segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Cineas Santos - Insólita beleza



Mário Quintana, o inventor da simplicidade, tinha uma predileção especial pelos temas apoéticos. Grilos, rãs e até formigas transitam por seus poemas com a mais absoluta desenvoltura. Como um alquimista, o poeta era capaz de transformar qualquer coisa em poesia, ou melhor, era capaz de revelar aos olhos desatentos a poesia subjacente em todas as coisas. Um belo exemplo: “Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página ainda em branco./Mas ele, naquela noite, não escreveu nada./Para quê? Se por ali já haviam passado o frêmito e o mistério da vida...”

Imaginemos a cena: Quintana, solteirão, boêmio e notívago, no seu humilde quarto de hotel, prepara-se para escrever um poema. Sabe que a poesia, caprichosa como a mulher desejada, só se dá quando quer. Acende um cigarro e, pacientemente, espera... De repente, percebe a presença de uma formiguinha tresmalhada, errática, atravessando a folha de papel ainda imaculada. Cena comum, sem absolutamente nada de poético ou especial. O normal, para qualquer um de nós, seria simplesmente sacudir a folha e atirar o inseto à própria sorte. Alguém menos tolerante a esmagaria com o dedo, sem piedade antes ou sem remorso depois. Quintana, numa espécie de não-poema, imortaliza a cena banal com incontido lirismo. É como se nos dissesse: o frêmito e o mistério da vida pulsam nos seres mais simples. Basta saber ver.

A lembrança deste belo poema ocorreu-me quando recebi o e-mail de um amigo com uma foto insólita, para dizer o mínimo: um pequeno vira-lata dormindo, sossegadamente, no colo do menino Jesus. Aos fatos: em Criciúma (SC), como em qualquer cidade brasileira, existe o hábito de se armarem presépios no período das festas natalinas. Pois na Praça Santa Catarina, montou-se um presépio comum, com as três figuras da Sagrada Família, mais um anjo guardião. Numa manjedoura improvisada, forrada de palhas e estopa, puseram a réplica do menino Deus. De tão ordinário, o presépio não atraía a atenção dos transeuntes. Vai que, numa noite fria, um vira-lata solitário zanzava pela praça quando descobriu o presépio. O sossego e a sensação de calidez despertaram nele o desejo de acomodar-se no colo de Jesus. Com aquela sem-cerimônia típica dos bêbados, dos loucos e dos vira-latas, o cachorro enrodilhou-se na manjedoura e adormeceu.

Deve ter dormido por pouco tempo. Seguramente, algum “bom” cristão, ao vê-lo tão à vontade no colo do Salvador, enxotou-o dali aos berros. Diante daquela cena insólita, um passante qualquer, acometido de quintanismo, teria dito: E naquela noite fria,/ um cão sem dono/ imprimiu um sopro de vida/ no leito do menino Deus...