homem irá tirar um produto que vai lhe queimar a goela, vai lhe deixar embriagado e vai lhe desgraçar a vida”. Assim surgiu a cachaça.

A lenda tem suas injustiças. Açúcar é doce, mas engorda. Cachaça desgraça, mas pode ser degustada com moderação e prazer. Tudo é uma questão de dosagem. No mais é secundar Ascenso Ferreira: “Suco de cana-caiana tirada do alambique / pode ser prejudique / mas bebo toda sumana…” Daí é apreciar sem culpas as qualidades de uma boa cachaça.

A lenda não fala, mas com certeza na maldição do diabo constava um item falando que a descoberta se daria num país onde o governo tem mais sede que nós, os bravos consumidores. Falo aqui de uma sede metafórica, pois é mais fácil sustentar a gula de um caminhão Ford com gasolina que o governo com imposto.

Esses dias, conversando com um produtor, o cabra foi categórico. Envolvendo todos os custos – plantio, colheita, destilação, armazenagem, embalagem, transporte, salários, direitos trabalhistas, lucros, etc –, ele consegue botar na prateleira uma garrafa de cachaça por 20 reais. Quando entram os impostos federal, estadual e municipal o custo pula prá 50 reais, o preço de um uísque de qualidade. Daí ele se complica com a concorrência.

Como para todo bebedor a persistência é uma norma, apelei para a Internet. Descobri uma página maravilhosamente bem surtida e com preços atraentes. Esperançoso, iniciei as negociações. E fui até a pergunta fatal: Onde devo entregar o produto? Em Brasília, respondi. Não dá, quando chegamos aí o governo local nos morde com tanta força que não há como compensar o prejuízo. Frustrado, fiquei na sede, ruminando prá onde vai tanto imposto.

De onde ele vem, eu sei. Uma pesquisa recente informou que até o dia 25 de maio todos os brasileiros, inclusive os aposentados, trabalharam apenas para pagar impostos. E isso se repete todos os santos anos. Ou seja, a coisa é bem mais séria do que simplesmente taxar a cachaça e seus sagrados consumidores.

Constantemente leio nos jornais que os governos comem 50% da conta de luz. Outro dia caminhei uns três quilômetros acompanhando uma imensa fila de carros para descobrir que todos esperavam pacientemente para abastecer sem pagar impostos. O preço da gasolina estava por menos da metade. E até o cândido açúcar, mesmo abençoado pelo Cristo, carrega 30% de seu preço em impostos.

E tudo piora quando, voltando aos jornais, lemos sobre estradas sem asfalto, hospitais sem médicos ou remédios, escolas sem merenda, sem professores, sem motivação. E o que se faz com todo dinheiro arrecadado? Será? Bom, pode ser uma explicação. Vamos lá.

Marcos Freire era presidente da Caixa Econômica Federal e recebeu a visita de Luís Portela de Carvalho, ex-prefeito de Palmares. Junto entrou no gabinete uma comissão de cinco prefeitos gaúchos que buscava dinheiro para comprar um patrol. Vendo aquilo, Portela desdenhou: “Comprei uma esta semana com recursos próprios.” “Como, tchê?” “Eu não roubo”, respondeu na lata, para constrangimento de todos.

Tudo uma questão de formação moral. Luís Portela sabia o sentido pleno da palavra república, coisa pública, e hoje é quase uma lenda urbana em Palmares onde há um verdadeiro culto à sua atuação na prefeitura.

O velho descontrole na fiscalização e as notícias que assolam os jornais explicam por que não pude comprar minha cachaça com entrega em domicílio. Um amigo chegou a se exaltar e defendeu o Chile como exemplo de política de impostos e de soluções. “Lá o vinho é considerado alimento e tem uma taxação justa.” Bom, como não dá para considerar cachaça alimento, a menos que se queira ser excomungado pelos patrulheiros de plantão, e sabendo que a economia chilena é igual a do estado de São Paulo, o melhor é apelar para nosso sagrado jeitinho.

É preciso ciência até para tomar cachaça. E neste caso a solução foi inspirar-me no velho Al Capone. Pois bem, procurei uma amiga que trabalha em Luziânia, uma cidade goiana nas imediações do Distrito Federal. De comum acordo passei ao fornecedor o endereço de trabalho da moça. Os cabras, livres da mordida distrital, deixaram ali a preciosa encomenda e eu a apanhei aqui, do outro lado da fronteira com ela, numa ação digna de um bom e nobre sacoleiro. Tudo muito prático.

Meu gesto faria ri o velho Capone, pois não passo de um reles amador, mas também nossa Lei Seca não chega aos rigores americanos de antanho, e no mais não consigo correr do governo quando compro açúcar, abasteço o carro, pago a conta de luz. Acho que preciso estudar melhor a vida do velho gangster, afinal a taxação da cachaça ainda dá para agüentar, mas bem que gostaria de saber em que árvore nascem os impostos. Com certeza conseguiria um bom exorcista para tirar dali a praga do cramunhão.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Cineas Santos - A poesia como passaporte

De O poeta Salgado Maranhão na praia de Cruz das Almas - Maceió AL

Fosse uma história infantil, poderíamos iniciá-la assim: era uma vez um menino negro e pobre que, mesmo sem existência civil, tinha o passaporte para o coração do mundo: a poesia. Como a história é verídica, que fale o poeta: “Até os dezesseis anos de idade, eu praticamente nem tinha existência civil, já que não tinha nem sequer uma certidão de nascimento. A minha desimportância era tamanha que só a poesia poderia me resgatar do nada. Então, ela foi-se achegando a mim e eu a ela, numa simbiose tão profunda que, contrariando a lei da Física, passamos a ocupar, ao mesmo tempo, o mesmo espaço”. Vista pelo prisma da poesia, a trajetória de Salgado Maranhão pode parecer simples e até glamourosa. Eu lhes asseguro que não foi. Nascido no interior do Maranhão, filho de agricultores pobres, Salgado passou a infância “ correndo atrás do sol/pés descalços pelos matagais/ por entre cascavéis e beija-flores”. Aos 16 anos de idade, semianalfabeto, veio para Teresina onde, em pouco mais de três anos, cursou, via supletivo, o primeiro e o segundo graus. Como já trazia a poesia, em estado bruto, no embornal do peito, começou a escrever e a publicar poemas nos jornais da cidade. Mas, entre um poema e outro, era preciso ganhar o sagrado feijão de cada dia. Entre outras atividades, foi vendedor de santos, profissão pouco rentável, mas que lhe propiciou o contato enriquecedor com a população periférica de Teresina. “Rico não precisa comprar santo: já tem o paraíso na terra”, garante.
Em 1973, com a cara e a poesia, mudou-se para o Rio de Janeiro. “Um dia, percebi que, em Teresina, não havia espaço para o que eu queria fazer. Eu precisava radicalizar, romper com os laços e amarras para tentar viabilizar o projeto de me tornar um escritor. Eu precisava de contato com uma realidade que representasse um violento contraste com o mundo que, até então, eu conhecia. O Rio de Janeiro era esse extremo. Seria, para mim, uma espécie de vestibular extremado, até mesmo em matéria de sobrevivência”. O Cristo Redentor, apenas ele, o recebeu de braços abertos... Mas Salgado, curtido na aspereza, não se deixou intimidar. Meteu-se entre os que, como ele, acreditavam no poder da palavra. Tantas fez que, em 1978, à frente de um grupo de jovens poetas, publicou, pela Civilização Brasileira, Ebulição da Escrivatura, uma antologia que marcaria época. Iniciou sua carreira solo com Punhos da Serpente (1989).Depois, vieram: Palávora; O beijo da fera; Mural de ventos; Sol sanguíneo; A pelagem da tigra; Solo de gaveta e, em 2009, a antologia A cor da palavra. A poesia, a quem nunca traiu,abriu-lhe muitas portas. E vieram os prêmios: “Ribeiro Couto” (98), “Jabuti” (2009) e, este ano, “Prêmio Poesia”, da Academia Brasileira de Letras. Lido por muito, estudado nas universidades, traduzido e elogiado pela crítica especializada, Salgado Maranhão já poderia dar-se por satisfeito. Mas, a um poeta com vocação apolínea, é sempre lícito querer mais, muito mais, sempre mais ...

domingo, 29 de maio de 2011

Univesp TV: Prof. Ataliba Castilho fala sobre polêmica do livro do MEC



O Professor, linguista e gramático Ataliba Castilho é entrevistado por Ederson Granetto, da UNIVESP TV, e fala da polêmica do livro para a Educação de Jovens e Adultos do MEC. Veja a opinião de quem realmente entende e, principalmente, de quem leu o livro.





Ataliba T. de Castilho


Professor titular da Universidade de São Paulo. Foi também professor titular da Unicamp e da Unesp. Livre-Docente pela USP. Foi professor visitante na University of Texas at Austin e pesquisador de pós-doutorado na Cornell University (Estados Unidos), na Université d'Aix-Marseille (França), na University of New México (Estados Unidos) e na Università degli Studi di Padova (Itália). Dirigiu projetos como o NURC e o Gramática do Português Falado. Fundou e presidiu o Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo. Criou o Sistema de Blibiotecas e o Sistema de Arquivos da Unicamp. Presidiu, de 1983 a 1985, a Associação Brasileira de Lingüística. É autor de vários livros e dezenas de atigos publicados em revistas científicas no Brasil e no exterior.
Fonte: Editora Contexto